Autor: Marcos de Aguiar Villas-Bôas (*)
Everardo Maciel publicou um texto no Estadão em 5/11/2015 com o título “Sobre jabuticabas e clichês”[1]. Ele é revelador e assustador, pois escancara o atraso do estudo de política tributária no Brasil, causando medo por se tratar de alguém que comandou a Receita Federal de 1995 a 2002 e assumiu outros cargos importantes no governo.
Nesse período, por sinal, o Brasil cometeu alguns dos seus maiores erros de política tributária, como a isenção dos dividendos, a redução da progressividade do IRPF, a apresentação dos projetos das leis do PIS e da COFINS não-cumulativos, a criação da extinção da punibilidade do crime de sonegação pelo pagamento do tributo devido e a criação da suspensão da pretensão punitiva do crime de sonegação pelo parcelamento do tributo devido[2].
O texto de Everardo Maciel traz equívocos graves que precisam ser contestados[3], ou corre-se o risco de uma parcela da sociedade acreditar neles.
1º equívoco: o suposto “complexo de vira-lata” e as “antecipações históricas” que o Brasil teria tomado na área tributária.
O argumento do complexo de vira-lata parece válido em uma porção de casos, mas inválido em muitos outros. Tornou-se praxe no Brasil acusar alguém de complexo de vira-lata quando se critica algo nacional com base em comparações com o exterior.
É indiscutível a capacidade do povo brasileiro. Dificilmente alguém negaria que podemos ser bons e talvez melhores do que os demais em praticamente tudo. No entanto, também parece indiscutível que, por razões variadas, estamos bastante atrasados em relação aos demais países em diversas áreas.
Vejamos o exemplo do Prêmio Nobel, uma das maiores honrarias do mundo. Em mais de um século de existência do prêmio, nunca um brasileiro foi vencedor, em nenhuma das categorias. Quando o foi, ele havia se naturalizado inglês[4]. Diversos países subdesenvolvidos, inclusive da América do Sul, têm ganhadores do Prêmio Nobel, mas o Brasil não.
O primeiro passo para alguém crescer e alcançar os que estão à sua frente é reconhecer a necessidade de crescer; é, portanto, ter humildade. Esse argumento mal utilizado do complexo de vira-lata cega os brasileiros e faz com que se acomodem no seu subdesenvolvimento. Somos bons em algumas coisas, mas estamos muito atrás em várias outras, e uma delas é a tributação. De tanto dormir no ponto, nem no futebol estamos mais à frente dos demais.
Como Everardo Maciel explica, o Brasil normalmente esteve adiantado em termos de administração fiscal. O país é um bom cobrador de tributos, utiliza meios avançados. Isso é ótimo. Com a complexidade do sistema brasileiro e a sonegação fiscal, é preciso desenvolver cada vez mais métodos de fiscalização ágeis e meios eficientes para detectar sonegadores.
Por outro lado, o conhecimento de política tributária no Brasil é pífio. Uma rápida leitura de textos brasileiros e estrangeiros revela um descolamento entre o que é discutido no nosso país e no exterior. Everardo Maciel faz a seguinte afirmação no seu texto: “Quando o leitor identificar a lenda da jabuticaba sendo utilizada como argumento para refutar uma tese, desconfie de que o autor não estudou suficientemente o assunto.” Eu diria o seguinte: quando o leitor vir a lenda do complexo de vira-lata sendo utilizada para refutar uma tese, desconfie de que o autor não estudou suficientemente o assunto e de que desconhece o que se passa no exterior. Provarei essa assertiva.
2º equívoco: a política tributária não é um meio para reduzir desigualdades.
Ora, se Everardo Maciel conseguir comprovar essa afirmação, ele será provavelmente o primeiro brasileiro vencedor do Prêmio Nobel. Quase a unanimidade de estrangeiros especialistas em política tributária dizem o contrário. Aliás, parece que nem Everardo Maciel concorda com o texto dele, tendo em vista a manifestação que fez em recente evento[5].
Não é à toa que, como demonstrei em outro texto, o Brasil tem alíquotas muito baixas em relação ao Imposto de Renda da Pessoa Física de outros países e alíquotas bem mais altas na tributação regressiva sobre o consumo de bens[6]. A teoria dos países desenvolvidos se refletiu na prática. Toda construção de política tributária é pautada no chamado trade-off entre eficiência e equidade[7], ou seja, tenta-se encontrar medidas que possam gerar, ao mesmo tempo, máximas eficiência econômica e redistribuição de riqueza, renda e oportunidades de produção.
Ainda que a distribuição de oportunidades, fundamental para a redução das desigualdades, seja mais realizada pela reestruturação das instituições e pelo gasto adequado das receitas arrecadadas, a forma de arrecadação é fundamental no resultado da riqueza e da renda de cada indivíduo.
Deste modo, a tributação ajuda a reduzir desigualdades e este é um tema da primeira aula de qualquer curso decente de política tributária. O problema é que eles praticamente não existem no Brasil. Os economistas ainda chegam a estudar política tributária, mas as pessoas da área do Direito, como Everardo Maciel e eu mesmo, não têm qualquer contato com a matéria na graduação e na pós-graduação, salvo raras exceções em que se estudam superficialmente alguns temas. Se o jurista não for buscar no exterior conhecimentos avançados de política tributária, ele tende a defender argumentos considerados bastante ultrapassados nos países desenvolvidos.
Praticamente não se produziu nada no Brasil sobre Optimal Taxation Theory, que é o sistema teórico mais avançado e utilizado hoje pelos estrangeiros para análise teórica e construção prática de políticas tributárias. O trade-off entre eficiência e equidade é premissa básica de qualquer estudo da Optimal Taxation Theory, especialmente desde a década de 70, quando vencedores do Prêmio Nobel como Peter Diamond, James Mirrlees e Joseph Stiglitz lançaram trabalhos aprofundados nos quais analisavam a progressividade do IR, a relação dele com os tributos sobre o consumo etc. Os textos foram publicados há mais ou menos 40 anos, muito antes de Everardo Maciel chefiar a Receita Federal[8].
3º equívoco: as proposições que vinculam tributo à redução de desigualdades, como as de Piketty, são de grande ingenuidade.
Esse é outro problema clássico no Brasil. Fala-se mal do trabalho ou da própria pessoa sem conhecê-la minimamente. Milhares de brasileiros pensam que Piketty é um jovem economista que ficou famoso por construir um argumento que agrada a esquerda.
Essas pessoas não sabem, no entanto, que ele começou a estudar esses temas no século passado, quando ganhou um prêmio de melhor pesquisa econômica da França por realizar seu primeiro trabalho de análise de dados históricos para tratar das desigualdades. Também não sabem que ele é um dos maiores expoentes da Optimal Taxation Theory, tendo escrito trabalhos muito profundos, utilizados por vários governos do mundo para construir suas políticas tributárias, tudo isso muito antes de publicar o seu best-seller denominado “O Capital no século XXI”.
Piketty se tornou doutor com 21 anos por uma das mais importantes instituições da Europa: a London School of Economics – LSE. Em seguida, foi professor assistente de Economia no Massachusetts Institute of Technology – MIT dos 22 anos aos 24 anos, talvez a mais importante instituição de ensino do mundo na área de Economia.
É preciso ler o autor francês com muito mais cuidado, se é que boa parte dos seus críticos realmente o leram[9]. A inter-relação feita entre tributação e desigualdade na obra dele está baseada em 300 anos de dados, que demonstram a redução da desigualdade em momentos de alta progressividade da tributação, como no pós-Segunda Guerra Mundial, e aumento em momentos de baixa progressividade, como na fase conservadora das décadas de 80 e 90, que desembocaram na crise de 2008.
4º equívoco: as mudanças recentes na desigualdade brasileira não estiveram relacionadas à tributação.
Evidente que não, pois não houve reforma tributária. A desigualdade só vem crescendo, porque o sistema é muito regressivo. Mesmo com os programas de transferência de renda, ela não diminuiu em algumas partes da pirâmide, pois não há instituições adequadas[10].
5º equívoco: tributos sobre a renda e sobre o consumo não são necessariamente, nessa ordem, progressivos e regressivos.
De fato, tributar a renda não garante progressividade e tributar o consumo não garante regressividade. Isso depende sempre do desenho do tributo.
Os tributos brasileiros sobre o consumo são muito regressivos, pois suas alíquotas não são progressivas e, como a incidência se dá repetidamente na cadeia produtiva, com existência de créditos, esses tributos precisam ser apurados operação por operação, sendo, sempre que possível, incluídos nos preços de bens e serviços. Deste modo, ricos e pobres arcam com o ônus financeiro desses tributos nas mesmas proporções.
Se a tributação do consumo fosse uma tributação da renda com abatimento das economias, como no caso da proposta de Nicholas Kaldor — amplamente discutida no mundo[11], porém desconhecida no Brasil[12] —, aí seria possível aplicar uma faixa de isenção e alíquotas progressivas.
A progressividade é algo muito simples, mas, no Brasil, mesmo pessoas experientes têm dificuldades de entendê-la, talvez por conta de um bloqueio ideológico. Progressividade significa fazer quem tem mais pagar mais. A técnica primordial é utilizar alíquotas progressivas de acordo com o crescimento da base de cálculo, porém vários detalhes de design do tributo contam para a progressividade do IR, como não dar dedução ilimitadas e não isentar parcelas de renda que são mais auferidas pelos abastados (dividendos).
Quem tem menos para consumir e financiar sua produção deve contribuir menos para o fisco. Quem tem mais deve contribuir mais, pois cada R$ 1,00 para ele tem menos utilidade do que para aquele que tem menos renda. A progressividade é uma regra básica de política econômica e imposta pela Constituição.
A progressividade não é somente uma questão de equidade, mas de eficiência também, pois, se um país tem bem mais da metade da população ganhando até R$ 2 mil, como o Brasil, salário que não permite alguém ter família e viver com dignidade; então, não há uma massa consumidora, nem uma massa produtora que possibilitem crescimento econômico sustentável e em larga escala. Enquanto a Austrália vem crescendo economicamente há 20 anos, o Brasil vem derrapando, e é sobretudo por conta da diferença nas desigualdades dos dois países que os seus índices de qualidade de vida são tão distantes.
A tributação progressiva do consumo costuma ser uma adaptação da tributação da renda, completamente diferente daquela existente no nosso país. Então, o argumento de Everardo Maciel é uma cortina de fumaça que apenas confunde o assunto e leva a crer que talvez o sistema tributário brasileiro seja bom e, quem sabe, talvez ele seja até progressivo. É umnonsense completo!
6º equívoco: a isenção dos dividendos é boa.
O texto criticado implicitamente por Everardo Maciel, que falava de jabuticabas tributárias[13], referia-se especialmente à isenção dos dividendos criada no Brasil pela Lei 9.249/1995. Maciel afirma que essa isenção ainda poderá ser vista como uma grande sacada brasileira. Acontece, no entanto, que o tema foi excessivamente estudado no exterior e chegou-se à conclusão de que isentar os dividendos é um erro grosseiro, que ninguém faz no mundo desenvolvido, apenas a Estônia, que não é lá tão desenvolvida assim.
Em linhas bem resumidas[14], isentar os dividendos reduz a progressividade, pois não tributa grande parte da renda de pessoas mais abastadas, que costumam ser as sócias das empresas. Com a isenção, abre-se espaço para múltiplas evasões (fraudes) fiscais, como no caso de empregados que são feitos sócios apenas no papel, e elisões ficais questionáveis, como a redução de salários de sócios e pagamento da remuneração quase completa por meio dos dividendos. Por óbvio, a arrecadação da União despenca. Além disso, os comportamentos são completamente distorcidos, pois todos querem se tornar sócios, ninguém mais ser empregado.
Para não me alongar mais, sobre os dividendos e sobre praticamente todos os temas de política tributária, recomendo a leitura da Mirrlees Review e daHenry Review, quase desconhecidas no Brasil. A primeira é uma revisão da tributação do Reino Unido publicada em 2010 e coordenada por James Mirrlees. Participaram dessa revisão muitos dos principais experts do mundo em políticas tributárias, inclusive os já citados Peter Diamond e Thomas Piketty. A segunda é uma fenomenal revisão publicada na Austrália no mesmo ano. As conclusões das duas reviews costumam ser próximas, revelando um certo padrão de design de política tributária dos países mais desenvolvidos, do qual o Brasil está bastante afastado.
É preciso passar uma linha na política tributária brasileira e começar uma nova fase. As discussões desinformadas e carregadamente ideológicas devem ficar daqui pra trás. A tributação tem o poder de contribuir para a solução de boa parte dos problemas socioeconômicos de um país, a começar pela desigualdade, que mina a eficiência econômica e acaba com a democracia.
[1] Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,sobre-jabuticabas-e-cliches,1791315>. Acesso em: 16. nov. 2015.
[2] Sobre o tema, ver: VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. Sonegação fiscal supera em muito os valores da corrupção pública. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-nov-17/villas-boas-sonegacao-fiscal-supera-valores-corrupcao-publica. Acesso em: 17. nov. 2015.
[3] Vide outro texto com dura crítica ao mesmo artigo de Everardo Maciel – Disponível em: <http://plataformapoliticasocial.com.br/sobre-everardo-maciel-e-jabuticabas-tributarias/>. Acesso em: 20. nov. 2015.
[4] SUPER INTERESSANTE. Quando vamos ganhar um Nobel?. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ciencia/quando-vamos-ganhar-um-nobel>. Acesso em: 17. nov. 2015.
[5] “Entre eles, Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal, que considerou uma “perversidade” a proposta de criar um sistema tributário baseado na neutralidade em um país com grandes desigualdades regionais como o Brasil” (Disponível em: <http://sesconfloripa.org.br/sescon-informa/tributaristas-discutem-a-criacao-de-imposto-unico/>. Acesso em: 22. nov. 2015).
[6] VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. Comparativo entre a tributação do Brasil e a dos países mais desenvolvidos do mundo. Disponível em: <http://optimaltaxationtheory.com/assets/Site_-_Comparativo_entre_a_tributa____o_brasileira_e_a_dos_pa__ses_desenvol78907.pdf>. Acesso em: 17. nov. 2015; e ______. O imprescindível aumento da progressividade do sistema tributário brasileiro. Disponível em: <http://optimaltaxationtheory.com/assets/O_imprescind__vel_aumento_da_progressividade.pdf>. Acesso em: 17. nov. 2015.
[7] VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. Teoria da tributação ótima: passado, presente e futuro. In: ZILVETI, Fernando (coord.). Revista de Direito Tributário Atual, n. 34, p. 275-302, 2015.
[8] DIAMOND, Peter A.; MIRRLEES, James A. Optimal Taxation and Public Production I: Production Efficiency. Disponível em: <https://www.aeaweb.org/aer/top20/61.1.8-27.pdf>. Acesso em: 14. ago. 2015. ______. Optimal Taxation and Public Production II: Tax Rules. Disponível em: https://www.aeaweb.org/aer/top20/61.3.261-278.pdf. Acesso em: 14. ago. 2015. ATKINSON, Anthony; STIGLITZ, Joseph. The design of tax structure: direct versus indirect taxes. Disponível em: <http://eml.berkeley.edu/~saez/course/AtkinsonStiglitz_JPubE(1976).pdf>. Acesso em: 15 ago. 2015.
[9] Para uma série de textos explicando a obra de Piketty e algumas discussões sobre ela, vide: VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. Para entender Thomas Piketty e suas propostas sobre tributação. Disponível em: <http://optimaltaxationtheory.com/artigos.html>. Acesso em: 21. nov. 2015.
[10] Ver entrevista de Marcelo Medeiros, especialista em estudos sobre desigualdade, que destaca a importância de melhores políticas tributaries – Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/04/politica/1446611627_268265.html>. Acesso em: 17 nov. 2015.
[11] Ver, por exemplo, relatório publicado em 1974 nos Estados Unidos – Disponível em: <http://www.library.unt.edu/gpo/acir/Reports/information/M-84.pdf>. Acesso em: 17. nov. 2015.
[12] Tratei rapidamente sobre o tema no seguinte texto: VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. A reforma tributária estrutural do Brasil proposta por Mangabeira Unger. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-out-10/villas-boas-reforma-tributaria-proposta-mangabeira-unger>. Acesso em: 17. nov. 2015.
[13] GOBETTI, Sérgio; ORAIR, Rodrigo. Jabuticabas tributárias e a desigualdade no Brasil. Disponível em: <http://www.valor.com.br/opiniao/4157532/jabuticabas-tributarias-e-desigualdade-no-brasil>. Acesso em: 17. nov. 2015.
[14] Sobre o tema, vide: VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. Dividendos brasileiros deveriam ser tributados como na Austrália. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mai-04/marcos-villas-boas-dividendos-deveriam-tributados-australia>. Acesso em: 17. nov. 2015.
Autor: Marcos de Aguiar Villas-Bôas é advogado, conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.