No regramento do ICMS sobre vendas interestaduais tem reflexos negativos

Autor: Rodrigo Bernardes Ribeiro (*)

A Emenda Constitucional 87/2015 alterou a incidência tributária do ICMS nas operações interestaduais com consumidores finais, estendendo as regras originalmente aplicáveis aos adquirentes contribuintes do imposto estadual também aos não contribuintes (e.g. pessoas físicas), apresentando, assim, uma solução à guerra fiscal atinente às vendas não presenciais.

Esse remédio, entretanto, apresenta efeitos colaterais, uma vez que gera impactos em alguns convênios atualmente vigentes, em especial os que dispõem sobre substituição tributária. Verificam-se aqui problemas de ordem práticas, tais como o acúmulo de créditos de ICMS e o risco de atuações, resultantes de dúvidas sobre o direito aplicável em situações de aparente conflito normativo, o que se pretende demonstrar e debater no presente artigo.

Em síntese, o novo mandamento constitucional passou a prever que todas as operações com consumidor final são tributadas pela alíquota interestadual no Estado de origem e geram diferencial de alíquota a ser recolhido ao Estado de destino, estabelecendo-se expressamente no texto constitucional a responsabilidade pelo recolhimento desse diferencial, a saber: (a) se o adquirente é contribuinte do imposto, ele é o responsável pelo recolhimento; e (b) se o adquirente não é contribuinte do imposto, o responsável pelo recolhimento é o remetente da mercadoria.

Como parte do jogo político de compensação dos Estados de origem pela queda da arrecadação, acresceu ainda ao Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) o artigo 99, que estabelece a repartição do diferencial de alíquota entre os Estados de origem e de destino até 2019, quando todo ele passará a ser devido ao último.

O Convênio ICMS 93/2015, por seu turno, veio para regulamentar essa nova sistemática tributária, em especial a nova situação, isto é, a tributação das operações interestaduais com consumidores finais não contribuintes do ICMS.

Percebe-se, pela leitura desse convênio, uma preocupação em garantir a operacionalidade da nova sistemática constitucional, como, por exemplo, quando determina o destaque do ICMS global da operação (calculado pela alíquota interna do Estado de destino) na nota fiscal; mas também se observa um cuidado em assegurar a observância do princípio da não-cumulatividade, conforme se depreende da leitura da sua cláusula terceira. Essa cláusula dispõe que o ICMS devido ao Estado de origem deve ser compensado com o crédito relativo às operações anteriores.

Observe-se, em relação ao último ponto, que tal sistemática não-cumulativa evidencia que o remetente da mercadoria não é contribuinte do diferencial de alíquota, sendo este tributo devido pelo adquirente, podendo o primeiro figurar ou não como mero responsável tributário por seu recolhimento. Isso porque a compensação de créditos é restrita apenas ao ICMS originado da incidência da alíquota interestadual. De outro modo, seria necessário ampliar a possibilidade de compensação também ao diferencial de alíquota.

O mais interessante disso tudo, como adiantado no início, são os reflexos desse novo regramento nas demais normas atualmente vigentes, tais como o acúmulo de créditos de ICMS e o risco de atuações.

Para melhor ilustrar essa questão, analisemos a situação das concessionárias de veículos novos e importados. Atualmente, essas mercadorias ingressam em seus estabelecimentos com recolhimento antecipado do ICMS, nos moldes do Convênio ICMS n. 132/1992. Ocorre que o ICMS-ST abrange apenas as saídas tratadas como internas, de modo que se a operação for interestadual e o adquirente for contribuinte do imposto estadual, deve-se apropriar o crédito da etapa anterior, buscar o ressarcimento do ICMS-ST e recolher o ICMS-ST ao Estado de destino, em caso de revenda, ou o diferencial de alíquota, se consumidor final.

O Estado de São Paulo, por exemplo, disciplina a apropriação do crédito da etapa anterior no artigo 271 do seu Regulamento de ICMS, prescrevendo que a concessionária deve lançar o crédito escritural em seu livro Registro de Apuração de ICMS, ainda que a mercadoria tenha sido recebida também de contribuinte substituído, ou seja, sem destaque do ICMS na nota fiscal. Já a disciplina do ressarcimento está prevista no seu artigo 269, IV e § 4º, podendo o crédito ser integral ou parcial, a depender se a mercadoria for recebida dos contribuintes substituto ou substituído, respectivamente.

Ambas as hipóteses são potenciais geradoras de acúmulo de crédito. A apropriação do crédito da etapa anterior dá-se pela alíquota interna (12%, em SP), que é superior à alíquota interestadual de mercadorias importadas (4%), resultando assim em crédito acumulado (vide artigo 71, I, do RICMS/SP). O ressarcimento, por seu turno, aumenta esse acúmulo, especialmente se a contribuinte inadvertidamente optar pela via, em tese, mais célere, qual seja a compensação escritural (vide artigo 270, I, do RICMS/SP).

Em síntese, antes do advento do novo regramento constitucional, as situações de acúmulo de crédito verificavam-se apenas quando ocorriam transferências entres estabelecimentos situados em Estados distintos ou quando as vendas eram entabuladas com consumidores finais contribuintes de ICMS. As vendas interestaduais com consumidores finais não contribuintes, eram tratadas como operações internas e, consequentemente, estavam abrangidas pela substituição tributária, o que muda a partir de janeiro de 2016. Os contribuintes, portanto, passarão a enfrentar mais corriqueiramente situações de acúmulo de crédito.

Não fosse suficiente, cada vez mais pessoas defrontar-se-ão com as dificuldades burocráticas apostas pelos Estados ao ressarcimento do ICMS-ST, seja por ausência de regulamentação (por exemplo a Portaria CAT 17/1999 do Estado de São Paulo não se presta a esse fim, como inclusive reconheceu a sua consultoria tributária), seja por excesso de obstáculos.

Por derradeiro, os riscos de autuação mencionados anteriormente também podem ser exemplificados pela situação das concessionárias de veículos. O Convênio ICMS 132/1992, além de dispor sobre a substituição tributária, impõe as concessionárias a responsabilidade pelo recolhimento do diferencial de alíquota nas operações com consumidores finais contribuintes. A partir de 1º de janeiro de 2016, entretanto, essa determinação legal estará em confronto com o que dispõe a Constituição Federal, o que implica, a rigor, em sua derrogação. Não obstante, corre-se o risco das autoridades fiscais exigirem o diferencial de alíquota dos remetentes das mercadorias, seja pela ausência de revogação expressa, seja por eventual argumento de especialidade desse convênio em relação ao Convênio ICMS 93/2015.

Embora esses argumentos não nos pareçam sólidos, haja vista que este último convênio apoia-se no texto constitucional, que delimita e reparte expressamente a responsabilidade pelo recolhimento do diferencial de alíquota, não se admitindo que atos infraconstitucionais contrariem a Carta Magna, subsistem os riscos de litígio tributário e seus reflexos negativos para os contribuintes.

Percebe-se, assim, que a nova sistemática constitucional, disciplinada pelo Convênio ICMS 93/2015, também alterou a abrangência das hipóteses de substituição tributária e trouxe consigo reflexos negativos para os contribuintes e também dúvidas, que podem colocar mais uma vez os contribuintes em litígio com os Estados, o que demonstra o quão curto é o cobertor tributário.

 

 

 

 

 

Autor: Rodrigo Bernardes Ribeiro  é advogado tributarista em Ribeirão Preto (SP), sócio do escritório Aires Vigo Advogados, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e mestrando da FGV Direito SP.


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