Autores: Onofre Alves Batista Júnior e Tarcísio Diniz Magalhães (*)
O trágico rompimento das barragens de dejetos de mineração da Samarco, empresa controlada pelas multinacionais Vale (brasileira) e BHP Billiton(anglo-australiana), já pode ser considerado, sem sombra de dúvidas, uma das maiores catástrofes ecológicas dos últimos tempos. Tendo lugar nas proximidades da cidade de Mariana (MG), acabou se alastrando por diversas outras paragens, trazendo consigo sérios danos à saúde, à vida humana, ao meio ambiente, ao desenvolvimento socioeconômico e aos patrimônios cultural, artístico, histórico de todos aqueles atingidos.
Se já não bastassem os incomensuráveis problemas associados à própria exploração minerária no território,[1] agora as comunidades locais se veem na eminência de arcar com os pesados ônus decorrentes de um desastre ambiental sem precedentes.
O lamentável episódio, ocorrido no início de novembro deste ano, foi responsável por produzir um verdadeiro tsunami de lama tóxica, contaminada que estava pelo minério de ferro removido do solo. Alcançando leitos de rios, essa gigantesca onda de poluentes cortou o estado de Minas Gerais de fora a fora, dizimando distritos e povoados e destruindo plantações nas áreas rurais, para, então, avançar rumo ao estado do Espírito Santo, até desembocar no oceano atlântico. Até o momento, foram encontrados onze corpos e várias pessoas ainda estão desaparecidas.[2]Rejeitos foram despejados por sobre a vegetação do entorno, cobrindo áreas de proteção ambiental e danificando a biota. Com a alteração na qualidade da água, o abastecimento público ao longo da bacia do Rio Doce e a geração de energia por hidrelétricas ficaram gravemente prejudicados, levando, ainda, ao extermínio da biodiversidade aquática, incluindo a ictiofauna, e de membros da fauna silvestre. O pior é que os danos são dinâmicos e ainda estão em expansão, já que a magnitude do desastre altera ciclos ecossistêmicos, perpetuando implicações negativas conhecidas comobottom-up (efeito cascata a partir do impacto na base da cadeia trófica).
Em termos econômicos, centenas de casas foram devastadas, deixando famílias desabrigadas, para não falar no comprometimento das propriedades e áreas urbanas lindeiras e das atividades conduzidas em toda a região, o que tem por consequência inevitável a erosão da capacidade dos municípios de sustentarem suas redes de políticas públicas básicas e de serviços essenciais à população. Prova disso é o alarmante relato do prefeito de Mariana de que a atividade de extração do minério — que teve de ser interrompida em razão do incidente — corresponde a uma das principais fontes de arrecadação municipal, equivalente a 80% da receita pública.[3]
Logo após o ocorrido, como já seria de se esperar, um sem-número de medidas judiciais foram tomadas contra os empreendedores responsáveis, incluindo acordos preliminares para cobrir gastos emergenciais no valor de R$ 1 bilhão e termos de ajustamento de conduta assinados com o MPF e com o MP-MG,[4] outras ações movidas pelo MP-ES, pelo MPT,[5] pelo estado de Minas Gerais[6] e, inclusive, instituições, como a Associação de Defesa de Interesses Coletivos (ADIC),[7] que requereu R$10 bilhões de indenização, assim como algumas ações populares, a exemplo da que fora aviada por um advogado e professor de direito, pleiteando o bloqueio de R$ 2 bilhões das contas da empresa.[8] O último passo foi dado pelos representantes dos governos da União, dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, ao lado de institutos federais e estaduais que integram as administrações públicas indiretas, os quais ingressaram como coautores de uma nova ação civil pública, no valor aproximado de R$ 20 bilhões.[9]
Como se pode perceber, há hoje em curso uma multiplicidade de ações tratando do mesmo tema, cada uma ao seu modo, mas todas buscando o ressarcimento dos prejuízos causados à coletividade. Ninguém há de duvidar que a existência de tantas ações judiciais, muitas com pedidos liminares, pode colocar em xeque a satisfação de todos os pedidos formulados contra os mesmos réus, em prejuízo da proteção dos bens jurídicos em questão.[10] É, ademais, completamente desarrazoado supor que todos os magistrados acionados poderão chegar, de forma harmoniosa, às mesmas conclusões, o que, no final das contas, significa dizer que há claro risco de sentenças conflitantes.
Tal cenário de tumulto processual é característico de desastres ambientais desse jaez, pois uma infinidade de agentes acaba sendo atingida, com repercussões diretas em várias esferas de interesse, que transcendem os prejuízos imediatamente apuráveis. Situação muito semelhante se deu em 20 de abril de 2010, com a explosão, no Golfo do México, da plataformaDeepwater Horizon, pertencente à Transocean e operada pela British Petroleum (BP). O incidente foi um dos piores já experimentados pelos Estados Unidos.[11]
Lá também, não tardou para que uma série de ações (civis e criminais) fossem propostas contra a BP e outros corréus, seja por iniciativa de particulares ou pelos poderes públicos dos Estados Unidos, incluindo ações individuais e coletivas. Ao todo, estima-se que chegaram a ser ajuizadas por volta de 130 ações, das quais 80 consistiam nas denominadas class actions. Dentre os inúmeros postulantes em juízo, estavam o ente federal estadunidense e os estados que beiram o Golfo, os quais foram os mais atingidos pelo derramamento maciço de óleo (Alabama, Florida, Louisiana, Mississippi e Texas). Um a um, a União e os cinco estados foram perante a Justiça americana requerer a aplicação de penalidades civis à BP Exploration and Production Inc. (BPXP) e às BP Entities, bem como a responsabilização dessas mesmas empresas por danos ambientais, custos incorridos pelas autoridades públicas na contenção da calamidade, diversos outros estragos econômicos e, até mesmo, perdas arrecadatórias (“tributos cessantes”), com fulcro no Oil Pollution Act, de 1990 (33 U.S. Code Chapter 40).[12]
Visando solucionar parte das perdas de ordem econômico-financeira, dentre outras reinvindicações, foi celebrado entre os Estados do Golfo um acordo com a BPXP, pelo montante de U$ 4,9 bilhões, para além de outros ajustes paralelos, em torno de U$ 1 bilhão. Mas isso não foi suficiente. Era, ainda, necessário encontrar uma solução global para as demais ações, incluindo a que havia sido proposta pelo governo federal. Assim, os seis entes da federação americana entenderam por bem reunir todos os processos em um único juízo, a fim de buscarem a composição de um acordo global, a ser submetido à homologação judicial.
Eis que, com arrimo no procedimento multidistrict litigation – MDL (28 U.S. Code §1407), foi apresentado, em 05/10/2015, ao Tribunal Distrital do Distrito Leste de Louisiana, localizado na cidade de Nova Orleans, um Consent Decree federal-estadual, por meio do qual a BP se comprometeu a pagar uma pesada multa, no valor de US$5,5 bilhões (mais juros), em decorrência das violações ao Clean Water Act, mais US$8,1 bilhões em lesões aos recursos naturais (já contabilizado US$1 bilhão que a BP havia se comprometido a pagar inicialmente), um adicional de até US$700 milhões, para cuidar de danos ambientais ainda desconhecidos, mas que possam vir à tona em um futuro próximo, e US$600 milhões para encerrar quaisquer outras reclamações, compreendendo as alegações fundadas no False Claims Act e o pagamento de royalties e taxas, somados ao dever de reembolsar despesas de avaliação do dano ambiental e outras correlatas. No total, essa solução chegou à cifra de mais de US$20 bilhões, sendo o mais caro acordo celebrado com uma única entidade da história do Departamento de Justiça dos EUA.
Tal qual se sucedeu no caso do Golfo do México, as causas envolvendo a Samarco e suas controladoras, tendo em vista a defesa de interesses coletivos, também demandam uma análise holística, de modo a permitir um melhor aproveitamento dos do rito processual e esgotamento dos meios de prova, evitando-se, dessa maneira, a fragmentação da solução final, que poderia ser pulverizada pela prolatação de decisões dissonantes. Prestigiando os princípios da efetividade, economicidade, uniformização e fim útil do processo na tutela coletiva, à luz do imperativo da segurança jurídica e da igualdade de tratamento, é natural que a reunião de todas as ações coletivas em um único juízo — seja por reconhecimento de litispendência, conexão ou continência — se apresente como a solução mais adequada à otimização dos atos processuais, e com melhores efeitos práticos, na busca pela verdade real. A excepcionalidade do caso exige do poder judiciário uma atuação dinâmica e eficaz.
O raciocínio jurídico deve se inspirar (por analogia) naquele que fundamenta a universalidade, indivisibilidade e unidade do juiz falimentar (artigo 3º combinado com artigo 76, caput, Lei 11.101/05), cuja justificativa está na necessidade de uma melhor condução processual de algo tão complexo como é a falência de uma empresa, por envolver uma infinidade de pessoas, bens e direitos.
Aliás, é também seguindo essa mesma linha que o Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15) estabeleceu mecanismos inovadores no trato da litigiosidade repetitiva e de massa. Já no § 3º de seu artigo 55, dispôs que “serão reunidos para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles.” Tal dispositivo se funda no princípio da igualdade, adotando de forma expressa a chamada teoria materialista da conexão, com o nítido propósito de impedir a configuração de situações contraditórias e a atribuição de tratamento anti-isonômico em relação a julgados que dizem respeito à mesma temática.[13] E para aprimorar ainda mais a resolução de problemas análogos, criou o chamado “incidente de resolução de demandas repetitivas” (IRDR), com previsão no Capítulo VIII do Título I do Livro III (artigos 976 e seguintes), por meio do qual poderá ser definido um “padrão-decisório” ou “decisão-modelo”, quanto à matéria de direito, a ser aplicado a casos idênticos.[14]
A questão que se coloca, por derradeiro, é que, como a última ação intentada tem escopo mais amplo, abarcando vários entes da federação, em especial a União Federal, é de se concluir que os juízes estaduais que vieram a receber ações coletivas versando sobre o rompimento das barragens deverão declinar de suas competências, em favor da Justiça Federal. Caberá, então, ao juiz federal ao qual foi distribuída a ação civil pública manejada pelos governos federal e estaduais promover a agregação dos feitos e adotar as medidas necessárias para o processamento e julgamento conjunto de todas essas demandas.
Ora, não é possível a reparação integral dos vários danos causados sem um plano global coerente, amplo e responsável, tampouco sem uma linha única de ação ajustada com todos os responsáveis. Termos de ajustamento de conduta isolados e ações retalhadas lançadas pelos diversos legitimados só podem dar ensejo a uma “colcha de retalhos”, incapaz de abrigar sequer os pés dos que tanto necessitam de amparo neste momento.
[1] Para uma análise crítica mais profunda, convidamos à leitura de BATISTA Jr., O.A. Minas Gerais pós-colonial? “Minérios com mais justiça”.RBEP, n. 109, p. 437-469, 2014 (http://www.pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-7191.2014v109p437/284).
[2] Cf. http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/11/06/o-que-se-sabe-sobre-o-rompimento-das-barragens-em-mariana-mg.htm.
[3] Cf. http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/11/prefeito-de-mariana-se-reune-com-samarco-e-grupo-acionista.html.
[4] Cf. http://www.conjur.com.br/2015-nov-16/samarco-assina-acordos-ministerio-publico-reparar-danos.
[5] Cf. http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2015/11/mpt-da-prazo-para-samarco-evitar-demissoes-em-massa.html.
[6] Cf. http://www.advocaciageral.mg.gov.br/comunicacao/banco-de-noticias/2305-estado-consegue-liminar-para-que-samarco-cumpra-obrigacoes.
[7] Cf.http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2015/11/17/interna_gerais,708880/acao-civil-publica-cobra-da-samarco-indenizacao-de-r-10-bilhoes.shtml.
[8] Cf.http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2015/11/20/interna_gerais,710086/nova-acao-popular-pede-o-bloqueio-de-r-2-bilhoes-da-samarco.shtml.
[9] Cf. http://br.reuters.com/article/domesticNews/idBRKBN0TK2YS20151201.
[10] Segundo Sávio Souza Cruz, secretário de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD), “‘O Ministério Público Federal conseguiu uma decisão que determina a contenção da lama para não atingir o mar. Já o Ministério Público Estadual do Espírito Santo obteve decisão favorável para que a lama seja empurrada em direção ao mar, já que a cidade de Linhares vem sendo inundada pelas águas barrentas. São esses conflitos que serão resolvidos com a união dos poderes federal, estaduais (Minas Gerais e Espírito Santo) e municipais (cidades atingidas)’ […].” Cf.http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2015/12/01/interna_gerais,713278/secretario-de-meio-de-ambiente-critica-acoes-judiciais-pulverizadas-co.shtml.
[11] A uma distância de cerca de 80km da costa do estado de Louisiana, o poço Macondo sofreu uma ruptura catastrófica, causando um incêndio que perdurou por alguns dias. O acidente levou à morte onze homens a bordo e, por um período de quase três meses, foram sendo derramados mais de três milhões de barris de petróleo nas águas do Golfo, atingindo até 2.000km da costa do Texas à Flórida. O óleo se espalhou por profundas correntes marítimas e chegou a centenas de milhas de distância do foço, produzindo manchas com mais de 110.000km2 de extensão e depositando resíduos químicos em mais de 1.000km2 do fundo do mar. Como resultado, a qualidade da água foi drasticamente afetada, expondo plantas aquáticas e animais selvagens a substâncias de alta nocividade. Em virtude do derramamento, foram danificadas atividades econômicas essenciais ao complexo regional, como a pesca, que ficou temporariamente paralisada. E ao olear centenas de milhas de praias, zonas húmidas costeiras, pântanos, foram exterminadas milhares de aves e outros animais marinhos, causando incalculáveis lesões de ordem econômica e natural. Cf.http://www.justice.gov/opa/pr/us-and-five-gulf-states-reach-historic-settlement-bp-resolve-civil-lawsuit-over-deepwater;http://www.justice.gov/enrd/deepwater-horizon.
[12] “33 U.S. Code § 2702 – Elements of liability
(a) In general
Notwithstanding any other provision or rule of law, and subject to the provisions of this Act, each responsible party for a vessel or a facility from which oil is discharged, or which poses the substantial threat of a discharge of oil, into or upon the navigable waters or adjoining shorelines or the exclusive economic zone is liable for the removal costs and damages specified in subsection (b) of this section that result from such incident.
(2) Damages
The damages referred to in subsection (a) of this section are the following:
(D) Revenues
Damages equal to the net loss of taxes, royalties, rents, fees, or net profit shares due to the injury, destruction, or loss of real property, personal property, or natural resources, which shall be recoverable by the Government of the United States, a State, or a political subdivision thereof.”
[13] OLIVEIRA, F.A.R. Competência. In: THEODORO Jr., H.; OLIVEIRA, F.A.R.; REZENDE, E.C.G.N. (eds.). Primeiras lições sobre o novo direito processual civil brasileiro: de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 64-81, p. 76; GAJARDONI, F.F. et al. Teoria geral do processo: comentários ao CPC de 2015 – parte geral. São Paulo: Forense, 2015 [e-book].
[14] Cf. http://www.conjur.com.br/2015-out-02/irdr-potencializa-resultado-julgamentos-processos-repetitivos; http://justificando.com/2015/02/18/o-irdr-novo-cpc-este-estranho-que-merece-ser-compreendido/.
Autores: Onofre Alves Batista Júnior é advogado-geral de Minas Gerais, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e Doutor em Direito pela UFMG.
Tarcísio Diniz Magalhães é assistente do Advogado-Geral do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito e Justiça pela UFMG.