Autor: Michelle Diniz Mendes (*)
A legislação sobre convênios é escassa. Basicamente, temos o Decreto 6.170/2007, a Portaria Interministerial MP/MF/CGU 507/2011 e o artigo 116 da Lei 8.666/1993, que preconiza que as disposições da legislação de licitações e contratos são aplicáveis, no que couber, aos convênios e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração.
Entretanto, mesmo nesse contexto de carência de uma legislação convenial mais robusta, a importância dos convênios aumenta a cada ano, seja por se tratar de um instrumento essencial para a implementação de políticas públicas em estados e municípios, seja pelo volume de recursos envolvidos, muitos decorrentes inclusive de emendas parlamentares.
A possibilidade de obter recursos da União por meio de transferências voluntárias atrai municípios e estados de todos os “tamanhos”, de norte a sul do país, muitos sem qualquer capacidade técnica e gerencial para executar o objeto proposto.
Nesse ponto, a atuação da Administração Pública Federal ganha maior relevância, pois identificar previamente a incapacidade técnica e gerencial do pretenso convenente significa resguardar os recursos públicos federais – que são finitos – para empregá-los em projetos que, de fato, venham a ser executados, evitando que se dê azo a celebração de convênios que se protraem no tempo sem qualquer perspectiva de conclusão, os quais fatalmente serão objeto de tomada de contas especial no Tribunal de Contas da União.
A despeito de nem o Decreto 6.170/2007 nem a Portaria Interministerial MP/MF/CGU 507/2011 serem específicos quanto à forma de comprovação da capacidade técnica e gerencial do proponente, consta no artigo 19, V, da aludida Portaria Interministerial a previsão de que a proposta de trabalho inserida no SICONV (Portal de Convênios e Contratos de Repasse da Administração Pública Federal) deve conter informações a esse respeito.
Na maioria dos casos, o atendimento desse requisito se dá mediante a apresentação de simples “Declaração de Capacidade Técnica e Gerencial”, no qual o Chefe do Poder Executivo do ente que propõe a celebração do convênio atesta que dispõe de pessoal capacitado para a condução do ajuste.
Sem sombra de dúvidas, trata-se de comprovação meramente formal e que muitas vezes não reflete a real condição do proponente. Basta ver a quantidade de convênios não executados de forma adequada e que são objeto de severas reprimendas da Corte de Contas da União.
A ausência de dispositivo legal apontando o exato meio de comprovação da capacidade técnica e gerencial do proponente não pode ser, de modo nenhum, escusa para a posição passiva que a Administração Pública Federal tem adotado, se contentando com meras declarações sem suporte fático.
Não se ignora que é um tanto quanto conveniente o atual quadro para os dois lados. O proponente não precisa se preocupar em demonstrar que detém efetivamente capacidade técnica e gerencial para executar o convênio. E o gestor do órgão ou entidade concedente não precisa destacar do reduzido quadro de pessoal servidores para se incumbirem de apurar a veracidade do quanto declarado pelo pretenso convenente.
Além disso, a falta de rigidez na comprovação da capacidade técnica e gerencial significa um obstáculo a menos para a concretização da transferência voluntária, o que tem grande valor para os gestores públicos federais em sua corrida anual para aumentar o percentual de execução orçamentária e garantir, assim, a manutenção ou até mesmo o incremento do orçamento do órgão ou entidade no exercício financeiro seguinte.
Essa postura, contudo, não é compatível com os preceitos constitucionais, com destaque para o direito fundamental à boa administração pública, muito bem retratado pelo professor Juarez Freitas nas seguintes palavras:
[…] trata-se do direito fundamental à boa administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais e correspondentes prioridades.[1]
Como uma das facetas desse direito, o professor Juarez Freitas faz menção ao direito à administração pública preventiva, precavida e eficaz, que aqui nos permitimos atribuir um viés não somente ambiental ou voltado a questões regulatórias ou de saúde pública, mas abrangendo também o bom uso dos recursos públicos.
Nessa diretriz, exsurge necessária a observância do princípio da precaução do qual decorre a obrigação de a Administração Pública atuar com cautela, de forma antecipada, adotando medidas que possam evitar a concretização no futuro de eventos danosos.
No caso dos convênios, é o dever de agir que deflui de fortes indícios de que os recursos públicos federais correm o risco de não serem adequadamente empregados pelo ente federado que pretende recebê-los.
A título de exemplo, Municípios ou Estados que tenham histórico de omissão no dever de prestar contas, de descumprimento injustificado do objeto de convênios ou contratos de repasse, de já terem causado dano ao Erário Federal ou mesmo de terem praticado outros atos ilícitos na execução de convênios ou contratos de repasse devem despertar na Administração Pública Federal atenção redobrada, visto que tais falhas guardam estreita relação com a ausência de capacidade técnica e gerencial.
Nesse ponto, vale ressaltar que não se desconhece o teor do disposto no artigo 72, parágrafos 5º a 8º, da Portaria Interministerial MP/MF/CGU 507/2011, entretanto não nos parece razoável que o simples fato de os recursos estarem atrelados a convênio firmado por prefeito ou governador anterior seja, por si só, suficiente para afastar qualquer dúvida quanto à capacidade do ente de executar plenamente o objeto proposto.
Veja-se que a omissão na prestação de contas de convênios firmados em gestões anteriores não deriva sempre e exclusivamente de atos ímprobos do administrador anterior. Em muitas situações, está relacionada à carência de pessoal com conhecimento suficiente para fazê-lo ou mesmo à completa inexecução do convênio por inúmeras razões.
Trazendo a questão para o campo da comprovação da capacidade técnica e gerencial, que é o foco desta reflexão, o princípio da precaução impõe ao gestor público o dever de aferir a verdade material da declaração que lhe é apresentada pelo proponente, sob pena de incorrer em omissão antijurídica.
Para tanto, poderia ser exigido que o pretenso convenente apresentasse, juntamente com a referida “Declaração de Capacidade Técnica e Gerencial”, atestados emitidos por outros órgãos e entidades da Administração Pública Federal de que já executou ou está executando, de forma satisfatória e tempestiva, convênios com características similares e de complexidade equivalente ou superior a do objeto a ser conveniado.
Além disso, pode ser exigida a comprovação de que o proponente possui em seu quadro de pessoal servidores com nível de formação apropriado para a condução de todas as etapas do convênio, inclusive no que diz respeito à inserção das informações no SICONV, indicando-se nome, cargo e matrícula funcional de cada um deles e comprometendo-se a noticiar eventual alteração dos responsáveis, cujos sucessores deverão ter nível de formação igual ou superior.
A implementação de tais medidas, ainda que não representem um cenário ideal, nos parece que contribuiria para diminuir a quantidade de convênios celebrados com entes que não conseguirão executá-los, permitindo, por conseguinte, que a destinação dos recursos públicos federais reservados para transferências voluntárias seja feita de forma mais consciente e criteriosa, no intuito de efetivamente atender às necessidades da população.
Autor: Michelle Diniz Mendes é procuradora federal, pós-graduada em Direito, Estado e Constituição pela Faciplac e atualmente coordena a Câmara Permanente de Convênios e Demais Ajustes Congêneres da Procuradoria-Geral Federal.