Autora: Mariana Matos de Oliveira (*)
Atendendo a compromissos internacionais firmados há bem mais de duas décadas e premido pelas manifestações das ruas, o Brasil resolveu promulgar, às pressas, o projeto de lei de combate a corrupção, que se encontrava adormecido no Congresso Nacional desde 2003.
Surgiu, assim, a Lei 12.846/13, que, sem aprofundamento das discussões jurídicas e das consequências socioeconômicas, instituiu um modelo de combate à corrupção muito mais severo e desproporcional do que qualquer outro implementado pelos países signatários dos mesmos tratados e acordos internacionais.
Afirma-se isso desde quando a Lei 12.846/13 fixou que a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas poderia extrapolar a reparação integral do dano e a aplicação de penalidades pecuniárias para alcançar a própria continuidade da atividade empresarial (suspensão/interdição integral ou parcial das atividades empresariais; dissolução da pessoa jurídica; perdimento de bens; proibição de participar de licitações e firmar contratos administrativos – artigo 19 do referido diploma legal).
Para que se possa perceber a diferenciação do tratamento legislativo do combate à corrupção no Brasil e nos demais países, basta constatar que nos mais rumorosos escândalos ocorridos nos Estados Unidos, as pessoas jurídicas envolvidas foram obrigadas a reparar todos os prejuízos causados ao erário público e a pagar altíssimas multas pecuniárias, mas tiveram integralmente preservada a sua atividade empresarial para manter os empregos e garantir a estabilidade econômica. (caso Siemens)
Percebendo o rigor excessivo da legislação editada e visualizando na prática o desvirtuamento de sua aplicação, o governo convenceu-se de que a eficácia do combate à corrupção jamais poderá ser confundida com a necessidade de aniquilamento das empresas envolvidas nos fatos investigados, principalmente diante da essencialidade da preservação da economia e do mercado de emprego.
E a solução veio com a edição da Medida Provisória 703, de 18 de dezembro de 2015, que introduziu alterações significativas no acordo de leniência para torna-lo atrativo e acessível às empresas jurídicas envolvidas na prática de atos de corrupção, sem descuidar da reparação integral do dano, da facilitação da apuração dos fatos delituosos e da identificação de todos os seus partícipes e, essencialmente, da prevenção de novos atos corruptores pela majoração das exigências de implantação de programas de compliancee de integridade corporativa.
A primeira alteração adveio da exclusão da limitação da celebração de acordo de leniência apenas com a primeira pessoa jurídica que manifestasse interesse em adir aos seus termos. Agora, todas as pessoas jurídicas envolvidas nos atos de corrupção poderão celebrar acordo de leniência, aumentando a celeridade e eficácia da apuração dos fatos e possibilitando uma melhor identificação de todos os participantes.
O escalonamento da ordem de adesão das pessoas jurídicas ao acordo de leniência terá repercussão, apenas, nos efeitos relativos a redução da multa pecuniária prevista no artigo 6º, inciso I, da Lei 12.846/13. A empresa pioneira na adesão ao acordo de leniência poderá ser beneficiada com a remissão integral da multa pecuniária, enquanto que as subsequentes somente terão direito a uma redução de até dois terços do valor da referida penalidade.
A Medida Provisória 703/15 também pretendeu restabelecer a segurança jurídica ao alterar o artigo 16, parágrafo segundo, incisos II e III, da Lei Anticorrupção para prever que o acordo de leniência passará a envolver todos os delitos vinculados aos fatos investigados, de modo que após a sua celebração e cumprimento, nenhuma outra multa pecuniária poderá ser atribuída à pessoa jurídica signatária, ainda que com fundamento em outras legislações (Lei 8.666/93 – Lei de Licitação e Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa).
De igual modo, com vistas a garantir o bem maior decorrente da continuidade da atividade empresarial, da manutenção dos empregos e da estabilidade econômica, a Medida Provisória 703/15 alterou o artigo 17 da Lei Anticorrupção para permitir que o acordo de leniência seja aplicado fora do âmbito da Lei Anticorrupção, desde que os atos e fatos investigados caracterizem delitos previstos em normas de licitações e contratos administrativos e que o ajuste tenha como objetivo a isenção ou a atenuação das sanções restritivas ou impeditivas ao direito de licitar e contratar.
Nessa mesma toada, a Medida Provisória 713/15 avançou ao acrescer o artigo 17-A para garantir que a celebração do acordo de leniência será suficiente a sobrestar todos os processos administrativos para apuração de irregularidades em licitações e contratos em curso que versem sobre os mesmos fatos delituosos por ele contemplados. Após comprovado o cumprimento do acordo de leniência, serão extintos os processos administrativos anteriormente mencionados.
Com a mesma intenção de impedir, injustificadamente, a suspensão/interdição das atividades empresariais, de garantir a continuidade dos contratos administrativos já firmados e de permitir a participação em licitações futuras ou naquelas em curso, a MP previu a possibilidade do Ministério Público e das Advocacias Públicas atuarem conjuntamente com os órgãos de controle interno da administração pública na definição dos termos do acordo de leniência.
Tal previsão teve por objetivo reunir, no corpo do acordo de leniência, todas as penalidades a serem aplicadas a pessoa jurídica infratora, que não mais ficará submetida a apuração da responsabilidade civil, nos moldes do artigo 19 da Lei Anticorrupção, fazendo com que a empresa, ao adir a tal ajuste, saiba, de antemão, todas as consequências jurídicas decorrentes dos atos infracionais por ela praticados.
Nem se alegue que tal inovação representará qualquer limitação à atuação do Ministério Público e das Advocacias Públicas, uma vez que as alterações introduzidas no “caput” e nos parágrafos 11º e 12º do artigo 16 condicionam a extinção e/ou impossibilidade de ajuizamento de ações judiciais para aplicação das penalidades previstas no artigo 19 à participação das referidas entidades no acordo de leniência.
E diferente não poderia ser, já que um dos objetivos almejados com o novo acordo de leniência é o da segurança jurídica, permitindo que as empresas conheçam, de antemão, todas as consequências advindas com a celebração do referido ajuste. Se o Ministério Público e as Advocacias Públicas participarem da elaboração dos termos do acordo de leniência, não há motivos para que, após a celebração e/ou cumprimento destes, possam revolver os fatos delituosos para aplicar outras penalidades.
Da mesma forma, se o Ministério Público e as Advocacias Públicas participarem dos termos do acordo de leniência, que deverá abranger todos os delitos provenientes dos atos e fatos apurados, não haverá razões de ordem lógica para, posteriormente a celebração e/ou cumprimento deste, utilizem as mesmas infrações para propositura de ações de responsabilização com base na lei de improbidade administrativa.
Por derradeiro, a Medida Provisória 703/15 também introduziu a participação diferenciada dos Tribunais de Contas na fiscalização dos acordos de leniência quanto a definição da reparação integral dos danos causados pelos atos de corrupção.
Em conformidade com o parágrafo 14 introduzido no artigo 16 da Lei Anticorrupção, tribunais de contas poderão instaurar procedimento administrativo contra a pessoa jurídica signatária do acordo de leniência, caso venham a entender que tal ajuste não abarcou a reparação integral de todos os prejuízos decorrentes dos atos de corrupção praticados, mantendo incólume a função constitucional atribuída a estas cortes de contas pelo artigo 71, inciso II, da Constituição Federal.
Verifica-se, assim, que as alterações introduzidas pela MP mostram ser possível alcançar, a um só tempo, a garantia de reparação integral dos danos causados; a preservação da atividade empresarial (garantia de empregos e estabilidade econômica); a exigência de implantação de mecanismos de prevenção de atos corruptos futuros (programas de compliance e de integridade corporativa) e a identificação das pessoas físicas passíveis de responsabilização penal pelos ilícitos cometidos.
Portanto, só resta esperar que os brasileiros reconheçam que a eficácia do combate à corrupção não é sinônimo de aniquilamento de empresas, de devastação do mercado de trabalho e de incentivo a instabilidade econômica, para que se possa, então, enaltecer as práticas que conduzam não só a reparação integral dos danos causados ao erário público (empresas falidas não ressarcem prejuízos causados), mas principalmente a mudança da mentalidade corporativa pela disseminação de programas e ações decompliance.
Autora: Mariana Matos de Oliveira é sócia da Oliveira e Leite Advogados; Procuradora do Estado da Bahia; Diretora do Centro de Estudos de Sociedades de Advogados (CESA) e diretora financeira do Instituto Latino Americano de Estudos Jurídicos (ILAEJ).