Autores: Gamil Föppel El Hireche e Pedro Ravel Freitas Santos (*)
“… O Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço de sua impunidade para “fazer Justiça” o que o Direito Penal repugna desde os tempos de Beccaria…” [1]
Na sociedade civil, seguramente há quem pense tratar-se a delação premiada de um instituto novo. Ledo e rematado engano[2][3]. Cuida-se de vetusto e antigo meio de prova, questionável por diversos vieses[4]. No presente texto, não nos dedicaremos à análise de qualquer outro aspecto das delações que não seja o da estrita e mera legalidade, notadamente em relação às repercussões jurídicas da delação. De fato, muitos se questionam como seria possível ao estado juiz aplicar penas de dezenas de anos em regime de prisão domiciliar, como tem ocorrido no âmbito da tal investigação[5].
Diga-se ao leitor que este não pretende ser um artigo científico, acadêmico. A finalidade é trazer esclarecimentos a respeito de um instituto tão debatido e em voga. Somente isso. Explicar, para qualquer pessoa, de qualquer área, quais são as consequências da delação premiada no Brasil e evidenciar que, decisivamente, a operação “lava jato” está em descompasso com a legalidade.
O leitor deve ser advertido que a regra básica do Direito Penal é o princípio da legalidade. A legalidade é o início e o fim do ordenamento jurídico. Isso ocorre para evitar abuso por parte do estado, tiranias em nome da busca da Justiça. Por um lado, é necessário proteger bens jurídicos e a própria sociedade, de outra banda, necessário se faz evitar que o investigado, ou mesmo condenado, seja vítima do totalitarismo do Estado. Como adverte Hassemer: “A lei não é, para o afetado, apenas o fundamento de sua condenação, mas também a proteção contra o excesso, a garantia da proporcionalidade e do controle”[6]. Antes da adoção do princípio da legalidade, os jurisdicionados, as pessoas, ficavam ao bel prazer daqueles que diziam o direito julgar como quisessem. A legalidade é, dita de forma bem singela e simples, ao mesmo tempo, uma proteção para o Estado e para as pessoas.
Diga-se ainda ao leitor (informação que pode ser confirmada com qualquer pessoa da área) que as normas penais são cogentes, ou seja, não podem ser alteradas pela vontade das partes, nem mesmo em acordo feito com o Ministério Público (que, antes de acusador deve ser fiscal da lei) e homologado pelo Judiciário.
Com essa colocação introdutória, caro leitor (repita-se que você pode confirmar isso com qualquer estudante de Direito Penal), saiba de duas coisas: a legalidade rege os pressupostos de todos os institutos do Direito Penal, bem como rege todas as suas consequências, em todo e qualquer caso.
Pois bem. No âmbito da tal operação, tem sido relativamente frequente ver penas elevadíssimas, altíssimas, aplicadas em regime de prisão domiciliar, ao fundamento de que se trata de um réu delator. Consoante se verá ao longo deste texto, tais conclusões são manifesta e absurdamente ilegais, de nada adiantando falar que “a lei precisa de alguns ajustes”[7]. Efetivamente, ao regrar as consequências para o réu delator, o caput do artigo 4° da Lei 12.850/2013, trata, in verbis:
Art. 4°. O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder operdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
Primeiramente, advirta-se que ao dizer que o juiz poderá, em verdade, impõe-se ao magistrado um dever. Trata-se, pois, de um poder-dever. Preenchidos os requisitos, a concessão é obrigatória. A lei é de clareza solar e somente permite uma de três alternativas: 1) aplicação de perdão judicial; 2) redução de pena de um a dois terços; 3) substituição por penas alternativas (obviamente, respeitadas todas as regras de substituição).
Se as delações premiadas existem, o que se espera, minimamente, é que sejam feitas de acordo com a lei. Vale lembrar que o Direito Penal é pautado na noção de legalidade estrita. Jamais se poderá viver um Direito Penal em que a legalidade estrita ceda lugar à legalidade da emergência/conveniência.
Para que não paire qualquer dúvida, há de se dizer que a prisão domiciliar, no Brasil, somente é cabível nas seguintes hipóteses: O artigo 117 da Lei de Execuções Penais prevê que “somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de: I — condenado maior de 70 (setenta) anos; II — condenado acometido de doença grave; III — condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV — condenada gestante”.
Já no Código de Processo Penal, a prisão domiciliar é tratada no artigo 318 como uma das hipóteses de substituição de prisão preventiva (de natureza processual, portanto, inaplicável a quem já foi condenado). No Código de Processo Penal, a prisão domiciliar tem lugar quando: “Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (redação dada pela Lei 12.403, de 2011); I — maior de 80 (oitenta) anos; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); II — extremamente debilitado por motivo de doença grave; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); III — imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); IV — gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. (incluído pela Lei 12.403, de 2011). Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo. (Incluído pela Lei 12.403, de 2011)”.
Ou seja, caro leitor, como no Direito Penal todos os institutos devem ser sevos à lei, somente se aplica prisão domiciliar nas hipóteses retromencionadas, onde não se leu hipótese de aplicação ao réu delator.
Assim, leitor, goste-se ou não, você já concluiu que não é possível legalmenteaplicar penas de dezenas de anos em regime de prisão domiciliar. Essas penas são, pois, absurdamente ilegais.
Tenta-se, com os acordos de delação premiada, modificar-se a ordem jurídica e os procedimentos (garantias) existentes no ordenamento pátrio. Por evidente, não pode ficar a critério do juízo, a escolha do regime de cumprimento da pena. Critérios existem para serem obedecidos, não cabendo ao Judiciário a perigosa e inconstitucional função de legislar positivamente.
Pois bem.
O acordo de delação premiada — ou colaboração, como eufemisticamente prevê a Lei 12850 — possui consequências, definidas na própria lei de organização criminosa. Questiona-se: qual a dificuldade de se conceder o perdão judicial ou mesmo reduzir/substituir as penas?
Por outro lado, a legalidade estrita é malferida, ao passo em que se aplicam regimes de cumprimento de pena inexistentes, chegando-se à aberrante condenação em dezenas de anos e a concessão de prisão domiciliar. A sociedade civil não pode se esquecer de todo e qualquer juiz ou presentante ministerial deve respeito às leis do país. E não é por outro motivo que o Código Penal começa, justamente no artigo primeiro, tratando do princípio da legalidade.
Mas por que tais aberrações e ilegalidades vêm acontecendo?
No âmbito da tal operação, vê-se um invulgar e incomum preocupação com a opinião pública. Relativamente frequente, nas decisões relacionadas à tal operação, haver a menção a “propiciará assim não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da administração pública e da própria Justiça criminal”.
A sociedade civil, então, precisa começar a perguntar: por que não se concedeu perdão judicial? Por que não se aplicaram as penas e depois as mesmas foram reduzidas, aplicando a diminuição em até dois terços? Por que um condenado a dezenas de anos de prisão ficará em regime de prisão domiciliar, nunca sendo demais sublinhar que há a possibilidade, ao menos em hipótese, de um delator voltar a delinquir…
A resposta é elementar…
Por um lado, possivelmente, os adeptos do tal garantismo penal integral não aceitariam que um delator ficasse sem pena, porque isso representaria uma “proteção insuficiente de bens jurídicos”. De mais a mais, a tal opinião pública não compreenderia como um delator premiado sairia com perdão judicial — causa extintiva de punibilidade, em decisão declaratória da extinção de responsabilidade criminal. Dito de forma mais clara e direta: perdão judicial seria colocar fim a qualquer tipo de responsabilidade criminal. A lei prevê isso. E, como se deve observância às leis, era uma alternativa viável, que, seguramente, não atenderia aos anseios punitivistas da maioria das pessoas.
De outra banda, o que adiantaria a um delator, condenado a dezenas de anos de prisão, ter sua pena reduzida em dois terços se isso, ao fim e ao cabo, o levaria para a prisão em regime fechado, de todo jeito. O leitor imagina, em são consciência, que alguém delataria para assumir uma pena de, por exemplo, dez anos em regime inicial fechado? Seguramente que não. A alternativa seria um desestímulo para as delações e aí… Já viu…. Ninguém delataria mais….
Qual a alternativa, então: legislar no caso concreto — e sobre isso há um eloquente e ensurdecedor silêncio do Ministério Público e também da Ordem dos Advogados do Brasil. Criou-se um remendo maldito, uma forma de manter um apelo aos desejos de delação sem que se cumpra a lei.
E qual será a consequência jurídica de tais ilegalidades para a investigação?
Bem, isso, o tempo demonstrará. Mas se as pessoas disseram o que disseram com a promessa de um prêmio ilegal — o que se imagina possa ter ocorrido, certo é que a delação não pode ser mantida. Não se pode manter um instituto quando a consequência prometida é uma ilegalidade manifesta.
Mas isso é assunto para outro texto…
Autores: Gamil Föppel El Hireche é advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de Execuções Penais.
Pedro Ravel Freitas Santos é pós-graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Graduado em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).