Normas fundamentais e negócios processuais no novo CPC

Autoras: Rogéria Dotti e Gilberto Andreassa Junior (*)

 

A poucos dias de entrar em vigor o novo Código de Processo Civil, ganha importância o debate de temas até então pouco explorados pela doutrina e que poderão influenciar a aplicação de várias regras processuais.

Em um primeiro momento, vale recordar as principais tendências do novo código: priorização do mérito, cooperação real entre as partes e o juiz da causa, fortalecimento do dever de fundamentação, amplo contraditório, busca efetiva pela conciliação entre as partes litigantes, respeito aos precedentes judiciais, e, por fim, a valorização da vontade das partes em relação aos atos do processo.

Dito isso, cumpre delimitar e analisar as normas fundamentais do processo civil que estão elencadas nos doze primeiros artigos do Código, os quais certamente possuem enorme influência sobre as demais alterações trazidas pelo legislador.

Em uma leitura perfunctória do artigo 1º do novo CPC, percebe-se que o legislador, de certa forma, deixou de lado o formalismo presente no CPC/73, trazendo o que alguns doutrinadores chamam de neoprocessualismo, que seria a atuação do direito processual com vistas ao direito constitucional (neoconstitucionalismo).

No artigo 2º fica estabelecido que “o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei”. Aqui resta consagrado o princípio da demanda, também conhecido como princípio dispositivo em sentido material.

O artigo 3º reproduz o que já encontramos no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. Trata-se do direito fundamental de acesso à justiça. E os parágrafos do mesmo dispositivo preveem a permissão da arbitragem e a busca incessante na solução consensual dos conflitos.

Conforme citado no início do texto, a nova lei tem uma preocupação bastante relevante em relação à conciliação entre as partes. Diversamente do que ocorre no CPC/73, a partir da entrada em vigor do CPC/2015, as partes serão intimadas/citadas a comparecer na audiência conciliatória antes mesmo de apresentar qualquer tipo de manifestação no processo. Ademais, quando uma das partes tiver interesse na conciliação/mediação, a mesma se torna obrigatória para ambas, sob pena de aplicação de multa (artigo 334, § 8º, novo CPC).

Já no artigo 4º, extrai-se que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa” [1]. Ou seja, trata de confirmação do que prevê o artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.

Tal premissa certamente está relacionada a um desejo geral da população, a qual anseia por um Poder Judiciário mais ágil. Por outro vértice, é evidente que não se pode confundir a busca pela razoável duração do processo com um processo célere, mas que não assegure garantias constitucionais essenciais.

Adiante, o novo CPC, em seu artigo 5º, determina que “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”. Trata-se, claramente, do dever geral de probidade. O mais relevante é que tal norma introduz um dever de respeito à boa-fé objetiva, seguindo uma tendência do direito privado já constante no Código Civil de 2002. Ou seja, para além da verdadeira intenção das partes, é fundamental que estas atuem de acordo com um padrão médio e esperado de conduta. Tal mandamento complementa o artigo 77 do novo CPC que explicita os deveres dos litigantes e de seus procuradores.

Em síntese, é possível descrever o artigo 5º do novo CPC como um verdadeiro princípio, enquanto que os artigos 77 a 81 assumem a função de regras, disciplinando deveres e impondo sanções.

Mais à frente, estabelece o novo CPC um dos princípios mais importantes e que certamente norteará as decisões tomadas pelas partes e pelos juízes: o princípio da cooperação.

O artigo 6º do novo CPC determina que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Ou seja, as partes deixam de agir de forma individualizada e passam a atuar em conjunto com o juiz na busca de uma solução. Institui-se assim um “espaço não apenas de julgamento, mas de resolução de conflitos” [2].

Percebe-se, assim, que tanto o magistrado como as partes devem se engajar na causa, a fim de que a decisão final seja a mais justa possível.

O artigo 7ª, por sua vez, refere-se ao princípio da isonomia, o qual já está colacionado no caput do artigo 5º, da Constituição Federal. Ao estabelecer que “é assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais”, o legislador procurou reforçar o direito fundamental à isonomia que já estava positivado, mas muitas vezes era deixado de lado pelos julgadores. A importância do mandamento constitucional é tamanha que o novo CPC reiterou o princípio no artigo 139, inciso I.

Ainda se utilizando de mandamentos da Carta Magna, a nova lei colacionou no artigo 8º os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, publicidade e eficiência.

Outro ponto a ser destacado é a questão do amplo contraditório (artigos 9º e 10º). O artigo 9º assegura que “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”, salvo as exceções previstas posteriormente (incisos I, II e III). Já no artigo 10 fica estabelecido que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.

Como se vê, não bastasse a necessária cooperação entre os participantes do processo e o dever de fundamentação por parte dos juízes, o novo CPC se preocupou em conceder às partes o direito ao contraditório, ainda que a matéria possa ser decidida de ofício pelo juiz. Isto certamente poderá reduzir recursos, uma vez que as partes, através do contraditório, podem auxiliar na construção de melhores decisões judiciais.

Por fim o legislador delimitou nos artigos 11 e 12 o dever de fundamentação por parte dos juízes, assim como a necessidade de julgamento das demandas em ordem cronológica. Fato é que o 12º artigo merece um texto próprio, sobretudo porque a tendência é de que o mesmo seja substancialmente alterado pelo Congresso Nacional antes mesmo da entrada em vigor do novo CPC.

Mas, a pergunta que poderia surgir é: qual a relação entre essas normas fundamentais e os negócios processuais? Em outras palavras, os valores inerentes ao novo Código de Processo Civil podem influenciar a interpretação dessas convenções sobre processo?

A resposta é clara: o legislador de 2015 propõe um processo dialógico (artigos 9º e 10), marcado pela cooperação (artigo 6º) e pela resolução conjunta dos conflitos. Tal ideário tem grande vinculação com o princípio do autorregramento da vontade [3], o qual constitui o fundamento para os negócios processuais. Nesse sentido, o processo cooperativo surge como uma alternativa entre o modelo publicista (onde domina a posição central do juiz) e a concepção garantista ou adversarial (com ampla autonomia das partes). Ele harmoniza a tensão entre liberdade individual e poder estatal. “O processo cooperativo nem é processo que ignora a vontade das partes, nem é processo em que o juiz é um mero espectador de pedra” [4].

No chamado negócio processual (artigo 190, novo CPC), “versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”. E, nos termos do que prevê o artigo 200, o negócio processual produz efeitos desde logo, independendo de homologação judicial na grande maioria dos casos [5].

A presente técnica processual é inovadora e concede força às partes, isto porque podem elas criar procedimentos próprios. A base é a arbitragem. O raciocínio é simples: se as partes podem inclusive retirar do Poder Judiciário a solução de um conflito de interesses, atribuindo-o a um árbitro, não deve haver óbice à sua manutenção perante o Poder Judiciário mas em um processo por elas redesenhado [6].

A propósito, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), grupo formado por professores de processo civil de todo o Brasil, já vem se manifestando a respeito da admissibilidade dos seguintes negócios processuais: pacto de impenhorabilidade, acordo para ampliação ou redução de prazos das partes de qualquer natureza, dispensa consensual de assistente técnico, convenção para afastar a possibilidade de execução provisória, dentre outros. Merece destaque o Enunciado 06: “o negócio jurídico processual não pode afastar os deveres inerentes à boa-fé e à cooperação”.

Obviamente, a implementação do negócio processual deve obedecer certos limites, não podendo as partes fazer acordo para modificação da competência absoluta e/ou acordo para supressão da primeira instância (Enunciado 20 do FPPC). Também não se pode acordar a não intervenção do Ministério Público ou a dispensa dos requisitos da petição inicial. Ainda, não será considerada válida convenção pré-processual oral.

Em suma, o princípio do autorregramento da vontade não pode atingir normas processuais voltadas à proteção de direitos indisponíveis. Nesse sentido não é possível negócio processual que afaste o reexame necessário ou que trate de qualquer outro tema reservado à lei [7].

O que se percebe, na realidade, é que com os mandamentos do novo CPC os advogados ganham uma importância ainda maior, pois deverão esclarecer seus clientes acerca das possibilidades supracitadas em eventual contrato perante terceiro.

Outras iniciativas que também podem ser adotadas pelas partes em contratos bilaterais são: renúncia ao duplo grau de jurisdição e número máximo de testemunhas em caso de eventual demanda judicial, convenção sobre prova, limite de perícia e indicação de quem supostamente irá custear, julgamento antecipado do mérito convencional. Ainda poderá ser criado procedimento para ouvir testemunhas em cartório e, inclusive, já poderão as partes tratar de eventual execução (por exemplo, afastando a impenhorabilidade de bens de família).

Por outro lado, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), em encontro realizado em agosto de 2015, editou 62 enunciados de interpretação às novas regras. Tal entendimento tende a ser seguidos pelos juízes. O Enunciado 37, por exemplo, estabelece que “são nulas, por ilicitude do objeto, as convenções processuais que violem as garantias constitucionais do processo, tais como as que: a) autorizem o uso de prova ilícita; b) limitem a publicidade do processo para além das hipóteses expressamente previstas em lei; c) modifiquem o regime de competência absoluta; e d) dispensem o dever de motivação”.

Importante lembrar que o próprio novo CPC, em seu artigo 190, parágrafo único assegura que “de ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade”. Ainda, em seu artigo 63, § 3º, determina que “antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu”. Em outras palavras, a própria lei estabelece uma forma de controle por parte do magistrado.

Nesse sentido, prevendo questões futuras, a Enfam procurou formular enunciados limitando a atuação dos litigantes. Por exemplo, na visão dos magistrados presentes ao encontro, a regra do artigo 190 do CPC/2015 não autoriza às partes a celebração de negócios jurídicos processuais atípicos que afetem poderes e deveres do juiz, como por exemplo a limitação dos poderes de instrução ou do controle de legitimidade das partes.

Conforme já mencionado, tanto a Enfam quanto o FPPC procuraram estabelecer orientações, através de enunciados, a fim de que a interpretação dos novos dispositivos ocorra da melhor maneira possível. Afinal, ainda que as garantias constitucionais não sejam negociáveis, é possível estabelecer alterações quanto ao procedimento e quanto aos deveres, ônus e faculdades.

Vale aqui citar, em especial, os Enunciados 16 a 21 do FPPC. Dentre eles, o Enunciado 18 estabelece que “há indício de vulnerabilidade quando a parte celebra acordo de procedimento sem assistência técnico-jurídica”. Isto é, ao elaborar contratos contendo negócios processuais / procedimentos, importante a presença de advogados de ambas as partes, a fim de que futuramente não se alegue abusividade ou desconhecimento das regras. Ademais, em atendimento ao Enunciado 38 da Enfam, “somente partes absolutamente capazes podem celebrar convenção pré-processual atípica”.

Mas há pontos polêmicos. De um lado, o Fórum Permanente de Processualistas Civis emitiu o Enunciado 21, afirmando ser possível a convenção entre as partes para realização de sustentação oral ou acordo para ampliação do tempo da mesma. Por outro, a Enfam concluiu que “por compor a estrutura do julgamento, a ampliação do prazo de sustentação oral não pode ser objeto de negócio jurídico entre as partes” (Enunciado 41).

Qual será então a orientação a ser seguida? A resposta virá depois de algum tempo de debate, mais precisamente após a aplicação prática das novas normas do Código de Processo Civil.

De qualquer forma, como alerta Flávio Luiz Yarshell, o sucesso ou o fracasso das novas disposições depende do esforço e da boa vontade de todos os envolvidos. “Só então saberemos se caminhamos, de fato, para uma nova era” [8].

 

 

 

 

Autores: Rogéria Dotti é advogada, mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Conselheira nata e ex-presidente do Instituto dos Advogados do Paraná. Foi Coordenadora Geral da Escola Superior da Advocacia da OAB Paraná.

Gilberto Andreassa Junior é sócio-fundador do Andreassa & Andreassa – Advogados Associados. Professor Universitário, mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná. Membro Honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Membro de Comissões da OAB/PR.

 


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