Autor: Carlo Velho Masi (*)
Depois de anos de espera, finalmente entra em vigor a tão esperada Lei de Repatriação. Desde que o Banco Central passou a mapear os estoques de ativos mantidos por investidores[1] brasileiros no exterior, no ano de 2002, o volume de recursos só tem aumentado. No ano-base 2014, os ativos totais ultrapassaram US$ 394 bilhões e o número de declarantes chegou a mais de 37 mil[2].
Todavia, como já alertávamos em 2012[3], esses dados oficiais servem apenas de estimativas para a verdadeira “cifra-negra” de divisas remetidas e mantidas no exterior à margem do controle por parte dos órgãos oficiais. Fala-se em centenas de bilhões de dólares que teriam sido enviados ou auferidos no estrangeiro e não regularizados por contingências econômicas brasileiras.
A Lei 13.254, de 13 de janeiro de 2016, oriunda do PLS 298/15 (de autoria do senador Ranolfe Rodrigues, do PSOL-AP), manteve o propósito inicial de regularização e/ou repatriamento de ativos não declarados no exterior, a fim de que possam ser reinvestidos internamente, trazendo benefícios ao Brasil[4], porém a redação final é muito distinta dos primeiros projetos (PLCs 113/03, 5.228/05 e PLSs 424/03 e 443/08), mais abrangente e completa em alguns pontos.
Como sói ocorrer em legislações polêmicas (especialmente do ponto de vista do princípio da isonomia), apresenta falhas, fruto da ausência de uma revisão técnica adequada. Não se pode dizer, contudo, que não houve tempo para o debate, afinal as primeiras propostas surgiram na Câmara dos Deputados em 2003 e, desde então, vinham sendo resgatadas em períodos de crise.
Agora, porém, “nunca antes na história deste país” vivemos uma crise econômica tão profunda e, portanto, os projetos foram ressuscitados no afã de injetar uma vultosa quantia de recursos no país, supostamente contribuindo para o aquecimento do mercado.
São inúmeras as questões pendentes até que a Receita Federal regulamente (art. 10) a lei que cria o “Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária” (RERCT) de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no País.
Creio que dois artigos merecem elogios:
Art. 7º, § 1º – A divulgação ou a publicidade das informações presentes no RERCT implicarão efeito equivalente à quebra do sigilo fiscal, sujeitando o responsável às penas previstas na Lei Complementar no 105, de 10 de janeiro de 2001, e no art. 325 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e, no caso de funcionário público, à pena de demissão.
Não tenho dúvidas de que a imprensa adoraria ter conhecimento daqueles que detêm recursos no exterior irregularmente, ou seja, praticaram diversos crimes, porém estão sendo “graciosamente” anistiados. Não olvidemos que, quando se está na esfera da chamada “criminalidade do colarinho branco”, as penas mais duras e simbólicas são aquelas que afetam a credibilidade e a confiança nas pessoas e nas instituições envolvidas.
Art. 11. Os efeitos desta Lei não serão aplicados aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, nem ao respectivo cônjuge e aos parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação desta Lei.
Embora tal artigo crie uma exceção de duvidosa constitucionalidade, certamente tem ampla aprovação pública, afinal, a título de curiosidade, um dos maiores defensores da repatriação é o hoje preso senador Delcídio do Amaral (PT-MS), autor do PLS 254/2009 e de substitutivo ao projeto que acabou aprovado. Qualquer questionamento sobre a origem de recursos evadidos por políticos em geral já determinou a criação de uma regra de afastamento do novo RERCT. Medida de caráter exclusivamente político e demagógico.
Ainda, numa leitura rápida da lei, fica a dúvida de quem vai assumir o risco de confessar a propriedade dos ativos não declarados nestas circunstâncias:
Art. 4º, § 12. A declaração de regularização de que trata o caput não poderá ser, por qualquer modo, utilizada:
I – como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal;
A confissão da propriedade dos ativos irregulares no exterior certamente coloca o interessado numa posição de potencial investigado.
O rol de crimes que serão anistiados no caso de quem conseguir vencer os diversos entraves legais (sendo o imposto e a multa, alcançando o total de 30% dos recursos repatriados ou aqui regularizados, o de menos) é o seguinte:
Art. 5º A adesão ao programa dar-se-á mediante entrega da declaração dos recursos, bens e direitos sujeitos à regularização prevista no caput do art. 4º e pagamento integral do imposto previsto no art. 6º e da multa prevista no art. 8º desta Lei.
§ 1º O cumprimento das condições previstas no caput antes de decisão criminal, em relação aos bens a serem regularizados, extinguirá a punibilidade dos crimes previstos:
I – no art. 1º e nos incisos I, II e V do art. 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990; [CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA]
II – na Lei no 4.729, de 14 de julho de 1965; [SONEGAÇÃO FISCAL]
III – no art. 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); [SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA]
IV – nos seguintes arts. do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando exaurida sua potencialidade lesiva com a prática dos crimes previstos nos incisos I a III:
a) 297; [FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO]
b) 298; [FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PARTICULAR]
c) 299; [FALSIDADE IDEOLÓGICA]
d) 304; [USO DE DOCUMENTO FALSO]
V – (VETADO);
VI – no caput e no parágrafo único do art. 22 da Lei no 7.492, de 16 de junho de 1986; [EVASÃO DE DIVISAS]
VII – no art. 1º da Lei no 9.613, de 3 de março de 1998, quando o objeto do crime for bem, direito ou valor proveniente, direta ou indiretamente, dos crimes previstos nos incisos I a VI; [LAVAGEM DE DINHEIRO – dispositivo não adequado à nova Lei nº 12.683/2012, que prevê que qualquer infração penal pode ser antecedente da lavagem]
VIII – (VETADO).
§ 2º A extinção da punibilidade a que se refere o § 1º:
I – (VETADO);
II – somente ocorrerá se o cumprimento das condições se der antes do trânsito em julgado da decisão criminal condenatória;
III – produzirá, em relação à administração pública, a extinção de todas as obrigações de natureza cambial ou financeira, principais ou acessórias, inclusive as meramente formais, que pudessem ser exigíveis em relação aos bens e direitos declarados, ressalvadas as previstas nesta Lei.
§ 3º (VETADO).
§ 4º (VETADO).
§ 5º Na hipótese dos incisos V e VI do § 1º, a extinção da punibilidade será restrita aos casos em que os recursos utilizados na operação de câmbio não autorizada, as divisas ou moedas saídas do País sem autorização legal ou os depósitos mantidos no exterior e não declarados à repartição federal competente possuírem origem lícita ou forem provenientes, direta ou indiretamente, de quaisquer dos crimes previstos nos incisos I, II, III, VII ou VIII do § 1º.
Conforme o caput do art. 1º (É instituído o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), para declaração voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no País, conforme a legislação cambial ou tributária, nos termos e condições desta Lei), os recursos devem ter origem lícita e, de acordo com o §2º do mesmo artigo esta condição precisará ser provada. Ora, talvez aí resida um dos maiores empecilhos à efetividade da legislação, qual seja, o de provar a origem de um recurso que já estava sendo mantido de forma obscura no exterior, possivelmente em algum “paraíso fiscal”.
A maior incongruência reside, porém, no §5º do art. 1º, quando prevê que “esta Lei não se aplica aos sujeitos que tiverem sido condenados em ação penal”, tendo sido vedado o inciso I, que previa a necessidade de trânsito em julgado da condenação para a exclusão. Ora, sendo suficiente a mera condenação em primeiro grau viola-se frontalmente o princípio da presunção de inocência, expresso na Constituição e em acordos internacionais firmados pelo Brasil.
A despeito dessas considerações, e muitas mais que certamente virão e chegarão ao Poder Judiciário, a estratégia é válida, mesmo sob o ponto de vista político-criminal (estratégia de enfraquecimento de organizações criminosas), e benéfica ao país, amoldando-se a políticas já devidamente testadas com êxito no exterior (Itália, Portugal, México, Argentina, Alemanha, Estados Unidos, Turquia, Suíça, etc.).
Autor: Carlo Velho Masi é advogado criminalista. Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal pela UFRGS. Pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal) e em Ciências Penais pela PUC-RS.