Autor: César Dario Mariano da Silva (*)
Foi sancionada com veto a Lei 13.245, de 12 de janeiro de 2016, que aumentou sensivelmente as prerrogativas profissionais dos advogados no que tange a investigações realizadas em todos os setores (criminal, civil ou administrativo).
A primeira observação que fazemos é que o diploma alterado traz os direitos do advogado e não do acusado ou investigado, o que é de extrema importância para entendermos o alcance que deve ser dado aos dispositivos de acordo com uma interpretação lógico-sistemática.
Sabemos que a investigação existe para que possa ser alcançada a verdade histórica a respeito de determinado fato, de modo que reduzamos ao máximo a margem de erro, uma vez que a verdade absoluta dificilmente é alcançada. A respeito da prova e da verdade já dizia Mittermaier:
“Um dedicado amigo da verdade reconhece que a certeza, que necessariamente o contenta, não escapa ao vício da imperfeição humana; que é sempre lícito supor o contrário daquilo que consideramos verdadeiro. Enfim, a fecunda imaginação do céptico, atirando-se ao possível, encontrará sempre cem razões de dúvida. Com efeito, em todos os casos se pode imaginar uma combinação extraordinária de circunstâncias, capazes de destruir a certeza adquirida. Porém, a despeito dessa possível combinação, não ficará o espírito menos satisfeito, quando motivos suficientes sustentarem a certeza, quando todas as hipóteses razoáveis tiverem sido figuradas e rejeitadas após maduro exame; então o juiz julgar-se-á, com segurança, na posse da verdade, objeto único de suas indagações; e é, sem dúvida, essa certeza da razão, que o legislador quis que fosse a base para o julgamento. Exigir mais seria querer o impossível; porque em todos os fatos que dependem do domínio da verdade histórica jamais se deixa atingir a verdade absoluta. Se a legislação recusasse sistematicamente admitir a certeza todas as vezes que uma hipótese contrária pudesse ser imaginada, se veriam impunes os maiores criminosos, e, por conseguinte, a anarquia (seria) fatalmente introduzida na sociedade.” (Tratado da prova em matéria criminal, p. 66, Editora Bookseller, 1997).
A investigação existe justamente para que se possa reconstruir o ocorrido, preservando-se os direitos constitucionais da pessoa investigada, mas sempre com a eficiente apuração dos fatos, sem o que não haverá investigação, mas um arremedo dela.
Por isso, a regra é que as investigações corram sob o manto do sigilo, que alcança o público em geral, mas não pode ser invocado para impedir o acesso do advogado do investigado aos autos da investigação.
A nova redação dada ao inciso XIV do artigo 7º do Estatuto da OAB, complementado pelos §§ 10, 11 e 12 do mesmo dispositivo, nada mais traz o que já era aplicado em investigações bem conduzidas. A Súmula Vinculante 14 possibilita o acesso aos autos da investigação criminal pela defesa, muito embora se refira àquela realizada por órgão com competência de Polícia Judiciária.
O Conselho Nacional do Ministério Público tratou de regulamentar as investigações do Parquet, propiciando o seu acesso pelo advogado e o limitando em outros, quando a elucidação do fato ou o interesse público exigir (Resolução 13/2006).
É certo que em determinadas hipóteses a defesa e o investigado não podem ter ciência, e muito menos acesso às investigações, sob pena de sua inutilidade. Nesses casos, como já previsto no artigo 20 do Código de Processo Penal, pode ser decretado o sigilo das diligências em andamento e que ainda não estejam documentadas nos autos.
Para possibilitar o amplo acesso dos advogados a autos de investigação de qualquer natureza, a Lei 13.245, de 12 de janeiro de 2016, deu nova redação ao artigo 7º, inciso XIV, da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil). Assim, o advogado poderá examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital.
No que tange a autos que correm em sigilo, a procuração faz-se necessária para o exame dos autos (art. 7º, § 10). Para que não ocorra risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências investigatórias, a autoridade que conduz as investigações poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentadas nos autos (art. 7º, § 11).
Ocorrendo a violação dos direitos do advogado de obter amplo acesso aos autos de investigação (inciso XIV do art. 7º), o fornecimento incompleto de autos ou de que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo, importará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável, quando agir com o intuito de prejudicar o exercício da defesa (art. 7º, § 12).
Por conta da limitação da súmula vinculante e visando o acesso a todo procedimento investigatório realizado por qualquer autoridade competente (Delegado de Polícia, Membro do Ministério Público, Auditor da Receita Federal, dentre outras), ocorreu a alteração legislativa.
No entanto, a novel norma deve ser interpretada de modo a não atrapalhar o êxito das investigações. Deve ser preservada a ampla defesa, mas esse direito não pode ser exercido a ponto de prejudicar investigações que correm em sigilo e que ainda não tenham sido documentas nos autos. Nessa hipótese, o contraditório será exercido em outro momento (diferido), de forma a não ocorrer prejuízo ao exercício do direito de defesa.
Com efeito, podendo o acesso do advogado a diligências em andamento, que ainda não estejam juntadas aos autos, causar risco ao êxito das investigações, deve a autoridade competente, fundamentadamente, limitar o acesso a provas que naquele momento não possam ser conhecidas pela defesa. Do contrário, não haverá mais investigações frutíferas que dependam do sigilo das diligências, o que certamente não é o espírito da lei.
Havendo abuso por parte da autoridade competente que impedir o pleno acesso do advogado às provas produzidas, visando prejudicar o exercício da defesa, implicará abuso de autoridade, com as consequências previstas em lei.
Outra norma que causa celeuma é a prevista no inciso XXI do artigo 7º, do Estatuto da OAB. Como já dito, referida prerrogativa é do advogado e não do investigado. E porque essa assertiva é importante?
O motivo é simples: somente quem tem advogado ou que exija a presença de um ao ato, o que já é previsto na Constituição Federal (art. 5º, LXIII), deverá ser assistido por ele. Dessa forma, como a prerrogativa é do advogado, quem não tem advogado e renunciar a esse direito, pode ser ouvido sem a sua assistência, não advindo desse ato qualquer consequência jurídica, como já ocorre atualmente.
O direito à assistência de advogado para depoimento ou interrogatório em investigação de qualquer natureza é disponível e, como tal, pode ser renunciado. Ninguém pode ser obrigado a contratar advogado para esse ato e não há norma legal que obrigue o Estado a nomear um por ocasião da fase investigatória.
Por outro lado, havendo advogado constituído ou exigindo o investigado a sua presença, o depoimento ou interrogatório não poderá ser realizado sem a assistência dele, sob pena de nulidade do ato, que alcançará os demais dele derivados ou decorrentes, contaminando-os.
Não serão alcançadas pela nulidade as provas produzidas que não guardarem nexo de causalidade com o depoimento ou interrogatório declarado nulo e nem quando as provas derivadas puderem ser obtidas de uma fonte independente das primeiras, aplicando-se analogicamente o disposto no artigo 157, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Penal.
E no que consiste a assistência de advogado prevista no inciso XXI, do art. 7º, do Estatuto da OAB?
Há quem defenda que está sendo inaugurado o contraditório no procedimento investigatório, o que não nos parece correto. O inquérito policial ou o procedimento investigativo do Ministério Público, ou outros semelhantes, continuam inquisitivos, não havendo necessidade de contraditório, muito embora possa ser facultado pela autoridade.
Não há qualquer norma legal que implique necessariamente a realização de reperguntas pela defesa. A assistência é para apenas acompanhar o ato, podendo o advogado instruir o assistido a não responder qualquer pergunta ou orientá-lo quanto ao que responder, além de inibir eventual coação.
A norma, se quisesse, poderia ter feito menção expressa à possibilidade de reperguntas pela defesa, como o fez para a elaboração de quesitos em perícias ou para a apresentação de razões, que nos parece devam ser escritas.
E no caso de elaboração do auto de prisão em flagrante, como deve a autoridade agir?
Não havendo renúncia à presença de um advogado e não estando ele presente, parece-nos que a saída é não ouvir o autuado naquele momento, o que poderá ocorrer em outra oportunidade, com a assistência do causídico.
Nessa situação poderá ocorrer sério prejuízo ao autuado, que não poderá dar a sua versão dos fatos, que, não rara vezes, importa a não lavratura do auto de prisão em flagrante, como ocorre nos casos de legítima defesa.
Em casos extremos como o narrado, parece-nos razoável que a autoridade, constatado o fato por outros meios de prova, se necessário, fundamentadamente, inquira o autuado e não lavre o flagrante, uma vez que o ato, muito embora contrário à norma que expressamente determina a sua nulidade absoluta, não trouxe prejuízo à defesa, pelo contrário, beneficiou-a.
Questões como as colocadas surgirão no dia-a-dia forense e caberá à doutrina e jurisprudência dar as interpretações razoáveis, que, em pouco tempo, estarão sedimentadas.
Não devemos nos esquecer, porém, que não é dado ao intérprete realizar mera interpretação gramatical dos novos dispositivos. A hermenêutica pressupõe a procura do sentido da lei ou da norma, que deve ser interpretada no contexto do sistema vigente para que possa alcançar a sua finalidade, que sempre deve ser a busca da justiça e da paz social.
Autor: César Dario Mariano da Silva é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito das Relações Sociais e professor da PUC-SP, Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e da Academia da Polícia Militar do Barro Branco.