STJ erra ao exigir procuração no recurso em Habeas Corpus

Autor: Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró (*)

 

Embora tratado no título de recursos, é inegável que o habeas corpus é uma ação. Ação constitucional para a tutela da liberdade de locomoção.

De tão relevante o direito envolvido, que se tratou de dar (legitimar qualquer pessoa ao exercício de tal ação constitucional) tal ação constitucional a qualquer pessoa, sendo o único exemplo de ação popular no Direito brasileiro aplicável ao processo penal.

Sem dúvida, a mais ampla delas, podendo ser proposta por qualquer pessoa, física ou jurídica, nacional ou estrangeira.

Parece que, diante de recente exigência jurisprudencial, não é demais lembrar que, sendo o habeas corpus uma ação popular, quando interposta por um advogado em favor de seu cliente, o causídico será o Impetrante e o acusado, que no processo penal condenatório ocupa a posição de réu, será o paciente do habeas corpus. Isto é, o beneficiário da ordem, aquele a quem se imputa sofrer o constrangimento ou ameaça à liberdade. Mas parte, o réu não será na ação de habeas corpus.

O autor da ação de habeas corpus é o impetrante, e não o paciente, o que é absolutamente inquestionável. Evidente, pois, que se um advogado interpõehabeas corpus em favor do seu cliente, o advogado é o Autor da ação, agindo em seu nome próprio. Seu cliente será o Paciente do habeas corpus, mesmo sem dele ser parte, isto é, sem ocupar o polo ativo ou passivo do remédio constitucional.

Em sendo o advogado que impetra a ação de habeas corpus, ocupa o polo ativo e, evidentemente, tal condição não mudará, como num passe de mágica, na hora de interpor o recurso ordinário em habeas corpus. Não raro se vê, na praxe forense, inclusive nos tribunais superiores, ser qualificado como recorrente o Paciente, ao invés de o Impetrante. O erro é manifesto. Que impetrou o writ foi o advogado, seu autor. Logo, se a ordem é denegada, quem terá legitimidade para recorrer ordinariamente, para o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal será o seu autor, isto é, o advogado, e não o paciente!

Essa amplitude da pertinência subjetiva da ação de habeas corpus se refletirá na legitimação recursal. Em tese, portanto, a legitimidade recursal para o recurso ordinário em habeas corpus, não fica limitada aos sujeitos previstos no caput do artigo 577 do CPP. Basta imaginar que um terceiro tenha impetrado um habeas corpus em favor do paciente. Não se tratará do Ministério Público, ou querelante, ou “réu, seu procurador ou seu defensor”, mas é evidente que pode recorrer. Em suma, o fato de o recurso ordinário em habeas corpus ser recurso em uma ação popular amplia a legitimidade recursal.

O advogado, autor do habeas corpus, parte ativa do processo, precisa para recorrer, em nome próprio, juntar procuração de terceiro, de quem não parte é no processo?

A resposta negativa é óbvia!

Mas por que o Superior Tribunal de Justiça passou a exigi-la, sob pena de não conhecimento do recurso?

A justificativa não é constitucional, jurídica ou técnica. Foi uma necessidade pragmática. Mais uma criação indevida da jurisprudência defensiva por meio da qual os tribunais tentam de todo modo — e no caso, mesmo que a custa da liberdade — restringir seu elevadíssimo e quase insuportável volume de trabalho. Antes, o objetivo era restringir o habeas corpus, o que foi feito, não mais admitindo habeas corpus originário, como substituto do recurso em habeas corpus. Passou-se a exigir, então, que se tivesse que interpor recurso ordinário em habeas corpus. Os impetrantes começaram a fazê-lo. Surge, então, agora, a necessidade de restringir o recurso ordinário em habeas corpus. E, de preferência, por uma exigência formal bem objetiva, passível de controle quase que mecânico por qualquer funcionário do gabinete. O que se fez? O Superior Tribunal de Justiça passou a exigir a procuração no recurso em habeas corpus, sob pena de não conhecimento!

Os fundamentos dessa nova postura são, como se lê, por exemplo, no acórdão do Agravo Regimental do Recurso em Habeas Corpus RHC 63.411/SP, que “A capacidade postulatória é requisito de admissibilidade do recurso ordinário em habeas corpus interposto por advogado”, somente sendo “dispensada na hipótese em que o leigo impetra o habeas corpus e, contra a decisão do writ, ele (leigo) interpõe o recurso ordinário”.[1] Invoca-se, como fundamento, o verbete 115 da Súmula de Jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça, que enuncia: “na instância especial é inexistente o recurso interposto por advogado sem procuração”.

O equívoco da invocação do enunciado é claro. O recurso especial é um recurso extraordinário em sentido amplo, no sentido de que não admite discussão sobre matéria fática, mas só questões de direito. Por isso, realmente, nele há uma instância especial, com função nomofilática, de proteção do ordenamento jurídico. Já o recurso ordinário em habeas corpus, como o próprio nome diz, é recurso ordinário, que admite tanto a discussão de questões de fato quanto de direito. Sua finalidade é, portanto, a tutela doius litigatoris, no caso, do direito à liberdade, e não da integridade ou uniformidade do ordenamento jurídico.

Registre-se, contudo, que o entendimento de que se exige procuração no recurso em habeas corpus quando interposto por advogado, sob pena de não conhecimento, embora continue firme na 5ª Turma, [2] tem sido afastado mais, recentemente, pela 6ª Turma.

No julgamento Recurso em Habeas Corpus 48.662/RS, tendo por relator o ministro Nefi Cordeiro, a 6ª Turma, corretamente, decidiu que: “sendo desnecessária a capacidade postulatória para a impetração do habeas corpusoriginário, igual solução merece o decorrente recurso ordinário em habeas corpus, assim garantindo informalidade e plenitude de acesso jurisdicional na proteção à liberdade”. [3]

E, noutro julgado, mais recente, entendeu a 6ª Turma, que “A aplicação da Súmula 115 do STJ restringe-se aos casos de interposição de recurso por advogado sem procuração nos autos, quando o STJ atuar como instância especial (art. 105, III, da CF), o que não ocorre quando se trata de apreciação de recurso ordinário em habeas corpus, razão pela qual, antes de se proferir decisão pelo não conhecimento do recurso, deve ser oportunizada à parte a regularização da representação processual, o que, aliás, se alinha aos termos dos artigos 13 do CPC e 76 da Lei n. 13.105/2015 – Novo Código de Processo Civil, ainda em vacatio legis. 2. Ademais, desnecessária a adoção de tal procedimento, dada a amplitude em que o habeas corpus se insere como instrumento de proteção à liberdade do indivíduo (art. 5º, LXVIII, da CF)”. [4]

De fato, se não é necessário procuração no habeas corpus, não pode sê-lo no Recurso em Habeas Corpus. Aliás, seria de se indagar, a quem o advogado impetrante deveria solicitar procuração? Ao Paciente não poderia ser, pois o Impetrante, advogado ou não, age em nome próprio, exercendo direito que é seu, pois se trata de ação popular. Por outro lado, seria inconcebível uma procuração para si próprio. O advogado impetrante conferindo poderes para o advogado impetrante recorrer!!!

As considerações até aqui desenvolvidas são de tamanha obviedade — mas, infelizmente, parece necessário fazê-las —, que cabe, pelo menos ao final, um toque final de erudição, reproduzindo as palavras de Ruy Barbosa, quando explica porque não é necessária a juntada de procuração quando um advogado interpõe habeas corpus:

“Eis, Srs. Juízes, de onde resulta a suprema importância do habeas corpusentre as nações livres. As outras garantias individuais contra a prepotência são faculdades do ofendido. Esta é o dever de todos pela defesa comum. Ninguém pode advogar essa exceção singular às leis do processo. Ninguém pode advogar sem procuração a causa de outrem. Para valer, porém, à liberdade sequestrada, não há instrumento de poderes que exigir: o mandato é universal; todos o recebem da lei; para exercer validamente basta estar no país. Os próprios juízes estão obrigados a mandá-la restituirex officio, se no curso de qualquer processo lhe constar, por testemunho fidedigno, caso de constrangimento ilegal. O paciente pode, até, não requerer a liberdade; pode, resignado, ou indignado desprezá-la; pode, até por um desvario, rejeitá-la. É indiferente, a liberdade não entra no patrimônio particular, como as cousas que estão no comércio, que se dão, trocam, vendem ou compram; é um verdadeiro condomínio social; todos desfrutam, sem que ninguém possa alienar, e, se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a reivindica. Solicitando, pois, este habeas corpus, eu repugno, na liberdade dos ofendidos, a minha própria liberdade; não patrocino um interesse privado, a sorte dos clientes: advogo a minha própria causa, a causa da sociedade, lesada no seu tesouro coletivo, a causa, a causa impessoal do tesouro supremo, representada na impessoalidade deste remédio judicial” [5]

Nada mais!

 

 

 

Autor: Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró é advogado criminalista, mestre, doutor e livre-docente em Direito Processual Penal pela USP. Professor Associado de Direito Processual Penal da USP.


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