Autora: Neide De Sordi (*)
Foi publicado, em 18 de janeiro de 2016, o Decreto 8.638, de 15 de janeiro de 2016, que instituiu a Política de Governança Digital no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
A mencionada Política tem por finalidade “gerar benefícios para a sociedade mediante o uso da informação e dos recursos de tecnologia da informação e comunicação na prestação de serviços públicos; estimular a participação da sociedade na formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas e dos serviços públicos disponibilizados em meio digital; e assegurar a obtenção de informações pela sociedade, observadas as restrições legalmente previstas”.
O Decreto estabelece que o planejamento e a execução de programas, projetos e processos relativos à governança digital deverão observar um conjunto de diretrizes, em que se destacam: o autosserviço como forma prioritária de prestação de serviços públicos disponibilizados em meio digital; o oferecimento de canais digitais de participação social na formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas e serviços públicos em meio digital; a disponibilização dos dados governamentais em formato aberto, amplamente acessíveis e utilizáveis por pessoas e máquinas, assegurados os direitos à segurança e à privacidade; a promoção do reuso de dados pelos diferentes setores da sociedade, conforme preconizam os artigos 3º e 8º da Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, a Lei de Acesso à Informação; e o compartilhamento de dados no âmbito da administração pública, sempre que houver necessidade de simplificar a prestação de serviços à sociedade.
Estabelece o Decreto a edição da Estratégia de Governança Digital (EGD) da administração pública federal, um documento que definirá os objetivos estratégicos, as metas, os indicadores e as iniciativas da Política de Governança Digital e norteará programas, projetos, serviços, sistemas e atividades a ela relacionados, cujo período de vigência deverá coincidir com o prazo de vigência do Plano Plurianual (PPA).
A EGD substituirá a Estratégia Geral de Tecnologia da Informação e Comunicações (EGTIC), instrumento usado anteriormente para alinhar as iniciativas de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) às estratégias do governo federal, cujo comitê executivo não se reunia desde 2004. A EGD terá validade para todos os órgãos públicos integrantes do Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação (Sisp).
Segundo o Secretário de Logística e Tecnologia do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), Cristiano Heckert, no SeminárioEstratégia de Governança Digital; para muito além das TIC: “Não se trata de uma simples mudança de nomenclatura e sim de um novo paradigma que enxerga as áreas de TIC como viabilizadoras de um tripé capaz de oferecer informação pública à sociedade, melhorar a prestação de serviços ao cidadão e viabilizar a participação social por intermédio da tecnologia”[i].
Para a formulação da EGD, sob a coordenação do MPOG, serão considerados as políticas públicas e os programas do Governo federal que possam ser alavancados pelo uso de tecnologia da informação e comunicação, além da ampla participação da sociedade e das entidades da administração pública federal.
A administração pública federal deverá elaborar ou atualizar seu planejamento de TICs, de segurança da informação e de segurança cibernética, para atender as disposições da EGD. Esses instrumentos de planejamento deverão ter a aprovação dos Comitês de Governança Digital de cada órgão ou entidade, cuja composição é estabelecida no mencionado ato.
A Política de Governança Digital contará com o estabelecimento de redes de conhecimento sobre assuntos relativos à Governança Digital e a temas correlatos, cujas finalidades são gerar, compartilhar e disseminar conhecimento e experiências; formular propostas de padrões, políticas, guias e manuais; discutir sobre os desafios enfrentados e possibilidades de ação; e prospectar novas tecnologias para facilitar a prestação de serviços públicos, o fornecimento de informações e a participação social por meios digitais. Essas redes de conhecimento serão abertas à participação popular e contarão com um repositório de informações, a cargo do MPOG.
As redes de conhecimento são instrumentos de gestão do conhecimento. Isso pode significar que, finalmente, a Gestão do Conhecimento entrou na Administração Pública por meio da Política de Governança Digital. Essas redes podem possibilitar a interação e a absorção de informações entre as organizações, transformando informações em conhecimento, enriquecendo experiências, valores e regras internas e resultando no aprimoramento das ações [ii]. Cabe ressaltar que cooperação é condição sine qua non para a integração em redes de conhecimento. Na administração pública, isso significa acabar com os feudos informacionais existentes em quase todas as suas unidades administrativas. O Decreto aponta esse caminho (inc. V artigo 4º), ao mencionar o compartilhamento de dados entre os órgãos e entidades da administração pública federal.
A Política de Governança Digital elegeu a abertura, a transparência e o compartilhamento, entre outros princípios estabelecidos no Decreto, que podem contribuir para mudar a relação entre o governo, prestador de serviços à sociedade, e o cidadão. A disponibilização de dados governamentais abertos poderá representar uma evolução em termos de governança digital, transparência, “empoderamento” do cidadão e controle social.
No entanto, a experiência nacional não vai nesse sentido. Transparência; prestação de contas e responsabilização (accountability); participação cidadã; e tecnologia e inovação são também os quatro princípios que definem o conceito de governo aberto, estabelecidos pela Parceria para o Governo Aberto (do inglês Open Government Partnership) [iii]. Atualmente, o Brasil está desenvolvendo o seu 3º Plano de Ação Nacional da OGP, sob a coordenação da Controladoria-Geral da União (CGU), e as iniciativas não parecem ser complementares. Documentos da SLTI/MPOG sobre a EGD disponíveis na internet, bem como o texto do Decreto não mencionam parcerias ou interlocutores.
Segundo o Secretário da SLTI, o modelo de EGD é baseado no conceito de Governança Digital adotado pela Unesco [iv], que aborda a utilização de tecnologias da informação pelo setor público com o objetivo de melhorar a informação e a prestação de serviços, incentivar a participação dos cidadãos no processo de tomada de decisão e tornar o governo mais responsável, transparente e eficaz” [v]. No entanto, embora o Decreto seja minucioso ao registrar a necessidade do desenvolvimento de instrumentos de planejamento sobre segurança da informação e segurança cibernética, não há registro de uma das principais preocupações da Unesco em relação a Governo Eletrônico, que é a preservação do patrimônio digital [vi,vii].
A página Governança na Internet, no portal da Representação da Unesco no Brasil, menciona a necessidade da adoção de políticas, regulamentações e ações para a melhoria da gestão documental das informações públicas; o aumento da familiaridade e da efetividade do uso das novas TICs, por meio da capacitação e da promoção desse uso nas escolas; e o fornecimento de meios para maior conectividade, visando à diminuição da exclusão digital e redução da assimetria informacional no Brasil [viii].
Nesse sentido, cabe ressaltar a publicação do Decreto na semana da divulgação de Relatório do Banco Mundial, denominado Dividendos Digitais, que aponta o Brasil como o sétimo país do mundo com mais pessoas off-line. Embora as tecnologias digitais venham-se ampliando rapidamente, cerca de 4,2 bilhões de pessoas, 60% da população mundial, continuam sem acesso à internet, informa o relatório. O Brasil tem 98 milhões de pessoas nessa situação. Pelo lado positivo, o Brasil é também o 5º país do mundo em número de usuários, atrás da China, Estados Unidos, Índia e Japão.
Para o presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, encontramo-nos em meio à maior revolução de informação e comunicação da história da humanidade. Mas se as tecnologias digitais têm crescido rapidamente pelo mundo, o mesmo não se pode dizer sobre os benefícios desse avanço, ou os dividendos, como os denomina o relatório. “A internet continua indisponível, inacessível e fora do alcance econômico para a maioria da população mundial”, afirma o documento.
Os autores do documento, Deepak Mishra e Uwe Deichmann, consideram que os benefícios da rápida expansão digital estão sendo mais bem aproveitados por “pessoas de maior renda, qualificadas e influentes”. O Banco Mundial avalia que a internet precisa ser universal, economicamente viável, aberta e segura, e os governos têm ainda que reforçar as regulamentações que assegurem a concorrência entre as empresas do segmento.
Dentro desse cenário, políticas de governança digital podem ser eficientes e eficazes, mas com que finalidade? É desejável que a Política de Governança Digital da Administração Pública possa reverter tal quadro de exclusão digital, além de contribuir para a melhoria dos serviços públicos. Espera-se que referida política não venha a ser apenas mais um documento hermético, elaborado por técnicos de TIC para técnicos de TIC, deixando a participação popular apenas nas boas intenções.
Autora: Neide De Sordi é diretora da InnovaGestão – Consultoria em Informação e Pesquisadora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).