Com “ato governamental nº 5”, Paraíba culpa empresário por crise financeira

Autor: Arthur Cesar de Moura Pereira (*)

 

Não há como deixar passar despercebido o curioso “ato governamental nº 5”, do governo da Paraíba. Trata-se de moléstia administrativa que vem se alastrando rapidamente entre os estados e municípios, em razão da grave crise financeira que os assola.

O mecanismo engendrado por aquele decreto — é preferível chamá-lo assim, embora “ato governamental”, e ainda mais número 5, revele todo seu autoritarismo e ilegalidade — foi concebido como remédio aos danosos efeitos da explosiva combinação entre escassez de recursos e péssima gestão financeira, registrada em algumas administrações públicas. Entretanto, como se verá, está longe de ser cura; muito mais próximo de tornar-se veneno.

Em poucas palavras — poucas mesmo, são apenas 11 artigos — o referido instrumento determina a “reavaliação das licitações em curso para compras e contratações de bens e serviços, bem como dos instrumentos contratuais em vigor” (artigo 1º). O parágrafo único do mesmo artigo nos dá conta de que “são abrangidos pelo disposto neste artigo os instrumentos contratuais, tais como contrato, carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço, ainda que não formalizados”.

A intenção, indiscutivelmente nobre, é adequar as despesas do estado à parca previsão de receita orçamentária para este ano. Não por outra razão, o artigo 2º estabelece que mesmo os contratos vigentes e as dívidas com fornecedores serão “reavaliadas”, segundo critérios de “viabilidade, conveniência e oportunidade”. Todos sabem o local onde está cheio de boas intenções como esta.

As “reavaliações” serão levadas a cabo pela Câmara de Conciliação e Instrução, formada exclusivamente por membros do próprio estado, a quem cabe dar parecer sobre minudências como a revogação ou não do contrato, o pagamento do fornecedor ou a adjudicação do contrato ao vencedor da licitação. Com base em suas decisões, “deverão ser adotados os procedimentos legais com vista à alteração ou ao cancelamento dos instrumentos contratuais, conforme o caso” (artigo 8º). Para deixar bem claro quem é que manda, “compete à Câmara de Conciliação e Instrução editar normas complementares para a execução deste ato governamental” (artigo 9º).

Embora o órgão, instituído pelo próprio decreto (artigo 5º), emule um tom conciliatório, a começar pelo nome que lhe foi atribuído, dessa “conciliação”, não pode resultar (artigo 3º):

I – aumento de preços;
II – aumento de quantidades;
III – redução da qualidade dos bens ou serviços;
IV – outras modificações contrárias ao interesse público.

A Câmara de Conciliação e Instrução, ainda, deve estar empenhada em obter inexoravelmente a redução (artigo 1º):

I – dos preços cotados ou contratados, conforme o caso, em comparativo permanente aos níveis daqueles praticados no mercado para o mesmo bem ou serviço, podendo ser utilizado também para esta comparação os preços de referência registrados nos sistemas de compras dos governos federal, estadual e municipal, respeitado o percentual de redução mínimo de 15% (quinze por cento);
II – das quantidades licitadas ou contratadas, conforme o caso, ao nível da disponibilidade orçamentária ou do estritamente necessário para atendimento da demanda deste exercício, prevalecendo o que for menor, respeitados os limites legais.
III – dos valores devidos em razão de serviços e aquisições já realizadas, respeitado o percentual mínimo referido no inciso I.”

É um acinte à Constituição Federal e a tudo que já se escreveu sobre Direito Administrativo. É premente a necessidade de adequação de despesas às receitas, em todos os níveis da federação. Mas não se pode fazer o imperioso ajuste às custas da legalidade e dos direitos dos contratados.

O decreto parece tratar do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos públicos, em razão da álea econômica (teoria da imprevisão)[1]. Afinal, a inflação compreendida entre janeiro 2014 e dezembro de 2015 foi de 17,86%[2]. Isso seria razão suficiente para as empresas contratadas buscarem a revisão contratual junto ao estado, diante da cláusula centenária que determina que contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus.

Mas o decreto inverte as coisas. Se as receitas andam mal e o estado não consegue lidar com as determinações da Lei de Responsabilidade Fiscal[3], culpe-se o empresário. A contratada é quem deve pagar a conta. Observe-se que o decreto exige a redução de pelo menos 15% no valor do contrato. Somando-se ao valor da inflação acumulada, tem-se mais de 30% de prejuízo para a contratada. Em outras palavras, ficam inviabilizadas a livre iniciativa[4], a livre concorrência[5] e o livre exercício da atividade econômica[6].

Não se pode olvidar que a empresa contratada participou de procedimento licitatório regular[7], submetendo-se às regras então determinadas em edital; pôs-se à prova sua capacidade de executar o serviço ou entregar o bem licitado. Homologado o procedimento, a adjudicação é compulsória. Não há dúvidas de que a empresa se planejou para executar o objeto da licitação, enfrentando custos e calculando o lucro em apertada margem.

Como manter o mesmo objeto licitado se o estado lhe exige pelo menos 15% na redução do preço pago, além do prejuízo impingido pela inflação?

Não se nega ao estado o poder-dever de rever seus atos, anulando-os ou revogando-os, entendimento, ademais, sumulado[8]. Mas é imprescindível respeitar o negócio jurídico perfeito e os direitos adquiridos. A fim de perquirir sobre ambos, faz-se mister a existência de contraditório e ampla defesa. É sintomático que o decreto não preveja a participação na Câmara de Conciliação e Instrução de membros do Ministério Público, da sociedade civil ou do empresariado. Apenas o estado participa, determina, obriga.

Igualmente marcante é o completo desprezo pelo direito à ampla defesa e ao contraditório[9]. O decreto não faz menção à possibilidade de produção de provas pela contratada; tampouco prevê hipótese de recurso administrativo. Por fim, preestabelece o resultado da negociação: ou reduz o preço em pelo menos 15% ou terá o contrato sumariamente revogado. Ou seja, o que se tem é uma Câmara de Conciliação e Instrução que não permite instrução (dilação probatória), não concilia nada (na verdade, impõe resultados pré-fixados) e escapa a critérios de diversidade que caracterizam órgãos camerais (só membros do estado participam).

Mas nada é tão ruim que não possa piorar. A Câmara de Conciliação e Instrução foi instituída pelo próprio decreto. Em tese, ao menos, é de se supor que possa transacionar naquilo que não haja vedação expressa no próprio decreto. Em tal caso, pergunta-se, como pode o estado transigir sem autorização legal?

Não há réstia de due process of law, um detalhe certamente considerado menor pelo malsinado decreto. A tudo adicione-se a dificuldade em aceitar que um decreto, e não a lei, sirva de instrumento normativo para criação de órgão e estabelecimento de obrigações e mesmo de punições a terceiros (no caso, as empresas contratadas que se recusarem à subserviência estatal). Nisso o “ato governamental nº 5” se aproxima do conceito literal de “ato do príncipe”.

Não deixa de ser curioso como o decreto, ao disfarçar suas intenções sugerindo estar em harmonia com o novo CPC (Lei 13.105/2015, artigo, 1º, parágrafo 3º), na verdade se afasta de tudo quanto se sabe sobre conciliação, além de desatender ao disposto no artigo 174 daquele código[10]. Convém observar que o novo CPC, por força de seu artigo 15[11], é aplicável aos procedimentos administrativos. O decreto, seguindo se veio autoritário, despreza as garantais legais da nova Tábua Processual e concede ao órgão de “conciliação” por si crido a tarefa de conceber seus próprios procedimentos.

Do modo como está, um decreto como aquele não resiste ao desafio constitucional. Ao contrário, serve como instrumento autoritário para impor a vontade da Administração Pública, como fonte de demanda de bens e serviços (sobretudo em estados e municípios pobres), às empresas contratadas, destruindo a noção de equilíbrio e apresentando-lhes uma conta que não é delas. Como se não existisse contrato; ou como se o contrato simplesmente de desmanchasse no ar.


[1] MAZZA, Alexandre. Direito Administrativo. 2014. p. 455.
[2] Segundo o índice IPCA-E Geral.
[3] Lei Complementar 101/2000, que impõe severos mecanismos de controle da despesa pública, notadamente despesa com pessoal.
[4] CF, art. 1º, IV.
[5] CF, art. 170, IV.
[6] CF, art. 170, Parágrafo único.
[7] CF, art. 37, XXI.
[8] STF, Súmula 473: “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.
[9] CF, art. 5º, LV.
[10] Novo CPC, art. 174. A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo, tais como:
I – dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública;
II – avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflito, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública;
III – promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.
[11] Artigo 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

 

 

 

Autor: Arthur Cesar de Moura Pereira é procurador da Fazenda Nacional, especialista em Direito Tributário e em Gestão Tributária, professor e escritor. Autor de Lei de Execução Fiscal Comentada e Anotada, publicada pela Jus Podivm.


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