Autor: Marcos Meira (*)
A consciência social, de modo mais ou menos generalizado, já não vê ilícito tributário como crime, percepção que decorre da alta carga tributária aliada à voracidade fiscal do Estado brasileiro, que “empurra” pessoas físicas e jurídicas para a informalidade e a sonegação. São vítimas do Estado que “encontra” meios, ainda que não legítimos, para elevar a arrecadação como contra-ataque ao déficit fiscal que se acumula a cada exercício, decorrente de sua própria ineficiência e da corrupção.
A evasão fiscal torna-se, muitas vezes, a única opção viável à sobrevivência. Em muitos casos, é tida “socialmente” como o exercício da legítima defesa contra a injusta agressão fiscal por parte do Estado.
Osíris Lopes Silva, professor do curso de pós-graduação em Direito Econômico da Fundação Getúlio Vargas e ex-secretário da Receita Federal, descreveu bem essa situação quando disse, em entrevista publicada em setembro de 1994 pela revista IstoÉ-Dinheiro, que a “honestidade está ficando inviável” em razão da altíssima carga tributária e da voracidade fiscal do Estado brasileiro, a que chamou de “anarquia tributária”.
Na última semana, o governo voltou à carga. Por meio de nota, a Receita Federal informou que a “sociedade unipessoal de advocacia” não poderá optar pelo Simples Nacional, a menos que haja mudança no artigo 3º da Lei Complementar 123/2006.
A orientação fiscal embasou-se, única e exclusivamente, no fato de que a “sociedade unipessoal de advocacia” não consta do rol de pessoas jurídicas contempladas no artigo 3º da Lei Complementar 123/2006, que se refere apenas à sociedade empresária, à sociedade simples, à empresa individual de responsabilidade limitada e ao empresário a que se refere o artigo 966 do Código Civil.
A medida revela uma face ainda mais assustadora da sanha arrecadatória do Estado brasileiro, que até então se contentava com a edição de leis para criação/majoração de tributos e de redução de benefícios fiscais. Agora, a sociedade terá de conviver com a atuação “legiferante” do Fisco, que, por meio de nota, interpreta a seu modo e no exclusivo caminho de seus interesses arrecadatórios, leis regularmente editadas para beneficiar o contribuinte.
Com efeito, a “sociedade unipessoal de advocacia” foi criada com o propósito específico de (i) habilitar o advogado individual a gozar dos mesmos benefícios da sociedade de advogados, inclusive os de natureza tributária; e (ii) adequar o Estatuto da Advocacia à previsão do artigo 980-A do Código Civil, que criou a figura da empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli).
Durante o processo legislativo que culminou na Lei 13.247/2016, o Parecer CCJ 1198/2015, do senador Eunício Oliveira, afirma, expressamente, que a sociedade unipessoal “nada mais representa do que a adequação do Estatuto da Advocacia ao artigo 980-A do Código Civil, que trata das empresas individuais de responsabilidade limitada”. Portanto, a “alteração buscada pelo projeto tem por finalidade compatibilizar os artigos 15, 16 e 17 do Estatuto da Advocacia com (…) o artigo 980-A ao Código Civil, no qual se permitiu a constituição de empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli)”.
A orientação adotada pela Receita Federal do Brasil — de afastar a “sociedade unipessoal de advocacia” do Simples — desborda, portanto, da intenção legítima e inequívoca do legislador nacional, que pretendeu, com a Lei 13.247/2016, (i) equiparar o novo tipo societário às sociedades de advogados para todos os fins de direito; e (ii) adequar os artigos 15, 16 e 17 do Estatuto da OAB ao artigo 980-A do Código Civil.
Esse novo tipo societário faz jus aos benefícios do Simples Nacional por duas razões muito simples.
Primeiramente, a nova sociedade unipessoal equipara-se, para todos os fins, à sociedade simples de prestação de serviços advocatícios, tanto que a Lei 13.247/2016 acrescentou o § 7º ao artigo 15 do Estatuto da OAB, prevendo que “A sociedade unipessoal de advocacia pode resultar da concentração por um advogado das quotas de uma sociedade de advogados, independentemente das razões que motivaram tal concentração”.
Ou seja, basta que um advogado, por qualquer razão (morte, aquisição onerosa, cessão etc.), concentre as demais cotas de uma sociedade de advogados para que esta se converta, pura e simplesmente, em uma sociedade unipessoal, não tendo sido imposto pela lei qualquer outro procedimento ou formalidade.
Não é difícil concluir, portanto, que os dois tipos societários (sociedade unipessoal e sociedade simples) são de idêntica natureza e desfrutam do mesmíssimo regime jurídico. Assim não fora, não haveria simples e pura conversão por concentração de cotas.
O § 2º, também incorporado ao artigo 15 do Estatuto pela Lei 13.247/2016, evidencia essa conclusão ao submeter as duas sociedades ao Código de Ética e Disciplina da OAB.
Assim, considerando que a sociedade unipessoal equipara-se, para todos os fins, à sociedade simples de advogados, tanto que pode nela se converter por simples concentração de cotas; considerando, também, que a sociedade simples de advogados pode inscrever-se no Simples Nacional por expressa previsão da Lei Complementar 147/2015; conclui-se, sem maiores dificuldades, que a nova sociedade unipessoal pode fazer a opção por esse regime diferenciado, sem necessidade alguma de alteração na Lei Complementar 123/2006.
Segundo argumento, igualmente relevante. Como já referido, foi propósito expresso da Lei 13.247/2016 o de adequar os artigos 15, 16 e 17 do Estatuto da OAB ao disposto no artigo 980-A do Código Civil, ou seja, permitir que os advogados pudessem se organizar em tipo societário equiparado à Eireli.
Nos termos do § 5º do artigo 980-A do Código Civil, a Eireli poderá ser “constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza”, incluindo, obviamente, os de advocacia.
Ocorre que não havia previsão desse tipo societário no Estatuto da OAB. Essa previsão veio a lume com a Lei 13.247/2016, a partir de quando o artigo 980-A do Código Civil tornou-se plenamente compatível com a prestação de serviços de advocacia.
A nova “sociedade unipessoal” nada mais é do que uma Eireli voltada à prestação de serviços advocatícios.
Portanto, esse novo tipo societário pode optar pelo Simples Nacional, sem necessidade de alteração da LC 123/2006, (i) seja porque se equipara, para todos os fins de direito, à sociedade simples de advocacia (que pode desfrutar desse regime diferenciado de tributação por previsão expressa da LC 147/2015); (ii) seja porque a ela se aplica o regime jurídico do artigo 980-A do Código Civil, que disciplina as empresas individuais de responsabilidade limitada.
Por tudo isso, parece-nos certo afirmar o equívoco em que incorreu a Receita Federal do Brasil a pretexto de interpretar a Lei 13.247/2016.
Ao contribuinte que se sentir lesado, resta socorrer-se do Judiciário para garantir a correta interpretação das regras que disciplinam o novo tipo societário; ou esperar a atuação sempre proativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que tem atuado, diligentemente, na defesa dos interesses da categoria.
Assim agindo, dar-se-á mais um passo no caminho de tornar a honestidade algo viável e de evitar que a sonegação e a informalidade sejam tidas como “estratégia de sobrevivência”.
Autor: Marcos Meira é advogado, procurador do Estado de Pernambuco, pós-graduado em Direito Tributário pela FGV e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP.