Autores: Pablo Bezerra Luciano e Carlos Marden (*)
Na dinâmica dos recursos especial e extraordinário, a legislação em vigor não prevê a possibilidade de o tribunal a quo avaliar o próprio mérito do recurso. Nos termos do § 1º do artigo 542 do Código de Processo Civil de 1973 (que confere aos tribunais recorridos a competência para proceder à “admissão ou não do recurso”), apenas temas como pressupostos recursais intrínsecos e extrínsecos podem ser apreciados.
E não poderia ser diferente: a Constituição atribui exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar as causas mediante recurso extraordinário (inciso III do artigo 102), e ao Superior Tribunal de Justiça para apreciar as causas em sede de recurso especial (inciso III do artigo 105), não existindo dispositivo constitucional que outorgue aos tribunais recorridos competência para avaliar o acerto das razões dos recursos em questão.
Não obstante, no direito processual brasileiro é tradição a existência de um duplo juízo de admissibilidade recursal: o primeiro praticado pela instância a qua e o segundo praticado pelo Tribunal ad quem. Por outro lado, o duplo controle sobre o mérito dos recursos não é comum, devendo ser previsto expressamente na lei, como nos casos do recurso de agravo contra decisões interlocutórias (instrumento ou retido) e no caso de apelação interposta contra sentença de indeferimento da petição inicial (artigo 296 do CPC).
Ou seja, salvo inequívoco texto legislativo, não é possível presumir processual competência implícita concedida ao próprio órgão perante o qual se interpõe o recurso para lhe apreciar o mérito. E, evidentemente, no caso de recursos constitucionais, com maior razão o intérprete está proibido de ver na lei autorização para a análise por outro órgão jurisdicional diferente daquele previsto na Constituição.
Segundo Barbosa Moreira, apreciar a admissibilidade de um recurso, conhecendo-o ou não, significa a conferência dos requisitos para que haja a análise do mérito. Os requisitos de admissibilidade são classificados em intrínsecos e extrínsecos. Os primeiros são: cabimento, legitimação para recorrer, interesse em recorrer, e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer. Já os requisitos extrínsecos são: tempestividade, regularidade formal, e preparo[1].
O juízo de admissibilidade é prévio, portanto, à análise do mérito. Prévio e prejudicial. Negando-se conhecimento ao recurso, não há que se lhe analisar o mérito. Efetivamente, não há sentido de se entender que o Tribunal recorrido poderia incursionar pelas razões do recurso, caso em que haveria um duplo juízo não sobre a admissibilidade, mas sobre o mérito. Nesse sentido é a doutrina de Pontes de Miranda sobre o juízo de admissibilidade pertinente ao recurso extraordinário feito pelo Presidente do tribunal recorrido: “A decisão do Presidente do Tribunal é apenas quanto ao cabimento do recurso extraordinário. De modo nenhum pode decidir quanto ao mérito do recurso extraordinário”[2].
Portanto, se o presidente do tribunal destrilhar dos estritos limites de um singelo juízo sobre a admissibilidade, para consignar que o recorrente não tem razão, incorrerá inexoravelmente em usurpação de competência[3].
Lamentando a disseminada usurpação de competência sob as vestes de meros juízos de admissibilidade, Nelson Nery Junior pontua que não pode o tribunal recorrido avaliar no recurso extraordinário se há ou não violação à Constituição:
“Salvo no recurso de agravo (de instrumento ou retido), e no caso de apelação interposta contra sentença de indeferimento da petição inicial (art. 296 do CPC), em nenhuma outra hipótese poderá o juízo a quo manifestar-se sobre o mérito do recurso. Infelizmente tem-se verificado amiúde o mau vezo de os tribunais estaduais e regionais federais indeferirem o processamento do recurso extraordinário, ingressando no exame do mérito. É o que se dá, por exemplo, quando o tribunal entende o acórdão recorrido ‘não violou a Constituição ou a lei federal’.
A efetiva violação da Constituição Federal, que é um dos casos de recurso extraordinário (art. 102, III, a, CF), é o próprio mérito do recurso. O que cabe ao tribunal examinar é a admissibilidade do recurso. Na hipótese ventilada, a tão-somente alegação da inconstitucionalidade já preenche o requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. Basta, portanto, haver mera alegação de ofensa à Constituição para que seja vedado ao tribunal federal ou estadual proferir juízo de admissibilidade negativo ao apelo extremo” [4].
É dizer: a existência de violação à Constituição ou a conformidade ou desconformidade do recurso com a jurisprudência do STF não é nem nunca foi tema assimilável à ideia de juízo de admissibilidade. Deve o recorrente, é certo, ao viabilizar o extraordinário alegar que a decisão se enquadra numa das hipóteses do artigo 102, III, da Constituição. Se não existir sequer essa alegação, pode o recurso sofrer uma decisão de inadmissão já no âmbito do tribunal recorrido. Cumpre, portanto, não confundir alegação da parte recorrente com a efetiva violação da Constituição. Existindo a alegação, mas estando o recorrente equivocado em sua tese, conhece-se o recurso, atestando-lhe o preenchimento dos requisitos de admissibilidade, negando-lhe provimento quanto ao mérito. Não obstante, como denuncia a doutrina, parcela considerável dos tribunais adota má técnica para dizer que não se conhece do recurso quando a alegação da parte é equivocada.
Efetivamente, apesar de todos os esforços doutrinários no sentido de aprimorar a técnica de apreciação da admissibilidade dos recursos, os diversos tribunais continuam a apreciar o mérito dos recursos extraordinários, razão pela qual, durante a tramitação do Projeto de Lei 8.046/2010, que veio a se tornar o novo Código de Processo Civil, o deputado Gabriel Guimarães (PT-MG) apresentou a Emenda 825/2011 tendente a acabar com o juízo de admissibilidade feito pelos tribunais recorridos.
Na justificativa da emenda, o autor ponderou que “cerca de 90% dos recursos interpostos tem o seu seguimento denegado, e, na grande maioria das vezes, com base em fundamentos que não poderia ser objeto de admissibilidade”. Para o autor da emenda, no que é acorde com a melhor doutrina processual, “apenas questões objetivas, tais como a tempestividade e o preparo, poderiam ser objeto do juízo de admissibilidade pelos Tribunais a quo” e “dizer se houve violação ao texto legal, se é necessário ou não o reexame de matéria de fato, se o prequestionamento foi ou não realizado etc., não é da competência dos Tribunais ordinários”.
Além destacar que o mau uso do juízo de admissibilidade viola as competências constitucionais do STJ e do STF, o deputado foi sensível à circunstância de que a sistemática vivenciada torna o processo extremamente moroso, isso porque “quando se deixa a cargo do Tribunal de origem a realização do juízo de admissibilidade dos recursos já mencionados, o processo fica parado, tranquilamente, por pelo menos um ano”.
Como é altíssimo o grau de recorribilidade das decisões de negativa de admissibilidade, o deputado Gabriel Guimarães considerou igualmente que os trâmites das secretarias dos tribunais para intimar a parte adversa para responder ao agravo retardam ainda mais a subida do recurso para o tribunal superior. Aprovada na Câmara a Emenda 825/2011, o fim do duplo juízo de admissibilidade foi consagrado no artigo 1.030 do Novo Código de Processo Civil, na redação final do Senado.
Parecia que a comunidade jurídica havia percebido que a doença da morosidade processual não se combate com decisões dos tribunais recorridos que desbordam dos limites de um juízo de admissibilidade. Parecia que o duplo juízo de admissibilidade, tal como exercido na prática, havia sido identificado finalmente como veneno e não como remédio.
Durante a vacatio legis do novo CPC, era de se esperar que os tribunais planejassem uma readequação dos recursos materiais e humanos destacados atualmente para apreciar a admissibilidade dos recursos especial e extraordinário. E, ainda, era de se esperar que o STJ e o STF se preparassem para um fluxo mais dinâmico de processos, mas que talvez nem representasse um incremento tão substancioso, considerando. Entretanto, a mudança de cultura exigida pelo Novo CPC sofreu forte resistência de setores reativos a novas experiências. Viciado com a disseminação de uma cultura de bloqueio de recursos a todo custo, o sistema judiciário é incapaz de perceber que o duplo juízo de admissibilidade representa um capítulo de uma tragédia processualística repleta de incidentes e de idas e vindas.
Não tardou então para que a inovação legislativa fosse alvo de severas críticas, sobretudo oriundas de setores da magistratura. No âmbito do Congresso Nacional, essas críticas materializaram-se com a apresentação do Projeto de Lei (PL) 2.384/2015, de autoria do deputado Carlos Manato (SD-ES), que tramitou rapidamente sob o regime de urgência. Em justificação do sistema vigente, o deputado destacou que “no mecanismo atual, segundo informações do Superior Tribunal de Justiça, 48% dos recursos especiais interpostos na origem não foram remetidos àquela corte”, sem se importar se esses bloqueios se deram mesmo com o uso estrito do juízo de admissibilidade. Após aproximadamente três meses de tramitação, a matéria foi aprovada na Câmara na sessão de 21 de outubro de 2015, na forma da redação final apresentada pelo relator, deputado Fernando Coelho Filho (PSB-PE).
Encaminhado ao Senado como casa revisora, a matéria tramitou como Projeto de Lei da Câmara (PLC) 168/2015, que teve como relator o senador Blairo Maggi (PR-MT). Em sua manifestação, o senador apontou que o juízo de admissibilidade “consegue poupar o STF e o STJ de uma quantidade vertiginosa de recursos manifestamente descabidos (…) fato que deporá contra a celeridade que se requer dessas instâncias extraordinárias no novo cenário de valorização da jurisprudência desenhado pelo novo Código”. Igualmente não houve preocupação no Senado se há bom ou mau uso do juízo de admissibilidade.
Desde seu protocolo até sua aprovação, na sessão de 15 de dezembro de 2015, o PLC 168/2015 tramitou por apenas 51 dias no Senado A redação final ficou por conta do Parecer 1.179/2015 da Comissão Diretora, relatado pelo senador Vicentinho Alves (PR/TO), cujo artigo 2º se propõe a dar nova redação ao artigo 1.030 do CPC, dando sobrevida ao duplo juízo de admissibilidade.
Desse modo, caso a presidente da República não exerça seu poder de veto, assim permaneceremos: a título de exercer mero juízo de admissibilidade dos recursos, os tribunais recorridos continuarão apreciando indevidamente o mérito das alegações das partes, usurpando as competências do STF e do STJ. E o que é pior: cada tribunal continuará fazendo um juízo de admissibilidade a seu modo, com base em critérios específicos e sectários, em prejuízo ao ideal de isonomia.
Caso venha a ser sancionado o PLC 168/2015, na prática, o sistema de processamento dos recursos extraordinário e especial continuará substancialmente como sempre foi: inconstitucional, moroso, ineficaz e extremamente frustrante para as partes. Ignorando-se o ideal de simplificação e de diminuição de fases procedimentais e momentos decisórios, apostando na multiplicação de incidentes processuais, com o PLC 168/2015 a comunidade jurídica não pode esperar qualquer avanço em termos de agilidade, modicidade e racionalidade do sistema recursal brasileiro nesse ponto.
A aprovação pelo Congresso Nacional do PLC 168/2015 dá mostras de que não se descobriu que é extremamente ineficaz o remédio que vem sendo prescrito contra a morosidade. Não é com pedaladas processuais (que funcionam como obstáculos ao caminho natural dos processos) que se alcançará uma tutela jurisdicional adequada. A nossa recente história processual, marcada por uma desmedida aposta da discricionariedade dos julgadores, já deveria ter demonstrado amplamente que expedientes (como decisões monocráticas de relatores e decisões dos presidentes dos tribunais recorridos) não resolveram e não vão resolver a eterna crise de nosso sistema de justiça.
De fato, é bastante frustrante que as mais poderosas forças políticas do País não tenham dado ao Novo CPC sequer a chance de vigorar por alguns anos, para aí então termos a verificação em concreto de uma de suas mais benéficas inovações tendentes a um processo civil mais célere e capaz de promover algum tipo de paz social.
Não se levou em conta que o fim do duplo juízo de admissibilidade não era uma mudança pontual para viger sob a égide do CPC de 1973. Não se considerou sequer que a mudança em questão fazia parte de uma grande obra legislativa, já dotada de muitas salvaguardas à recorribilidade irresponsável, que começaria a viger em bloco, substituindo o antigo sistema por inteiro, abrindo uma nova fase da processualística brasileira. Não se quis dar a menor chance para se verificar se, com poucos meses, os desestímulos do novo CPC à recorribilidade compensariam ou mesmo neutralizariam o potencial maior aporte de processos no STJ e no STF em razão do fim do duplo juízo de admissibilidade.
O PLC 168/2015, no fundo, ao apostar na máxima “se quiser, recorra”, sugerindo que a parte prejudicada apresente o recurso de agravo para questionar o juízo de admissibilidade que, na prática, avançou no mérito do recurso interposto, contribui para a consagração de um processo civil no qual só os mais fortes sobrevivem. Sim, porque só aguentam recorrer os mais fortes, que têm tempo, dinheiro e disposição para se insurgir contra as infinitas segmentações decisórias. Os demais, mesmo que não convencidos do acerto de decisões contrárias a seus interesses, vão caindo, pouco a pouco, na via dolorosa das frustrações processuais. Desnecessário dizer que, nesse cenário, somente lucra quem não tem razão ou um Poder Judiciário que coloca o próprio conforto à frente do direito das partes ao recurso.
Autores: Pablo Bezerra Luciano é advogado.
Carlos Marden é advogado.