Autor: Giuseppe Giamundo Neto (*)
Importantíssima mudança introduzida pela recém editada Medida Provisória 703/15 (MP) consiste na revogação expressa de dispositivo da Lei 8.429/92, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), que vedava a transação, acordo ou conciliação nas ações destinadas à apuração da prática de ato de improbidade. A alteração parece alinhada, ainda que acidentalmente, ao novo marco regulatório da mediação (Lei 13.140/2015), que ao prever mecanismos de autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, estabeleceu a possibilidade de conciliação mesmo nas hipóteses em que a matéria objeto do litigio esteja sendo discutida em ação de improbidade administrativa ou sobre ela haja decisão do Tribunal de Contas da União, dependendo para tanto da anuência expressa do juiz da causa ou do ministro relator (artigo 36, parágrafo 4º).
A relevância da matéria reside no fato de a vedação até então contida na LIA ter perdurado desde a sua edição — há mais de duas décadas, portanto —, mantendo-se incólume sob a ratio de que ao legitimado ativo da ação não caberia escolher, dentre as sanções legais do artigo 12 da LIA, aquela que entenda mais razoável e proporcional ao caso, na medida em que a aplicação das sanções seria reservada exclusivamente ao magistrado (nulla poena sine judicio). Nesse contexto, apenas o ajustamento de conduta seria possível, e para fins exclusivos de reparação integral do dano, impondo-se ao Ministério Público o dever de ajuizamento ou a continuidade da ação civil para a aplicação das sanções previstas. O ajustamento de conduta em tais circunstancias limitadoras, como se nota, é pouquíssimo atraente para o agente disposto a reparar o dano, daí talvez a explicação para o histórico extremamente escasso de compromissos desse tipo firmados em inquéritos ou ações de improbidade.
A MP 703/15 alterou alguns pontos da Lei 12.846/13, a Lei Anticorrupção (LAC), especialmente visando tornar mais célere e ampla a possibilidade de celebração de acordo de leniência. As mudanças permitem que o acordo de leniência seja celebrado com a participação do Ministério Público e da Advocacia Pública, conferindo maior segurança jurídica às empresas celebrantes, considerando os reflexos do acordo nas esferas administrativa e civil, pois impede por exemplo que ocorra o ajuizamento de ações cíveis e de improbidade administrativa contra a empresa pelo mesmo fato objeto do acordo de leniência (artigo 16, parágrafo 11). A MP também previu a possibilidade de celebração de acordo por atos e fatos investigados previstos em normas de licitações e contratos administrativos com vistas à isenção ou à atenuação das sanções restritivas ou impeditivas ao direito de licitar e contratar (artigo 17). E por fim, estabeleceu que a proposta de acordo de leniência poderá ser feita mesmo após o ajuizamento das ações cabíveis pelo Ministério Público (artigo 20, § único).
Conjugando-se as mencionadas disposições da MP, parece-nos claro que o acordo de leniência, cujo objeto anteriormente deveria se limitar aos atos enquadrados na LAC, passou a ser passível de celebração também no âmbito de ação de improbidade administrativa em curso cujos atos e fatos investigados estejam previstos apenas na legislação de licitações e contratos públicos.
Como consequência prática, exsurge a possibilidade da celebração de acordo de leniência com a Administração e o Ministério Público para contemplar atos e fatos relacionados a ilícitos em licitações e contratos administrativos, inclusive os ocorridos anteriormente à vigência da LAC (29/01/2014), ainda que tenham resultado no ajuizamento de ações de ressarcimento ou por ato de improbidade.
Em tais hipóteses, o acordo pressupõe a observância cumulativa, pela empresa, das premissas para tal fim previstas na LAC, quais sejam: (i) a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; (ii) a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação; (iii) a cooperação com as investigações, em face de sua responsabilidade objetiva; e (iv) o comprometimento da pessoa jurídica na implementação ou na melhoria de mecanismos internos de integridade. Preenchidos os requisitos legais, a celebração do acordo de leniência terá como consequências a isenção das sanções restritivas ao direito de licitar e contratar previstas na Lei 8666/93, além da possibilidade de redução em até 2/3 da multa aplicável. No caso de a pessoa jurídica ser a primeira a firmar o acordo, a redução da multa poderá chegar até a sua completa remissão.
Mas a leniência não é, para nós, a única hipótese de acordo disposta às partes de uma ação de improbidade administrativa.
Como se mencionou inicialmente, a Lei 13.140/15, vigente desde 26 de dezembro de 2015, regulou a mediação de conflitos entre particulares e a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. A novel lei prevê a possibilidade de criação, por todos os entes federativos, de câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, a serem constituídas no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública. Dentre as suas atribuições destaca-se a composição de conflitos entre particulares e a pessoa jurídica de direito público, incluindo os referentes a pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro de contratos. Ainda segundo a lei, enquanto não criadas as referidas câmaras, os conflitos poderão ser dirimidos segundo as regras gerais do procedimento de mediação.
Ao prever a composição de conflitos que envolvam controvérsia jurídica entre órgãos ou entidades que integram a administração pública federal, a Lei 13.140/15 fixou a possibilidade de conciliação mesmo nas hipóteses em que a matéria objeto do litigio esteja sendo discutida em ação de improbidade. Para tanto, a conciliação deverá contar com a anuência expressa do juiz da causa (artigo 36, § 4º).
A conciliação permitida pela Lei 13.140/15, é certo, não implica na necessidade ou obrigatoriedade da celebração do acordo de leniência, o que acaba por afastar os pressupostos para tanto elencados na LAC.
De outro lado, não nos parece possível a flexibilização do dever de reparação integral de eventual dano comprovado, até mesmo por força do artigo 841 do Código Civil (“Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação”). E entenda-se por dano comprovado aquele incontroverso, axiomático, não necessariamente o alegado na petição inicial. Já quanto às sanções previstas na LIA, plenamente viável a sua disposição ou mesmo egressão pelo Parquet, desde que, é claro, este se ampare nos inafastáveis princípios da razoabilidade e proporcionalidade, a serem avaliados pelo juiz da causa por ocasião de seu dever de anuência do acordo.
Apesar das mudanças introduzidas pela MP 703 e pela Lei 13.140 — que, como visto, permitem acordo em ação de improbidade —, é forçoso reconhecer a necessidade de uma melhor regulamentação da matéria, especialmente para os atos ímprobos não abrigados pela LAC, com a fixação de parâmetros tendentes a reduzir a discricionariedade dos seus operadores, de modo a conferir maior segurança e objetividade nas negociações. O novo norte sinalizado pelas normas recém editadas, contudo, é extremamente positivo e prestigia o sistema previsto na LIA ao facilitar e tornar mais célere a reparação de danos causados ao patrimônio público.
Autor: Giuseppe Giamundo Neto é advogado especialista em Direito Administrativo e sócio do Giamundo Neto Advogados.