Autores: Gamil Föppel El Hireche e Pedro Ravel Freitas Santos (*)
O Supremo Tribunal Federal, em julgamento do Habeas Corpus 126.292, modificou posicionamento já há muito consolidado, permitindo a prisão a partir da decisão de segunda instância confirmatória da sentença penal condenatória. A mudança provocou diferentes reações entre os ministros.
O STF, que deve ser o guardião da Constituição, muda seu entendimento no tocante à “execução penal provisória”. Soa estranho a expressão. Mais estranho é o caminho que a corte maior do país adota com tal inovação. Ao fim e ao cabo, trata-se de mais um capítulo na saga — interminável — de concretização do Direito Penal de emergência. O consequencialismo assume ares preocupantes…
Vale destacar que a Lei 8.038/90 e o Código de Processo Penal, ao dissertarem sobre os recursos extraordinários, não concediam efeito suspensivo a tais recursos. Contudo, acertadamente, o ministro Eros Grau, no bojo do Habeas Corpus 90.645, já sinalizara a necessidade de trânsito em julgado para a execução da pena. Eis trecho do (lapidar) voto proferido pelo ministro:
Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direito. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade. É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual.
Com a (desacertada) alteração jurisprudencial — se mantida for —, será possível executar a pena tão somente com a confirmação da condenação em segundo grau. O ajuizamento do recurso especial e extraordinário não tem mais o condão de impedir o encarceramento do acusado. Rasga-se a garantia da presunção de inocência, pois se permite o cumprimento de pena ainda em discussão.
Um dos argumentos utilizados no bojo do julgamento do Habeas Corpus foi a necessidade de atendimento ao clamor popular, ou seja, sob o fragilíssimo e perigoso argumento de que é preciso “ouvir a sociedade”, o Supremo Tribunal Federal (guardião da Constituição) malfere garantias constitucionais. Interessante que, no STF, recentemente se ouvia que um dos papéis da democracia é, justamente, ser, em determinadas situações, contramajoritário.
E, no processo penal, se for para sempre ouvir a sociedade… Quiçá voltaremos às ordálias e os juízos de Deus, ou, ainda, à pena do suplício do mel…
Pois bem.
A presunção de inocência assegura tratamento do Estado, tanto do ponto de vista endoprocessual quanto extraprocessual. Contudo, a presunção de inocência deve ser um norte constante, seja para o Legislativo ao elaborar as leis, seja para o Judiciário ao tratar dos casos concretos.
Assim, a liberdade, em hipóteses excepcionais e graves, pode ceder lugar à garantia de outros bens jurídicos. A prisão preventiva (desde que fundamentada, justificada e não utilizada como moeda de troca) é um exemplo cristalino da necessidade de se relativizar (jamais rechaçar), em situações excepcionalíssimas, a presunção de inocência. Por outro lado, ao prever que todo acórdão que mantém decisão condenatória em segundo grau permitirá execução provisória da pena, viola-se, ex ante, garantia fundamental do réu, antes de tudo, cidadão.
Ora, como uma decisão, ainda que colegiada, pode dar azo à execução provisória? Mais que isso: eticamente, do ponto de vista dos deveres do Estado, cabe ao Estado executar provisoriamente uma pena? Com as devidas e necessárias licenças, da maneira como se coloca o novo entendimento, parece que se está a falar de processo civil, que se está tratando de patrimônio, de querelas civis, não da liberdade física e psicológica do cidadão. E como ficarão as hipóteses de julgamento de ações originárias com condenação em primeiro juízo?
Se valer da possibilidade de prisão preventiva para justificar a mudança jurisprudencial é minimamente contar uma meia verdade para a sociedade. Isso porque a prisão preventiva (processual) é medida que se impõe para salvaguardar o processo. O neoposicionamento do STF não se refere ao processo, mas ao próprio direito de punir do Estado. Se permitirá executar a pena, mesmo pendente recurso especial e recurso extraordinário.
Vale advertir que o recurso especial se destina à discussão da lei federal (infraconstitucional). Ou seja, embora não caiba discutir conteúdo fático, resta ainda todo o arcabouço jurídico para ser analisado pelo Superior Tribunal de Justiça.
No caso do recurso extraordinário, é possível, malgrado não cabível discussão fática, atacar todos os aspectos constitucionais do processo criminal. Assim, pode-se arguir a inconstitucionalidade de determinada lei ou determinado ato adotado durante a marcha processual.
Interessante notar que o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal contraria a tradição garantista da corte. Para além disso: contraria a tradição democrática da corte. Isso porque o artigo 5° da Constituição da República é mais do que claro ao se referir à presunção de inocência.
Do ponto de vista garantista, a famigerada “execução provisória da pena” tão somente poderia ser levada a cabo caso favorecesse o réu: em caso de prisão preventiva necessária, excepcional e fundamentada, e fazendo jus à concessão de benefícios previstos na LEP, deveria, a despeito de existir recurso pendente, aplicar-se os direitos subjetivos dos réus. Fora daí, não havendo necessidade de custódia cautelar, não haveria porque se aplicar qualquer desses institutos, tendo em vista a necessidade de se resguardar o fator libertatis.
De certa forma, a prevalecer o novo entendimento do STF, caminha-se, perigosamente, para a diminuição da importância conferida aos recursos extraordinários. Argumentos utilitaristas não servem ao processo penal, ao menos enquanto vivermos em um Estado Democrático de Direito. Justificativas como a impunidade e a demora no julgamento dos recursos não são idôneos para o debate. Ao fim e ao cabo, a ineficiência estatal não pode servir de justificativa para o malferimento de garantias básicas do cidadão. Se o problema é a demora para o julgamento, que se criem meios de, respeitando as regras processuais, acelerar o julgamento; não é crível que se prenda alguém ao argumento de que há uma (de)mora no julgamento dos chamados recursos nobres.
Uma linha adotada pelos defensores da execução provisória diz respeito à alta probabilidade de que, depois do acórdão condenatório em segundo grau, seja o réu, de fato, culpado. Pensa-se mais ou menos assim: “Bem, se o réu foi condenado em primeiro grau depois de todo um processo, se o tribunal confirmou essa sentença, muito provavelmente esse réu é culpado”. Matematicamente, esse pensamento pode ser até razoável. Porém, a Constituição da República não se pauta em aritmética ou estatística. A presunção de inocência não é um direito que vai diminuindo ao longo do processo. A presunção é constante, onipresente, inabalável. Só existe um elemento que afasta a presunção: sentença penal transitada em julgado.
As lições básicas de processo dão conta de que o trânsito em julgado somente ocorre com o julgamento do último recurso possível. Assim, impossível afastar a presunção enquanto pendentes os recursos extraordinários. Ou então, sejamos coerentes nos devaneios processuais e proponha-se logo a extinção dos recursos, via emenda constitucional (se possível for, afinal de contas, a insegurança jurídica dos últimos tempos não permite mais que se assevere o que se pode e o que não se pode mais fazer).
Paulo César Busato constatou acertadamente que a evolução do Direito Penal não é uniforme, mas pendular, não se marcha sempre em direção à consagração de direitos individuais das liberdades e diminuição do punitivismo. São suas palavras:
“Visto de um distanciamento histórico, é possível perceber que a evolução do Direito Penal consiste em sua progressiva diminuição e, por conseguinte, da fixação de limites paulatinamente mais amplos para a liberdade dos indivíduos. Entretanto, não se pode negar que este movimento de diminuição não é uniforme, mas sim pendular. A história mostra que o fluxo permanente de diminuição de intervenção penal não ocorre sem sobressaltos em direção a modelos que bem podem ser qualificados de modelos de intolerância. Temo estarmos diante de um destes ‘soluços’ históricos”[1].
A execução provisória tão útil no campo civil (extrapenal) parece ser verdadeira aberração no Direito Penal. Basicamente porque o processo penal cuida de dois bens irrecuperáveis: o tempo e a liberdade. Ora, no campo cível, caso se execute provisoriamente determinada quantia e, ao final do processo, se perceba o equívoco inicial, a reparação é simples: devolve-se o valor, corrigido monetariamente. Claro que tal equívoco causará perturbação e certa dor de cabeça ao réu. Contudo, na esfera penal, uma vez iniciada a execução da pena, caso esta seja revertida, como reparar o erro? Ou seja, e se o cidadão for, em sede de recurso especial ou recurso extraordinário, declarado inocente?
Winter is coming… Muitas outras tardes tristes virão, ministro Marco Aurélio. E, infelizmente, Bernardo Guimarães estava errado quando falava em inocência…
Autores: Gamil Föppel El Hireche é advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de Execuções Penais.
Pedro Ravel Freitas Santos é pós-graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Graduado em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).