Autor: Daniel Allan Burg (*)
A lamentável decisão proferida, em 17 de fevereiro de 2016, pelo Supremo Tribunal Federal, que, na contramão do que dispõe o texto literal do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal[1], riscou a presunção de inocência do ordenamento jurídico nacional, me fez recordar, com saudades, de um caso emblemático em que tive a oportunidade de atuar, cujo envolvido, empresário e exemplar pai de família, é meu cliente até os dias atuais.
Vou narrar, da forma mais sucinta possível, do que tratou o aludido processo, apenas para que juntos possamos fazer — e o momento é bastante oportuno para tal — uma reflexão acerca da injustiça que teria sido cometida com o cliente se já estivesse em vigor a atual (e perigosíssima!) orientação jurisprudencial da Suprema Corte.
Quando da análise das cópias do processo em questão, constatei que a situação do cliente era, no mínimo, nebulosa. Condenado em primeira instancia à pena de 4 anos pela suposta prática de delitos falimentares, teve a sua reprimenda majorada quando a 8ª Câmara do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento ao apelo ministerial para que incidisse causa de aumento de pena em relação a um dos crimes.
Ao ser constituído para defender o réu, a pena ainda não havia começado a ser executada, já que a presunção de inocência e, por via de consequência, a Constituição Federal da República, ainda era respeitada pela maioria dos magistrados.
A situação ficou menos nebulosa quando constatadas uma série de nulidades que haviam sido praticadas no curso da Ação penal, a saber:
i) o Juízo a quo sentenciou o feito sem dar ao réu a oportunidade de ser novamente interrogado, mesmo tendo sido juntadas novas provas no processo, em claro descumprimento à redação do artigo 400 do Código de Processo Penal então alterado pela Lei Federal 11.719/2008, que por sua vez havia entrado em vigor durante o transcurso da instrução processual;
ii) o réu não foi intimado pessoalmente para manifestar a sua vontade, ou não, de constituir novo advogado, ante a inércia de seus então defensores para contrarrazoar o apelo do Ministério Público; e
iii) quando da sessão de julgamento dos apelos, apenas um dos defensores então constituídos pelo réu foi intimado, deixando-se de intimar os demais patronos constituídos. Ocorre que justamente este causídico, quando de sua intimação, já não fazia mais parte do quadro de inscritos da Ordem dos Advogados do Brasil.
Como o pedido de medida liminar do Habeas Corpus impetrado perante o Superior Tribunal de Justiça foi, mesmo diante de todas essas ilegalidades, indeferido, a opção foi pela interposição, junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo de uma revisão criminal
O 6º Grupo de Câmaras Criminais do aludido tribunal, em brilhante e corajosa decisão, desconstituiu “o julgamento proferido pela Colenda 8ª Câmara Criminal”, reconhecendo que “houve inobservância do princípio do contraditório e da ampla defesa, assegurados constitucionalmente, determinando, assim, fosse o recurso “novamente julgado, sendo que, agora, com a prévia intimação dos defensores constituídos pelo recorrente, expedindo-se contramandado de prisão’’.
O que se tem, portanto, no caso em questão, é que o princípio da presunção de inocência impediu que um respeitado empresário e pai de família começasse a cumprir a injusta — porque imposta em desrespeito à ampla defesa e ao contraditório — pena de prisão que lhe fora imposta.
Muitos outros cidadãos, de agora em diante, não terão essa mesma sorte. Isto porque, conforme exposto no início da presente exposição, o Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada no dia 17 de fevereiro de 2016, ao negar o pedido contido no Habeas Corpus 126.292, decidiu que não configura ofensa ao princípio da presunção da inocência a execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau.
O mais triste de tudo isso é que, desde 2004, quando eu comecei a estagiar na área penal, grandes nomes, como, por exemplo, o do brilhante advogado criminalista Eduardo Carnelós, já me atentavam para a repercussão que a opinião pública começava a ter no julgamento dos processos penais.
Tal afirmação, em todos estes anos, veio ganhando mais e mais relevância, mas agora passou de todos os limites, sobretudo porque a Suprema Corte, que deveria ser a guardiã da Constituição Federal, sustentou que a decisão em comento foi proferida em consonância com os anseios da sociedade, a qual, como sabemos, principalmente depois que as grandes operações passaram a ter cobertura midiática, clama, longe de ter a devida compressão das consequências e desdobramentos, por punições e prisões.
Nós, criminalistas, no entanto, sabemos que o Brasil, mesmo sendo um dos países que mais prende no mundo, mantém um sistema carcerário que, para dizer o mínimo, é completamente arcaico e ineficaz, já que não cumpre sequer com a sua função primordial: Ressocializar o preso para que este possa voltar a viver em sociedade.
A prisão, nos moldes em que hoje está formatada no país, nada mais é, então, do que uma forma que as falidas instituições encontraram para “varrer a poeira para debaixo do tapete’’. Além de não ajudar a resolver o problema, a médio e longo prazo motivará o aumento da já alta taxa de criminalidade brasileira.
É bem verdade que, nos últimos anos, passaram a ser cada vez mais raras decisões emanadas das cortes superiores revertendo condenações proferidas em 2ª instância, mas, como bem pontuou o criminalista Pierpaolo Cruz Bottini “uma única prisão injusta é irreparável para o preso, para o Judiciário e para a sociedade. E nenhum juiz é infalível’’[2]
Se os desorientados gritos da sociedade, que nada entende de Direitos e Garantias Fundamentais, passaram a ser mais importantes do que a própria Constituição Federal, não mais precisamos, conforme as elucidativas e precisas palavras de Alberto Zacharias Toron, “do Direito e muito menos dos tribunais. Se for para ouvir a voz das ruas, basta o ‘paredão’ do Big Brother Brasil ou do Fidel’’[3]
Mais do que defender o princípio da presunção da inocência — e o diálogo é aberto para quem não concordar com sua validade —, a preocupação é com a eficácia e a validade do texto da Carta Magna, já que decisões como a de ontem, que pouco fazem dos comandos constitucionais, geram enorme insegurança jurídica, o que, sem dúvida alguma, afeta a sociedade como um todo.
Não se está, aqui, a prestigiar a lentidão da justiça. Aliás, é bem possível que não exista outra forma de fazer justiça que não com celeridade. O que não se pode aceitar é que, para escamotear os reais motivos da morosidade do Judiciário, o próprio guardião da Constituição rasgue as páginas do referido diploma para que sirvam de confete para o carnaval daqueles que continuam a acreditar que injustiças como, por exemplo, o encarceramento em massa, são a solução para os problemas do país.
Autor: Daniel Allan Burg é sócio do Burg Advogados Associados, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal Econômico pela Escola de Direito do Brasil.