STF coloca o Brasil entre os países que levam transparência fiscal a sério

Autor: Ricardo Lodi Ribeiro (*)

 

“O direito de estabelecer sua própria taxa de tributação não existe. Não se pode enriquecer por meio do livre-comércio e da integração econômica com os vizinhos e depois desviar impunemente sua base fiscal. Isso parece roubo, pura e simplesmente.”
(Thomas Piketty, O Capital no século XXI)

Na tarde dessa quinta-feira (18/2), o Supremo Tribunal Federal deu um importante passo para colocar o Brasil entre os países que levam a sério o princípio da transparência fiscal, fundamento para o combate eficaz à evasão tributária em nosso país e no exterior, no julgamento do RE 601.321/SP, relatado pelo ministro Luís Edson Fachin, em que, além do voto do relator, foram colhidos mais cinco votos (ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Tóffoli e Cármen Lúcia), portanto atingida a maioria absoluta, a favor da constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar 101/01, que autoriza a Fazenda Pública a examinar os montantes movimentados pelos contribuintes junto às instituições bancárias, sem a necessidade de ordem judicial.

Até essa decisão prevalecia na jurisprudência do próprio tribunal, e na doutrina brasileira, o dogma oitocentista de que o sigilo bancário, assegurado pelo artigo 38 da Lei 4.595/64, que instituiu o Sistema Financeiro Nacional, constituía direito fundamental garantido pelo artigo 5º, X (direito à intimidade) e XII (direito ao sigilo de dados). Por isso, não poderia ser flexibilizado em relação ao fisco pela legislação infraconstitucional, como fizeram os artigos 5º e 6º da LC 105/01 e artigo 11 da Lei 9.311/96, que instituiu a CPMF, com redação que lhe deu a Lei 10.174/01.

Porém, tal associação entre os direitos fundamentais relacionados à privacidade e o sigilo bancário é uma criação peculiaríssima da doutrina pátria, uma vez que, em outros países, embora ainda existam aqueles que prevejam o sigilo bancário — cada vez menos numerosos em face do avanço do princípio da transparência no cenário global — o tratam como um instituto que deriva de mera opção legislativa dirigida à atração de capitais externos, e não de um direito fundamental do contribuinte.

Hoje, esses países que não levam a sério a transparência são considerados paraísos fiscais, uma vez que não contribuem para o esforço global de combate à erosão das bases tributárias nacionais, sendo, por isso mesmo, alvo de intensa pressão da comunidade internacional.

Com a concorrência fiscal internacional decorrente da liberdade de circulação de capitais em uma economia globalizada, há a uma queda das receitas tributárias, obrigando os Estados nacionais a conferir maior importância aos procedimentos de apoio à não proliferação de práticas fiscais prejudiciais, à diminuição de potenciais comportamentos lesivos e ao estreitamento das margens de não cumprimento das leis fiscais.[1]

É inevitável constatar que com a globalização mostra-se rompida uma das principais premissas da Era Moderna: a de que vivemos em espaços delimitados pelos Estados nacionais. Nesse panorama, as medidas tomadas pelo Estado acabam por originar outros problemas sociais e econômicos. Para se proteger da livre atuação das empresas transnacionais, garantindo os direitos de seus cidadãos, os governos nacionais passam a adotar medidas que podem afugentar o fluxo de capitais, gerando mais desemprego e miséria. Por outro lado, o desenvolvimento econômico gerado pelos investimentos dos agentes transnacionais não se apresenta como solução ao crescimento da exclusão social e da concentração de renda.

Por isso que apesar do ambiente de concorrência internacional, com a chegada da grande recessão de 2008, causada pelo estouro da bolha imobiliária das hipotecas subprime norte-americanas, vários líderes mundiais têm se preocupado com os temas da evasão fiscal pelas empresas e da concorrência fiscal com jurisdições de baixa tributação, problemas amplamente ignorados antes da eclosão da crise. Agora tais questões finalmente entram na ordem do dia passando a ser consideradas determinantes para a solução das crises globais, para a recuperação do processo de acumulação de capital e para o equilíbrio social.[2] Nesse novo cenário, surgem regras relativas à transparência fiscal tendentes a tornar claras a movimentação de riquezas no mercado interno e internacional, viabilizando a sua tributação pelos governos nacionais. Em nosso país, é princípio constitucional implícito que determina que atividade financeira, seja ela realizada pelo Estado, seja desenvolvida pela Sociedade, deva ser pautada pela clareza, abertura e simplicidade.[3]

Em decorrência da transparência fiscal internacional, os países do G-20, grupo integrado pelo Brasil, em reunião ocorrida em Londres, em 2009, decretaram o “fim do segredo bancário. ” Na mesma linha de fomento à transparência fiscal, no Encontro de Los Cabos, ocorrido de 18 a 19 de junho de 2012, os governantes dos 20 países mais ricos aprovaram iniciativas de combate à erosão da base tributária e transferência de lucros para o exterior, que se materializou no intitulado Projeto BEPS (Base Erosion and Profits Shifting). Para implementar o combate à erosão da base tributária e a transferência artificial dos lucros, os líderes do G-20 conferiram um mandato à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para elaborar um plano de ação que, iniciado em setembro de 2013, contou com a participação de 44 países, incluído os membros da organização e do G-20, inclusive o Brasil. O Plano de Ação contra o BEPS envolve 15 propostas que levam a alterações dos tratados para evitar a dupla tributação e das legislações internas desses Estados, com o objetivo de impedir que o planejamento fiscal internacional agressivo e a evasão fiscal acarretem a baixa tributação ou a dúplice não tributação em operações internacionais.

A tomada de consciência sobre a importância do fim do sigilo bancário para o sucesso da transparência fiscal decorre da impossibilidade de, em um mundo globalizado, exercer uma fiscalização efetiva dos valores movimentados pelos contribuintes se estes podem ocultá-los livremente em suas próprias contas bancárias sem maiores esforços fraudulentos. Afinal, de acordo com Gabriel Zucman, cerca de 8% do patrimônio financeiro das famílias no mundo está em paraísos fiscais, livres da tributação de qualquer dos Estados nacionais,[4] causando graves prejuízos à população dessas nações, em especial a parcela mais pobre que depende das prestações estatais positivas para a sobrevivência digna.

Por outro lado, é preciso não perder de vista que, sendo as exações tributárias fixadas com aprovação geral dos representantes do povo, de acordo com a manifestação de riqueza de cada contribuinte, as tentativas deste de fugir ilegalmente aos efeitos da norma tributária acarretam maior oneração dos cidadãos mais conscientes do dever de pagar,[5] que quase sempre, não por coincidência, são os mais necessitados. Estes cidadãos adimplentes não só serão desprovidos das prestações públicas de que necessitam, como ainda deverão suportar em maior medida os custos do aparelho estatal. Por outro lado, em nosso país, os assalariados e consumidores acabam sendo o alvo mais fácil para a arrecadação de tributos em um ambiente marcado pela sonegação fiscal, que, no Brasil, atinge a fantástica cifra aproximada de R$ 500 milhões por ano.[6]

Não serve de argumento em defesa do alegórico “direito fundamental à sonegação”, o discurso cínico de que a injustiça do sistema tributário justificaria o esforço do contribuinte em não pagar o tributo previsto legalmente. É representativa dessa postura do contribuinte que busca fugir às contribuições estatais a figura do passageiro clandestino citado por John Rawls.[7] É justamente essa ideia de que a postura individual de não pagar tributo é inócua, do ponto de vista efetivação das prestações estatais, que faz com que tal conduta mereça a complacência de muitos, inclusive dos seus destinatários. No entanto, a evasão fiscal traz como consequência perigosa o efeito perverso de desestimular o pagamento por aqueles contribuintes que não se oporiam ao tributo, em razão da incerteza de que todos estejam, de fato, recolhendo suas exações. As pessoas só admitem pagar se estão certas de que todos também o fazem. Na medida em que o contribuinte imagina que outros que estão na mesma situação não pagam, lançando mão de expedientes para não serem tributados em suas manifestações de riqueza, sente-se compelido a reproduzir tal comportamento.

O problema se agrava com a reprodução dessa cultura de sonegação por um número significativo de contribuintes, o que acaba por comprometer o Estado Social e empurra o governo a uma postura desesperada, hoje infelizmente praticada no Brasil, de procurar a tributação independentemente da existência de capacidade contributiva. Nesse quadro, a maior virtude do fato gerador da obrigação tributária deixa de ser a sua condição de signo presuntivo de riqueza, passando a ser o seu maior ou menor grau de suscetibilidade às práticas fraudulentas. Exemplos dessa tendência é a instituição da CPMF e do PIS/COFINS, tributos que não levam em consideração o auferimento de riqueza, mas a mera movimentação de recursos.

Porém, nesse início do século XXI, começa a despertar uma maior consciência nos meios jurídicos tributários para a importância do tema da justiça na defesa do direito do contribuinte, não apenas sob uma perspectiva individual, como também — e principalmente — com vistas à criação de um sistema tributário nacional efetivamente justo, que possa atender aos anseios de toda a sociedade.

Não se pode perder de vista que, se o desenvolvimento econômico escapa do controle do Estado nacional, as suas consequências, como o desemprego, a pobreza, a imigração, a violência urbana, têm o seu equacionamento exigido do Estado Social,[8] cada vez mais frágil para atender a essa crescente demanda, o que gera crises políticas que colocam em risco o futuro da democracia.[9]

Também não prospera em outros sistemas, a tese, que por aqui era exitosa até o julgamento em comento, de que só a autoridade judiciária pode afastar a garantia do sigilo bancário, como se este fosse um direito fundamental a ser ponderado por autoridade imparcial em relação ao interesse da fiscalização. Como se viu, o que a Constituição protege é o sigilo dos dados relacionados à intimidade como desdobramento da própria personalidade, e não aquelas informações que se relacionam diretamente ao quinhão que cabe ao indivíduo no rateio das despesas públicas. Estas últimas não se traduzem em dados de caráter íntimo, sendo eminentemente de interesse público.

Por isso, a transparência fiscal exige que as informações relativas às riquezas movimentadas pelo contribuinte estejam automaticamente à disposição da autoridade administrativa, que é a quem compete a investigação quanto à ocorrência do fato gerador e aos aspectos pessoais, temporais, espaciais e quantitativos a ele relacionados. Não se trata de uma atividade jurisdicional. A transmissão de tais informações deve ser ato rotineiro e ordinário, pois contra ele não se levanta direito constitucionalmente legítimo a se resguardar, desde que a legislação garanta, como fez a LC 105/01, que os agentes fazendários fiquem responsáveis pela preservação do sigilo que, em relação a terceiros, resta íntegro.

Para se ter a noção de como a nossa discussão sobre o tema está fora dos parâmetros globais, vale lembrar que hoje os autores preocupados com o crescimento da desigualdade social discutem a introdução da transmissão automática das informações bancárias em escala mundial, seja dos bancos localizados no país ou no exterior, inclusive nos paraísos fiscais[10]. Mas, no Brasil, só agora nós começamos a nos libertar do mito do direito fundamental a ocultar riquezas tributáveis. Parece que estamos começando a entrar no século XXI. Mas há quem reclame. Não devem faltar motivos para tanto…

 

 

 

Autor: Ricardo Lodi Ribeiro é advogado, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT) e professor adjunto de Direito Financeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


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