Autor: Konstantin Gerber (*)
“Aldeia, a vida mais parece uma teia/que te prende e te isola, não quero tua esmola/ nem a sua dó, minha terra não é pó/ meu ouro é o barro onde piso, onde planto/ e que suja seu sapato quando vem na reserva fazer turismo/ pesquisar e tentar entender o porquê do suicídio”
Brô Mcs
O controle de convencionalidade pode ser concebido como um procedimento por meio do qual o juiz nacional discute o sentido de um dispositivo convencional[1]. Quando se estuda o Direito a partir do ordenamento, sabe-se que este é mais do que a mera soma de normas jurídicas, sendo este ordenamento composto de regras, princípios, procedimentos, direitos e garantias fundamentais, a chamada “ordem jurídica objetiva”[2], a ser revelada fenomenologicamente por meio do processo com solução de problemas concretos.
O controle de convencionalidade é exercido por cada órgão estatal e pelos juízes dentro de suas competências e procedimentos. Os juízes estão obrigados a exercer ex officio o controle de convencionalidade entre normas internas e normas da Convenção Americana, levando-se em conta as disposições dos tratados internacionais de direitos humanos, bem como a interpretação conferida pela Corte Interamericana[3].
Com base em dito controle, as interpretações judiciais e administrativas, bem como as garantias judiciais, devem ser aplicadas em adequação aos princípios da Convenção Americana e a seus princípios de interpretação, como o pro homine ou favor persona (artigo 29, CADH)[4]. Trata-se da possibilidade de se aplicar preferencialmente os direitos contidos no direito convencional como parâmetro mínimo, obrigação derivada do artigo 1º da CADH, bem como de adequar a interpretação do direito interno a uma interpretação conforme, para efeito do artigo 2º da CADH[5].
André de Carvalho Ramos alerta para a necessidade de que o Supremo Tribunal Federal não faça somente a citação do texto da Convenção Americana ou do tratado internacional, mas que exercite um “controle de convencionalidade aplicado”, valendo-se da interpretação da jurisprudência internacional, analisando-se “apenas se a norma internacional foi violada por meio da própria aplicação da norma constitucional”[6].
Não se pode dizer que o STF aplique a doutrina do controle de convencionalidade, ainda que o ministro Celso de Mello tenha nesse sentido se expressado, em caso envolvendo depositário infiel:
“Devemos interpretar a convenção internacional e promover, se for o caso, o controle de convencionalidade dos atos estatais internos ou domésticos, em ordem a impedir que a legislação nacional transgrida as cláusulas transcritas em tratados internacionais de direitos humanos”[7].
Para exemplo de interpretação francamente discordante de tribunal nacional, o STF, desde o julgado da Raposa Serra do Sol (Petição 3.388 — Roraima), veicula as noções de “renitente esbulho por parte de não índios” e do “fato indígena em 5 de outubro de 1988” — a tese do marco temporal desde a promulgação da Constituição para ocupações indígenas —, entendimento que vem sendo repetido em ações de reintegração de posse.
Há um direito de retornar à terra, quando se tratar de casos em que houve deslocamento forçado em decorrência de massacres, pois no caso da Comunidad Moiwana vs. Suriname Sentencia de 15 de junio de 2005, em caso de massacre de uma aldeia no Suriname, determinou-se não só a investigação e a punição pelas execuções extrajudiciais, mas também, no parágrafo 209, que o Estado deve “asegurar a los miembros de la comunidad su derecho de propiedad sobre los territórios tradicionales de los que fueron expulsados”.
Em caso envolvendo massacre de yanomami (massacre de Haximu), o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou, no RE 351.487-3, sobre o conceito de crime de genocídio; da mesma forma, o STJ, ao decidir que este crime não é submetido ao julgamento do Tribunal do Júri (REsp 222.653).
O ministro Lewandowski (RMS 29.087) reitera haver um novo genocídio dos povos originários:
“Nós sabemos que o que está havendo, hoje, em todo o Brasil, lamentavelmente, é um novo genocídio de indígenas, em várias partes do país, em que os fazendeiros, criminosamente, ocupam terras que eram dos índios, e posse dos índios, os expulsam manu militari (…)”[8].
Sabemos, porém, que de outro lado figura o ministro Gilmar Mendes, representante, por assim dizer, da “jurisdição patrimonial”, como se diz em Filosofia do Direito[9]. No caso vertente, os guarani kaiowá foram expulsos na década de 1940 da terra indígena Guyraroká.
Entendemos que nessas hipóteses de perda de terra em decorrência de massacres, o STF deve corrigir sua interpretação, o que não exclui a possibilidade de denúncia na OEA pelo retardamento injustificado de todas as demarcações de terras indígenas por parte de nosso Ministério da (In)Justiça.
Com a recente tradução dos julgados interamericanos para o português, bem como a profusão de publicações de comentários à Convenção Americana, com referência aos julgados, acreditamos que isso facilitará a vida dos assessores dos ministros de nosso mais elevado tribunal, de modo a se orientar pelo ratio decidendi interamericano, ou, ao revés, a dificultará, na medida em que mais munidos estarão os que advogam pelos direitos humanos no país.
E não é uma Sociologia do Direito importada da Europa que impedirá de dizer o seguinte: ao STF cumpre também declarar o estado inconstitucional de coisas em Mato Grosso do Sul, de modo a determinar providencias para os reiterados deslocamentos forçados dos povos originários.
Autor: Konstantin Gerber é advogado, mestre e doutorando em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP, onde integra o grupo de pesquisas em Direitos Fundamentais. É professor convidado do curso de especialização em Direito Constitucional da PUC-SP.