Autoras: Maria Luiza Gorga e Ana Paula de Souza Cury (*)
Não é segredo que a medicina vem se aprimorando em ritmo veloz, envolvendo no cotidiano da profissão a colaboração de diversas áreas do conhecimento e a aplicação de tecnologias avançadas. Aliando-se a essa constante evolução, a demanda por atendimento — curativo, paliativo, ou estético — cria um cenário que facilita a ocorrência de eventos indesejados, os quais, não raro, desembocam em demandas judiciais contra os profissionais envolvidos[1].
Pode-se dizer que esse avanço na capacidade de salvar vidas produziu também a criação de expectativas elevadíssimas entre a população em geral — aí incluídas as autoridades públicas — que chega a ver a cura como um direito, a etapa lógica de um atendimento médico correto, em uma noção na qual “correto” significa “bem sucedido”, correlação essa que não corresponde à realidade da profissão e à dinâmica dos eventos biológicos envolvidos na questão.
É neste cenário que atua o profissional do Direito Médico, que, para além das questões de erro médico e responsabilidade, também se envolve com demandas de tratamentos arbitrários, obrigações na cirurgia plástica, eutanásia, transplante de órgãos, reprodução assistida etc..
Deve-se ter em mente que os possíveis desdobramentos processuais de um evento indesejado são inúmeros, desde procedimentos administrativos (no âmbito de órgãos de classe ou da administração pública), a procedimentos judiciais que podem envolver tanto a justiça comum quanto os Juizados Especiais, e até mesmo o Tribunal do Júri.
Existem pontos de nossa legislação, tanto cível quanto criminal, que são merecedores de discussão quando se trata do Direito Médico, de forma que é de rigor que se apresentem os principais aspectos que cercam a atividade médica e que podem vir a se apresentar ao profissional.
De início, cabe estabelecer que a responsabilidade do médico no âmbito penal apresenta particularidades que foram incluídas pelo legislador devido à noção de que este profissional possui um dever maior de atuar em conformidade com as normas — legais, regulamentares, ou da ciência médica — e em estrita obediência aos deveres gerais de cuidado.
Ainda, a culpa do profissional, no sentido de ato que possa levar à sua responsabilização, pode surgir em qualquer uma das fases da atividade, seja no diagnóstico, prognóstico, escolha do tratamento terapêutico, e aplicação da terapia.
De forma específica, identifica-se que existem, no Código Penal brasileiro, alguns tipos penais que só podem ser praticados por profissionais de saúde, sendo eles: omissão de notificação de doença, exercício ilegal da medicina, falsidade de atestado médico, e a forma específica da infração de medida sanitária preventiva.
Outros delitos com os quais o profissional pode se deparar são: o homicídio culposo, o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, a lesão corporal culposa, a provocação de aborto, a omissão de socorro, o condicionamento de atendimento médico-hospitalar, maus tratos, o constrangimento ilegal, e a violação do segredo profissional.
Ainda, além dos delitos tipificados no Código Penal, existem condutas definidas como crime em outras normas legais, e com as quais o profissional da medicina pode, eventualmente, se deparar ao longo de sua carreira, sendo tais condutas previstas na Lei de Planejamento Familiar (Lei 9.263/96), Lei de Transplantes (Lei 9.434/97), e Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05).
Dado que, de acordo com as normas penais brasileiras, o desconhecimento a uma proibição legal não isenta o agente da punição, é evidente a necessidade de o profissional estar familiarizado com referidos delitos e as condutas que os tipificam.
Percebe-se, assim, que o médico trabalha em verdadeiro campo minado, cenário que não é mais agradável sob o aspecto do Direito Civil.
Neste âmbito, existem diversos debates sobre questões referentes à natureza da responsabilidade médica como contratual ou extracontratual, objetiva ou subjetiva, obrigação de meio ou de resultado, todos esses sendo pontos que alteram sobremaneira não apenas a carga de responsabilidade que recai sobre o profissional, como também — e principalmente — qual seria o dever deste em indenizar um paciente.
Ainda, há a discussão a respeito da possibilidade enquadramento da atividade médica como fornecimento de serviços passível de ser tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor, e as diversas consequências daí advindas, bem como a possibilidade de aplicação da Lei de Mediação (Lei 13.140/2015) a conflitos envolvendo atos médicos, e que pode vir a revolucionar a prática forense em âmbito civil no que toca à composição de danos e celebração de acordos. Todos os pontos bastante específicos à atividade médica, o que exige conhecimento e atualização constantes por parte do profissional responsável pela defesa civil.
Tudo isso nos leva a concluir que o profissional, para bem exercer seu mister e manter sua segurança pessoal e profissional, necessita do aconselhamento jurídico de advogado familiarizado com tais questões, não apenas sob o aspecto estritamente legal, mas também com algum conhecimento prático da profissão médica, como noções da dinâmica de tratamentos e prontuários — ferramenta fundamental em qualquer defesa —, e rudimentos relativos a condições médicas, por exemplo.
Esse preparo do advogado é ainda mais relevante na medida em que a análise de condutas médicas pelas autoridades policiais ou judiciárias é caracterizada por uma grande dificuldade de diálogo entre as partes, seja por uma disparidade de conhecimentos, seja por uma visão equivocada das reais possibilidades e limites da medicina e do profissional.
Assim, é essencial que o indivíduo esteja munido da melhor forma para poder contextualizar suas ações e motivações, explicar procedimentos e padrões, e atribuir a responsabilidade de cada passo do atendimento aos profissionais corretos, evitando-se lacunas ou confusões, tarefa na qual o advogado bem preparado é indispensável, podendo melhor organizar a defesa de seu cliente e, de certa forma, traduzir os conceitos médicos aos administradores da Justiça.
Por fim, além da atuação contenciosa, outro ponto relevante ao advogado que atue no Direito Médico é ser capaz de auxiliar seu cliente no alinhamento entre o cotidiano terapêutico e a gestão dos riscos legais, o que leva a reflexões de compliance e sua possível aplicação aos profissionais da medicina, podendo o advogado auxiliar na criação padrões de conduta — tanto para indivíduos como para instituições — que possibilitem a prevenção de procedimentos criminais ou que levem à condução de uma investigação da melhor maneira possível.
Autoras: Maria Luiza Gorga é advogada criminal no Teixeira, Martins & Advogados, mestranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo.
Ana Paula de Souza Cury é advogada cível no Teixeira, Martins & Advogados. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.