Autora: Vitoria Schimiti Voltarelli (*)
A Lei 11.101/2005 (Lei de Falências e Recuperação de Empresas), ao inaugurar o instituto da recuperação judicial no país, traçou o objetivo de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, mantendo-se fontes de produção, empregos e interesses dos credores, para promover a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica (art. 47, LRE).
Talvez o maior desafio prático enfrentado pelo aplicador da norma seja conciliar, em cada caso, dois grandes propósitos da recuperação: a preservação da empresa e os interesses dos credores.
Em outras palavras, quando o plano de recuperação apresentado pela recuperanda não corresponde às expectativas e interesses de determinado credor, ou determinada classe de credores, qual o interesse a tutelar?
A regra geral à aprovação do plano de recuperação é a do caput do art. 58, de que o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55[1] ou tenha sido aprovado pela assembleia de credores nos termos do art. 45[2].
Pelo que prevê a LRE, integrar sozinho uma classe assegura ao credor certo poder, pois seu voto conduz o destino do plano de recuperação, independente do crédito titularizado.
Por outro lado, ao permitir a aprovação do plano de recuperação sem a concordância de todos os credores, a LRE importou a prática americana docram down, que significa a possibilidade de o juiz impor aos credores discordantes o plano apresentado pelo devedor e já aceito por uma maioria[3].
Tenta-se, em verdade, evitar que a proteção do crédito comprometa ou inviabilize a proteção da empresa a partir de comportamentos abusivos, dentre eles o abuso do direito de voto do credor único da classe, usualmente detentores de garantia real (classe II), aos quais interessa mais a pronta liquidação da empresa.
Diante da omissão da lei sobre o abuso no campo da recuperação, deixando de prever, por exemplo, anulação das deliberações tomadas em decorrência de voto conflitante, a orientação da doutrina e jurisprudência é que se aplique, por analogia, o artigo 187 do Código Civil, segundo o qual “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
É da cláusula geral balizada pelo dispositivo que se parte para o reconhecimento do abuso de direito no exercício de voto na assembleia de credores. Os parâmetros, embora amplos, não são exaustivos, e baseiam-se em quatro vertentes.
A primeira vertente para a caracterização do abuso – e que merece especial relevância em se considerando que na recuperação judicial estão em jogo interesses econômicos das partes – é o excesso de limites impostos pelo fim econômico, o que significa dizer que quem piora a situação do outro, sem com isso melhorar a própria, age com abuso.[4]
A segunda, de ordem teleológica, tipifica o abuso quando o exercício do direito excede os limites impostos pelo fim social, o que quer dizer que o credor muitas vezes será exposto a sacrifícios em nome da preservação da empresa.
Ainda pela interpretação do art. 187, do Código Civil, também cometem abuso aquele cuja ação contraria a boa-fé [objetiva] e aquele que excede os limites impostos pelos bons costumes.
Sheila Cerezetti ensina que
“a avaliação da abusividade do exercício do direito de voto proferido por um credor deve, portanto, pautar-se pela proibição, expressa em lei, da violação dos três valores indicados. No que tange aos fins do direito de voto, importa ressaltar que suas finalidades precisam ser observadas. Destarte, não obstante o direito de voto tenha sido atribuído ao seu titular como importante mecanismo de defesa de seu interesse creditório (finalidade econômica), trata-se também de instrumento essencial à implementação do princípio da preservação da empresa (finalidade social) – máxima, como visto, do direito concursal brasileiro e intimamente relacionado ao respeito aos interesses abrangidos pela empresa”.
Sobre o tema, o Tribunal de Justiça de São Paulo já se manifestou no sentido de que “não se pode admitir validade à rejeição de plano por credor único em determinada classe, apesar dos critérios limitados do cram down da lei brasileira, sob pena de configurar-se abuso no exercício do direito de votar o plano na assembleia geral sempre que o credor privilegiasse posições excessivamente individualistas, em detrimento dos demais interesses em jogo”[5].
No entanto, ainda que se queira aprovar o plano, pela relevância do princípio da preservação da empresa, não se pode reputar abusivo todo voto que discordante e/ou único na respectiva classe. Ser credor único, ou único de uma determinada classe, é uma circunstância não calculada pelo credor, tampouco ilegal.[6]
O cerne da questão é trabalhar o equilíbrio dos interesses sociais e individuais, reprimindo-se o abuso do direito de voto do credor, sem preterir a verticalidade das classes creditícias.
À posição de superioridade exercida por este credor correspondem responsabilidades, dentre as quais o dever de fundamentação do voto contrário ao plano de recuperação. O voto fundamentado, todavia, é válido, e deve ser respeitado, sob pena de macular o propósito da “manutenção dos interesses dos credores”, previsto no já citado artigo 47.
A repressão do abuso, portanto, funciona como limite negativo do processo de recuperação e, ressalte-se, também deve ser erguida ao devedor, conforme consolidado pelo Enunciado 45 da I Jornada de Direito Comercial.[7]