Novo CPC permite provimento de recurso sem prévia oitiva do recorrido

Autor: Alexandre Freitas Câmara (*)

 

O artigo 932, V, do novo CPC estabelece incumbir ao relator, “depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento [a] recurso” em determinadas situações que ali são descritas. Não é objetivo deste texto examinar em que casos se deve prover um recurso, seja por decisão monocrática, seja por meio de acórdão, no regime do novo CPC. O objetivo aqui é outro: busca-se saber se seria possível, em alguma situação, dar provimento a recurso sem antes abrir-se oportunidade para a manifestação do recorrido, ou se isso implicaria necessariamente violação ao princípio do contraditório.

Ao dispositivo legal há pouco mencionado, outros devem ser acrescentados. O artigo 9º do novo CPC expressamente estabelece que não se profere decisão contra a parte “sem que ela seja previamente ouvida”, ressalvadas as exceções previstas no parágrafo único do mesmo artigo (tutela provisória de urgência; hipóteses de tutela da evidência previstas no artigo 311, II e III; decisão liminar proferida no procedimento monitório).

Quando se examina a regulamentação dos procedimentos previstos para as diversas espécies de recurso, facilmente se verifica que, ao menos como regra, não seria mesmo possível o provimento do recurso sem prévia oportunidade para que o recorrido ofereça suas contrarrazões. É que, como regra, o procedimento do recurso se desenvolve, primeiro, perante o juízo a quo, prolator da decisão recorrida, a quem incumbe colher as contrarrazões, e só depois é que os autos são remetidos ao juízo ad quem, onde o mérito do recurso será apreciado. É assim, por exemplo, na apelação (em que as contrarrazões são colhidas pelo juízo de primeira instância — artigo 1.010, parágrafo 1º — e só depois encaminhado ao tribunal de segunda instância). Também no agravo interno (em que as contrarrazões são apresentadas ao relator, nos termos do artigo 1.021, parágrafo 2º; e só depois levado à apreciação do colegiado), no recurso ordinário (a que se aplica o mesmo procedimento previsto para a apelação: artigo 1.028), no recurso especial e no recurso extraordinário (em que as contrarrazões são colhidas no tribunal de origem, conforme estabelece o artigo 1.030, e só depois, se for admitido o recurso no tribunal de origem, os autos serão remetidos ao tribunal de superposição).

Fica, porém, o caso do agravo de instrumento, recurso que é interposto diretamente no tribunal ad quem, para ser examinado. É que nesse caso o recurso é interposto e imediatamente distribuído ao relator, a quem incumbe determinar a intimação do agravado para oferecer contrarrazões (artigo 1.019, II) e, se for o caso, julgar monocraticamente (ou, não sendo o caso, submeter a causa à apreciação do órgão colegiado). Pois é aqui que se põe (ao menos principalmente, pois há desdobramentos em outros recursos que não podem ser desconsiderados, como seria o caso de recurso especial contra a decisão proferida nesse mesmo agravo de instrumento) a questão objeto deste pequeno texto: seria possível, em alguma hipótese, ao relator do agravo de instrumento dar provimento ao recurso sem previamente ouvir o agravado? Buscarei demonstrar que sim, sem que daí resulte qualquer violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Como sabido, um dos efeitos do julgamento do mérito de um recurso é o assim chamado efeito substitutivo. Significa dizer que, uma vez julgado o mérito do recurso, a decisão aí proferida substitui o pronunciamento recorrido, passando a ocupar seu lugar no procedimento. É o que resulta do artigo 1.008 do novo CPC, segundo o qual “[o] julgamento proferido pelo tribunal substituirá a decisão impugnada no que tiver sido objeto de recurso”. Assim, por exemplo, proferida uma decisão sobre tutela provisória pelo juízo de primeiro grau, a decisão prolatada pelo tribunal em grau de recurso — seja ela monocrática, do relator, ou colegiada — passa a ser a decisão sobre tutela provisória, substituindo a decisão proferida pelo juízo originário. Isto se dá, perceba-se, mesmo naqueles casos em que no tribunal nega provimento ao recurso (“confirmando-se a decisão”, como muitas vezes se lê na prática).

Isto que acaba de ser dito aplica-se a qualquer espécie de recurso. Pense-se, por exemplo, no caso de ser proferida sentença de improcedência do pedido. Interposta (e desprovida) a apelação, a decisão de improcedência agora é a do tribunal, e não mais a do juízo de primeira instância. É contra esta nova decisão que se pode agora recorrer. É ela que, se nenhum recurso admissível for interposto, alcançará a autoridade de coisa julgada. É a decisão do tribunal — e não a do juízo de primeiro grau — que poderá vir a ser rescindida, caso se venha a propor ação rescisória.

Pois é aqui que se encontra a chave para a solução da questão ora enfrentada. Há decisões judiciais que devem ser proferidas inaudita altera parte, isto é, sem prévia oitiva da outra parte. É o caso, por exemplo, da decisão que concede tutela de urgência, ou da que defere o benefício da gratuidade de Justiça para o autor. Pois no caso de a parte não obter a decisão que postulou, poderá ela (caso se trate de uma decisão interlocutória agravável, nos termos do artigo 1.015) interpor agravo de instrumento para obter um pronunciamento de segundo grau que substitua a decisão de indeferimento prolatada em primeiro grau.

Nesses casos, não faria qualquer sentido exigir-se que antes do provimento do agravo de instrumento se tivesse de ouvir o agravado. Figure-se o seguinte exemplo: o autor postula uma medida de urgência, afirmando expressamente na petição inicial que a prévia oitiva do réu retiraria toda a eficácia da medida, como seria, por exemplo, o caso de se ter postulado o arresto cautelar de um bem que o demandado poderia facilmente alienar se fosse ouvido antes da decisão sobre a concessão ou não da tutela de urgência. Indeferida a medida pelo órgão de primeiro grau, e interposto o agravo de instrumento, não faria qualquer sentido exigir-se a prévia oitiva do agravado para só depois prover o recurso. Afinal, soa bizarro — para dizer o mínimo — afirmar que seria preciso ouvir o réu antes de decidir se é ou não o caso de se conceder uma medida que se postulou inaudita altera parte.

Evidentemente, decisões — seja qual for o grau de jurisdição em que proferidas — prolatadas inaudita altera parte são provisórias. E no caso de que ora se trata, essa provisoriedade resulta — inclusive — do fato de não ter havido a prévia manifestação do demandado sobre a matéria nela versada, o que faz com que para ele seja perfeitamente possível suscitar depois a mesma matéria, não se podendo cogitar aí de qualquer tipo de preclusão.

Há um importante precedente do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. É que, após a edição da Lei 8.952/1994, que reformou o CPC de 1973, passou-se a dispensar a citação do réu para oferecer manifestação quando houvesse interposição de apelação contra sentença de indeferimento da petição inicial. O STF, ao enfrentar a questão, proferiu acórdão assim ementado:

INCONSTITUCIONALIDADE. Recurso. Mandado de segurança. Indeferimento da inicial. Apelação. Processamento. Citação da pessoa jurídica legitimada passiva ad causam, para contra-arrazoar. Desnecessidade. Não ocorrência de coisa julgada material nem preclusão em relação a ela. Inteligência e constitucionalidade do art. 296, § único, do Código de Processo Civil, com a redação da Lei nº 8.952/94. Interpretação conforme à Constituição (art. 5º, LIV e LV). Agravo improvido. Votos vencidos. A decisão que julga apelação processada nos termos do art. 296, § único, do Código de Processo Civil, com a redação da Lei nº 8.952, de 13 de dezembro de 1994, não gera coisa julgada material nem preclusão em relação ao réu, cuja citação é desnecessária para contra-arrazoar o recurso.
(AI 427533 AgR, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 02/08/2004, DJ 17-02-2006 PP-00055 EMENT VOL-02221-03 PP-00465 RT v. 95, n. 851, 2006, p. 135-143)

O relator daquele recurso, ministro Marco Aurélio, manifestou-se pela inconstitucionalidade do artigo 296, parágrafo único, do CPC de 1973, ao argumento de que, “se de um lado é possível o indeferimento liminar de inicial, sem audiência da parte contrária, interposto recurso — no caso foram protocolados sucessivos recursos —, indispensável é que se forme a relação, como ocorria antes de 1994, com a redação anterior do Código de Processo Civil”. Prosseguiu o eminente ministro do STF afirmando que, “olvidando-se o princípio do contraditório, introduziu-se no cenário jurídico automaticidade que é suficiente a conduzir à situação flagrada nestes autos. O tribunal, ante o provimento do agravo, sem audição do agravado, poderá vir a julgar o extraordinário, revertendo o quadro decisório até aqui formalizado, sem conhecimento do interessado, ou seja, do réu da ação constitucional proposta”. Concluiu, então, o ministro Marco Aurélio “pela inconstitucionalidade do artigo 296 do Código de Processo Civil, com a redação imprimida pela Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994”. Esse entendimento, todavia, restou vencido (tendo o ministro Marco Aurélio sido acompanhado em seu entendimento apenas pelo ministro Sepúlveda Pertence). O entendimento que prevaleceu naquele julgamento (a partir do voto do ministro Cezar Peluso) foi o de que o julgamento pelo tribunal pode ser proferido em favor do autor sem a prévia oitiva do réu (que ainda não foi citado), mas pode por ele ser posteriormente questionado, pois “de outro modo o réu ficaria prejudicado: seria atingido por efeito da coisa julgada em processo do qual ele não fez parte”. Em situações assim, portanto, “o réu não pode ser atingido [por decisão] cuja eficácia fica limitada pela não presença do réu”. Permite-se, assim, afirmou o ministro Peluso, “que o réu apresente argumentos de reforço que até a suprema corte não conhecia, pois resguarda-lhe essa possibilidade de demonstrar que a primeira decisão, proferida sem a sua participação e os seus argumentos, foi errada”.

Dito de outro modo: proferida em favor do demandante, em grau de recurso, uma decisão concessiva de medida inaudita altera parte (destinada a substituir a decisão recorrida, prolatada pelo juízo de primeiro grau de jurisdição), essa não impedirá o demandado de, após ser citado, suscitar novamente as mesmas questões que já foram objeto do pronunciamento anterior e que poderão uma vez mais ser apreciadas.

No regime do novo CPC, já não é mais assim que se procede na apelação, ainda que proferida contra sentença de indeferimento da petição inicial (artigo 331, parágrafo 1º) ou no caso de improcedência liminar (artigo 332, parágrafo 4º). Porém, no agravo de instrumento, é exatamente assim que funciona o sistema: só se cogita de intimação do agravado antes da prolação de decisão de provimento do agravo de instrumento (para que se manifeste, oferecendo contrarrazões) se o recurso tiver sido interposto após sua citação. Tendo sido a decisão proferida inaudita altera parte, porém, o mérito do agravo de instrumento será julgado — e, se for o caso, se deverá dar provimento ao recurso — sem prévia oitiva do agravado, mas sem que daí resulte qualquer violação ao princípio constitucional do contraditório. Nada impedirá, porém, que posteriormente citado o réu, ele questione essa decisão, buscando sua reforma ou cassação. E será até mesmo possível que o juízo de primeiro grau, diante dos argumentos agora trazidos pelo réu (e que não foram anteriormente apreciados nem pelo tribunal), revogue a decisão anteriormente prolatada pelo órgão superior. Não haverá aqui qualquer ofensa à autoridade do tribunal, já que se terá feito cognição mais ampla e mais profunda, apta a permitir a revogação da decisão de caráter provisório anteriormente prolatada.

Vale registrar que o entendimento aqui sustentado tem apoio em decisões já proferidas pelo STJ. Veja-se a ementa de uma:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. LIMINAR INDEFERIDA. RÉU AINDA NÃO CITADO. DESNECESSIDADE DE INTIMAÇÃO PARA A APRESENTAÇÃO DE CONTRA-RAZÕES. ART. 527, III, DO CPC. RAZÕES DO INCONFORMISMO. MERA REPRODUÇÃO DOS ARGUMENTOS DEDUZIDOS NA INICIAL. DESPROVIMENTO.
PRECEDENTES DO STJ.
1. Ainda não formada a relação processual, não há necessidade de intimação da parte adversa para oferecimento das contra-razões nos autos do agravo de instrumento onde se examina o indeferimento de medida liminar inaudita altera pars. Precedentes do STJ.
2. Restringindo-se a Agravante a manifestar a sua irresignação com a decisão agravada, sem nenhum fundamento apto a ensejar a sua modificação, impõe-se o desprovimento do Agravo. Precedentes do STJ.
3. Agravo regimental desprovido.
(AgRg na MC 5.611/MA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/11/2002, DJ 03/02/2003, p. 298)

E no julgamento do REsp 205.039/RS, o relator, ministro Ruy Rosado de Aguiar, assim se pronunciou:

“Tratando-se de decisão que o juiz pode tomar independente da intimação ou citação do réu, como acontece no caso em que se reclama do implícito indeferimento da medida liminar pleiteada, também há de se admitir que o recurso interposto dessa decisão seja apreciado pelo tribunal independentemente de intimação da parte ré, ainda não citada e até ali sequer presente nos autos através de advogado. No sistema implantado pela nova legislação, que se dirige para a presteza e eficácia na prestação jurisdicional, a intimação a que se refere o artigo 527, III, do CPC, é da parte que já integra a relação processual, o que não acontece no caso de exame de providência initio litis, a ser adotada ainda antes da citação e sem que presente no processo o réu ou seu advogado, sabendo-se que este é o que deverá ser intimado para responder. Nem poderia ser diferente, pois se a medida temurgência, o seu exame não poderia ficar dependente do decurso de prazo de dez dias para a defesa”.

Pois é exatamente isso. O artigo 932, V, do novo CPC, ao exigir a prévia oitiva do agravado antes de se dar provimento a um recurso, só se aplica aos agravos de instrumento interpostos contra decisão interlocutória proferida após a citação do demandado. No caso das decisões que devem ser proferidas inaudita altera parte, não há essa exigência, e é perfeitamente possível o provimento do recurso sem prévia abertura de prazo para oferecimento de contrarrazões.

 

 

 

Autor: Alexandre Freitas Câmara é desembargador do TJ-RJ, presidente do Instituto Carioca de Processo Civil (ICPC), vice-diretor de Relações Institucionais do Instituto Brasileiro de Direito Processual, membro da Associação Internacional de Direito Processual e doutorando em Direito Processual pela PUC Minas.


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