Delegado de polícia tem legitimidade para celebrar colaboração premiada

Autor: Francisco Sannini Neto e Henrique Hoffmann Monteiro de Castro (*)

 

A colaboração premiada consubstancia-se hodiernamente num dos principais mecanismos estatais para a efetividade da persecução penal. Prevista em diversas leis especiais, tais como a Lei 8.072/90 (artigo 8º), a Lei 9.613/98 (artigo 1º, §5º), a Lei 11.343/06 (artigo 41) e a Lei 9.807/99 (artigos 13 e 14), e até mesmo em tratados internacionais (devendo ser citadas a Convenção de Palermo e a Convenção de Mérida), teve sua disciplina inicialmente vinculada apenas à delação de coautores e partícipes. Mais recentemente, o legislador autorizou outras formas de auxílio, deixando claro que a delação premiada é apenas uma das espécies do gênero colaboração premiada. O instituto também evoluiu quanto aos prêmios legais: inicialmente restrito à redução de pena, hoje permite até mesmo o perdão judicial.

O regramento mais pormenorizado encontra-se hospedado na Lei 12.850/13. Essa técnica especial de investigação criminal (meio de obtenção de prova)[1] ganhou enorme notoriedade em virtude da operação “lava jato”, e tem sido bastante utilizada pelos investigados e réus para auxiliar na descoberta da verdade. Por isso mesmo, fica evidente sua natureza dúplice, que não se resume a mero instrumento persecutório do Estado-Investigação e Estado-Acusação, consistindo também em estratégia de defesa.

Pois bem. Uma questão discutida recentemente pela doutrina e cercada de alguma polêmica refere-se à possibilidade do delegado de polícia promover a famigerada colaboração premiada. Essa legitimidade, estampada de maneira inequívoca no artigo 4º, §§2º e 6º da Lei 12.850/13, e acolhida pelas cortes superiores e doutrina majoritária, vem sendo questionada especialmente pelos autores oriundos do Ministério Público. Sustentam que tais dispositivos da Lei de Organização Criminosa seriam inconstitucionais por ferirem o sistema acusatório [2]. Isso pois nenhuma providência probatória poderia ser efetivada sem a provocação das partes, em especial quando o titular da ação penal ainda não tiver se manifestado a opinio delicti.

Dentro do estudo do Direito, é essencial a leitura e reflexão sobre pontos de vista diferentes, uma vez que, não raro, os argumentos dos opositores servirão para embasar uma mudança de opinião ou, como no caso, reforçar os seus próprios argumentos. Nesse sentido, vejamos a posição do promotor Eduardo Araújo da Silva:

A lei é inconstitucional ao conferir tal poder ao delegado de polícia, via acordo com o colaborador, ainda que preveja a necessidade de parecer do Ministério Público e de homologação judicial, pois não pode dispor de atividade que não lhe pertence, ou seja, a atividade judicial de busca da imposição penal em processo-crime, vinculando o entendimento do órgão responsável pela acusação.[3]

Percebe-se que, talvez por uma influência corporativista, visando um indevido protagonismo do MP na investigação criminal, os autores citados invocam argumentos frágeis e que não encontram amparo em nosso ordenamento jurídico. Ora, se nenhuma providência probatória pudesse ser tomada sem a consulta do titular da ação penal, então nem o inquérito policial poderia ser instaurado pelo delegado de polícia, que também não poderia requisitar perícia, ouvir testemunhas, apreender objetos, etc. Se prevalecesse esse entendimento, a própria existência do inquérito policial perderia sentido.

Parece-nos que os defensores dessa tese se equivocam no próprio conceito de investigação preliminar, que objetiva, justamente, reunir elementos sobre a existência da infração penal e sua provável autoria, prescindindo, nesse contexto, de qualquer parecer do titular da ação penal, devendo desenvolver-se de maneira autônoma e imparcial, sem qualquer compromisso com as partes do processo, mas apenas com a verdade e com a justiça[4].

A presidência do inquérito policial é exclusividade da Polícia Judiciária, como não se cansa de afirmar a Suprema Corte.[5] O Tribunal da Cidadania caminha na mesma trilha no sentido de que a presidência do inquérito policial cabe tão somente ao delegado de polícia, sendo vedado aos membros de outras instituições, a exemplo do Ministério Público, presidir o procedimento.[6]

Sendo assim, atento ao fato de que o delegado de polícia é o titular do inquérito policial, o legislador lhe conferiu as ferramentas necessárias para o exercício desse mister. Desse modo, sempre que a autoridade de polícia judiciária vislumbrar a necessidade da adoção de uma medida cautelar, que, em regra, só pode ser concedida pelo juiz, ele deve se valer de uma representação para provocá-lo.

Nesse sentido, o representante do Ministério Público deverá ser ouvido nos casos em que houver representação do delegado de polícia pela decretação de alguma medida dessa natureza. Isso significa que o órgão ministerial deverá ofertar um parecer, vale dizer, emitir uma mera opinião sobre o caso representado, sem que, com isso, o Poder Judiciário fique vinculado à sua manifestação.

Aliás, tendo em vista o caráter imparcial do inquérito policial, o desenvolvimento de suas atividades ficou sob a incumbência de uma instituição sem qualquer vínculo com o processo posterior, o que garante a independência e a legitimidade das investigações. Afinal, como poderia o Ministério Público, como parte da relação processual, conduzir a investigação com a devida isenção se ele já tem em mente uma futura batalha a ser travada durante o processo?

E não se utilize o malfadado argumento da “parte imparcial” para sustentar uma ilusória imparcialidade do parquet. Como ressaltado pelos tribunais superiores, o Ministério Público, embora seja entidade vocacionada à defesa da ordem jurídica, não atua de forma imparcial no âmbito penal, dada a parcialidade que lhe é inerente.[7]

Com efeito, é bastante perigoso o discurso de que esse sujeito processual é imparcial e sempre representará a solução justa e correta, e acaba por enfraquecer o postulado da presunção de inocência.[8] Considerar o MP ao mesmo tempo um “advogado sem paixão” e “juiz sem imparcialidade”, nas expressões de Calamandrei[9], não parece ser positivo para a garantia de um processo penal verdadeiramente democrático.[10]

O delegado de polícia, como presidente do inquérito policial, é a autoridade mais indicada para saber quais as necessidades da investigação em desenvolvimento, sendo que a utilização de medidas cautelares constitui um dos possíveis caminhos a serem trilhados na busca pela verdade. Desse modo, se a adoção de tais medidas ficasse condicionada ao parecer do Ministério Público, isso significaria que a própria investigação ficaria vinculada a este órgão e sob o seu controle, sepultando a um só tempo o artigo 144 da CF e a Lei 12.830/13.

Consigne-se, ainda, que, para formar seu convencimento jurídico acerca dos fatos, a autoridade policial precisa das ferramentas necessárias para a investigação. Desse modo, se condicionarmos a sua representação ao parecer favorável do titular da ação penal, nós estaríamos, por via oblíqua, impedindo-o de encontrar os fundamentos indispensáveis para a formação da sua decisão final, alijando por completo a investigação.

Com o objetivo de reforçar os argumentos exposto, entendemos que a teoria dos poderes implícitos, sempre invocada pelo Ministério Público para sustentar a sua legitimidade em realizar atos de investigação criminal, serve para demonstrar a desvinculação entre a representação do delegado de polícia e o parecer do dominus litis. Ora, se a titularidade da investigação criminal foi conferida às polícias judiciárias, tendo em vista que a adoção de medidas cautelares constitui ferramenta indispensável ao correto desenvolvimento desse mister, condicioná-las ao parecer favorável do Ministério Púbico seria a mesma coisa que retirar as ferramentas imprescindíveis à investigação, fazendo com que a própria existência de uma polícia investigativa perca o seu sentido. Em outras palavras, se o legislador constituinte incumbiu às polícias civil e federal o protagonismo na investigação de infrações penais (atividade-fim), implicitamente ele também lhes conferiu os meios para o desempenho de tão importante missão (representação pela decretação de medidas cautelares como, por exemplo, a interceptação telefônica, a prisão preventiva e a colaboração premiada), como grifado pelas cortes superiores. [11]

Ao tentar defender uma tese aparentemente institucional, os autores citados asseveram que o delegado de polícia não é parte no processo, não possuindo, destarte, qualquer encargo probatório. De fato, a autoridade policial não tem o ônus da prova no processo, justamente porque não é parte, mas uma autoridade imparcial compromissada apenas com a busca pela verdade de um fato aparentemente criminoso. Isso não significa, todavia, que os elementos probatórios produzidos no inquérito policial não possam fundamentar a sentença final[12].

Concordamos que, em regra, a capacidade postulatória de provocar o juízo só deve ser conferida às partes do processo. Contudo, nada impede que o legislador, do alto da sua soberania, confira uma legitimação extraordinária a uma autoridade que não seja parte no processo. Trata-se, nesse caso, de uma “capacidade postulatória imprópria”, uma verdadeira legitimatio propter officium, ou seja, uma legitimidade em razão do ofício exercido pelo delegado de polícia, que tem a função de atuar como “os olhos” do Juiz nesta fase pré-processual, um verdadeiro longa manus do Poder Judiciário na preparação para eventual persecução penal em juízo. É exatamente isso que ocorre no caso da colaboração premiada!

Nesse ponto, vale destacar as lições de Rogério Sanches e Ronaldo Batista ao discorrer sobre a representação do delegado de polícia visando à concessão de perdão judicial ao investigado colaborador. Apesar das críticas de parcela da doutrina, os autores sustentam que o ato de representar, em tais casos, está inserido no âmbito regular das atribuições do delegado de polícia, assim como ocorre na representação para decretação de prisão preventiva, por exemplo.

Contudo, Sanches e Batista asseveram que o juiz não fica vinculado aos requerimentos das partes e nem à representação do delegado de polícia, podendo, inclusive, optar pela concessão do perdão judicial no ato privativo de sentenciar. E concluem: “Ora, se o favor legal pode mesmo ser concedidoex officio, não vemos razão, com a devida vênia, para impedi-lo apenas porque sugerido mediante representação da autoridade policial”.[13]

Noutro giro, é preciso sublinhar um viés da colaboração premiada muitas vezes esquecido, qual seja, o de “recurso” inerente à ampla defesa (artigo 5º, LV da CF). Não é exagero afirmar que constitui direito subjetivo do investigado ou do réu a iniciativa de propor não só ao promotor de justiça, mas também ao delegado de polícia, o acordo de colaboração premiada, a fim de reduzir ou afastar a pena diante da real possibilidade de ser aplicada uma severa sanção penal ao final do processo, o que reforça a natureza dúplice desse instituto.

Obviamente, não há direito líquido e certo ao recebimento do benefício, porquanto a apreciação da colaboração premiada submete-se à regra da corroboração,[14] vedando-se a corroboração recíproca ou cruzada.[15]

Não se pode realizar uma análise opaca e isolada do artigo 129, I da Constituição, ignorando-se o artigo 144 da Carta Maior e olvidando-se do mais importante princípio de interpretação constitucional, a saber, a unidade[16]. Esse postulado exige que o hermeneuta realize uma interpretação sistemática dos comandos da Constituição, evitando a apreciação isolada de normas constitucionais.

Nesse sentido, os dispositivos constitucionais, ao mesmo tempo em que atribuem ao Ministério Público o dever ajuizar ações penais, autorizam a polícia judiciária a protagonizar as investigações criminais, valendo-se de todos os meios legais necessários para tanto. O constituinte em momento algum conferiu ao MP o poder exclusivo de deliberar acerca da necessidade de uma investigação criminal ou sobre a conveniência de tal e qual instrumento persecutório. Tornar vazias as atribuições do delegado de polícia por meio da concentração de poderes nas mãos do MP sobressai-se como perigosa manobra que não interessa a um processo penal equilibrado.

Diante do exposto, concluímos que o parecer do Ministério Público não pode condicionar a decretação de medidas cautelares provenientes de representações do delegado de polícia, sendo que os entendimentos contrários prejudicam a investigação criminal e colocam em risco a própria função das polícias judiciárias, ameaçando, outrossim, o correto exercício do direito de punir pertencente ao Estado. Isso não significa, todavia, que oParquet não possa se manifestar sobre a necessidade das medidas, pelo contrário. Como fiscal da lei, é até recomendável que o Ministério Público se manifeste, mas em um contexto opinativo, sem que isso possa vincular de qualquer forma a decisão do Poder Judiciário.

 

 

 

Autor: Francisco Sannini Neto é delegado de polícia do Estado de São Paulo, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. É professor da Graduação e da Pós-graduação da UNISAL/Lorena.

 Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.


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