Autor: Carlos Harten (*)
A modificação do regime jurídico do processo civil provocará uma importante alteração da rotina dos departamentos jurídicos das empresas, especialmente das litigantes frequentes. Sob os principais pilares da redução do tempo médio do processo, fomento à solução consensual dos conflitos e prestígio aos precedentes judiciais, o Novo CPC traz novo ritmo ao litígio, devendo os jogadores corporativos repensar suas estratégias contenciosas. Selecionei aqui alguns pontos práticos que me parecem merecer imediato exame pelas empresas, já que no próximo mês entrará em vigor o novo código de ritos, e o orçamento de 2016 das empresas já está em curso.
O Novo CPC orienta os Tribunais a dar publicidade aos seus precedentes judiciais, mantendo-os coerentes e estáveis (artigo 926), o que deverá aumentar a previsibilidade da solução das demandas. O artigo 927, IV do Novo CPC, por exemplo, estabelece a necessidade de que os juízes observem as súmulas do STJ.
O artigo 311 cria a tutela de evidência, que autoriza a concessão do pleito autoral de forma imediata, independentemente de qualquer urgência, quando for evidente o bom direito do autor, especialmente nos casos de conformidade com tese firmada em julgamento de casos repetitivos e com súmulas vinculantes (artigo 311, II). Também foi criado, nos artigos 976 a 987, o tão falado Incidente de Resolução de Demanda Repetitiva – IRDR, que deverá resolver, em âmbito de cada Tribunal Estadual ou Regional, conflitos em torno de questões de direito (por exemplo, abusividade de determinada cláusula contratual padrão; prazos prescricionais; lei aplicável ou extensão do dever de indenizar). O IRDR tem especial importância para os litigantes em massa, que detêm milhares de ações no país com idênticas teses.
Acredito que já nos primeiros meses de vigência do Novo CPC, veremos dezenas de IRDRs instaurados no país, fomentados por partes e Tribunais que desejam encerrar em curto prazo milhares de processos. Nesses incidentes, haverá ampla possibilidade de produção probatória, inclusive com oitiva de pessoas, órgãos e entidades com igual interesse na controvérsia (artigo 983, caput).
Naturalmente, o primeiro julgamento que ocorrer poderá influenciar os demais; então é necessário que, desde o início, tenha-se uma instrução adequada, acompanhada por advogados especializados, conhecedores do Tribunal local onde foi instaurado o incidente, do perfil dos julgadores envolvidos, dos históricos de julgamentos locais e nacionais, em especial, dos pontos que foram levados em consideração nesses julgamentos, para que sejam produzidas provas, pareceres e argumentos que afastem ou confirmem aqueles pontos concretos etc.
Hoje muitos departamentos jurídicos já contam com bom levantamento e tratamento das informações que o estudo de seus litígios pode produzir, mas não tenho dúvida de que com a vigência do Novo CPC haverá necessidade de revisão e ampliação das informações coletadas, além de sofisticação de seu tratamento.
O big data – aqui usado como o estudo analítico do maior número possível de informações que possam ser extraídas de um vasto número de processos – será determinante na definição das estratégias processuais a serem seguidas. É fundamental o jurídico conhecer não apenas a causa (deficiência informativa do consumidor; assédio moral do trabalhador; erro em interpretação de obrigações fiscais acessórias etc.) do litígio, mas, sobretudo, os fundamentos dos precedentes judiciais que levaram às decisões desfavoráveis (condições gerais não disponibilizadas no momento da contratação; permissão da empresa no uso de apelidos pejorativos; não cumprimento de orientação normativa da Receita Federal etc.).
Para um levantamento de informações bem feito, é fundamental o investimento em tecnologia e treinamento da equipe, ajustando os parâmetros de sistemas processuais que permitam uma adequada classificação e criem filtros das demandas e decisões judiciais nelas proferidas. Para tanto, deverá ocorrer firme cumprimento das rotinas de inserção das informações dos andamentos processuais em sistema, seja de equipe interna do departamento jurídico, seja dos escritórios terceirizados.
Parece-me, também, fundamental examinar a concorrência e os êxitos e fracassos processuais sofridos – que também podem formar precedentes judiciais -, além de identificar que casos concretos podem prejudicar a defesa judicial de seus próprios interesses. Um estudo divulgado em janeiro deste ano, The business of data, realizado pela Economist Intelligence Unit, garante que quem navegar de forma mais eficiente por esse mar de dados terá mais chances de prosperar, especialmente em momentos de incerteza econômica.
De posse do levantamento analítico dos precedentes judiciais levantados, o departamento jurídico deverá montar um detalhado plano de ação para confirmação dos êxitos e reversão das perdas. O caminho usual passa por combater as principais causas de geração de demandas judiciais, apresentando relatórios e negociando com os diversos departamentos da empresa, de forma a, por exemplo, ajustar a rotina e o formato das ofertas ou propostas de adesão enviadas ao público consumidor.
Ao lado disso, é fundamental uma nova abordagem na produção probatória, capaz de modificar a convicção dos julgadores que possam ter-se multiplicado desfavoravelmente contra a empresa, demonstrando, por exemplo, que aquela forma de contratação foi pontual; que a forma sofreu alterações; que o consumidor por outros meios conhecia o regramento do contrato etc.
Em matéria probatória, o Novo CPC tem importantes novidades. Foi positivada no código a utilização das atas notariais (artigo 384), que podem facilmente ser utilizadas para documentar um fato divulgado na internet, registrar uma informação prestada por uma pessoa, atestar o conteúdo de uma reunião etc. Também foi positivada a prova emprestada (artigo 372), especialmente útil em casos que dependam de perícia técnica, informática, apuração da ocorrência de um fato coletivo que tenha gerado multiplicidade de ações.
Respeitado o contraditório, a comprovação realizada em um processo pode ser utilizada sem maiores ônus e com rapidez para embasar o mesmo fato em múltiplas demandas. Também será de especial utilidade a previsão da prova técnica simplificada (artigo 464, parágrafo 2º), por meio da qual a perícia poderá ser substituída por simples inquirição em audiência pelo juiz a um expert sobre ponto controvertido da causa que demande conhecimento técnico ou científico, como, por exemplo, para elucidar o funcionamento de um sistema de segurança bancária, dirimindo dúvidas quanto à possibilidade de ocorrência ou não de fraudes sem a participação do cliente consumidor.
Já a prova pericial passa por uma extensa modificação, seja pela própria forma da escolha do perito, que poderá ser feita de maneira consensual, com a chance das partes indicarem, de comum acordo, perito de sua confiança ao juiz (artigo 471), seja pelo reforço à necessidade de um conhecimento técnico especializado, à medida que apenas poderão ser nomeados peritos os profissionais legalmente habilitados – deixando de existir o requisito de nível universitário na área – ou órgãos técnicos ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal (artigo 156, parágrafo 1º), bem como pelo maior rigor exigido na elaboração do laudo pericial, devendo haver a indicação e a devida demonstração da validade do método científico empregado (artigo 473, III), gerando, por via de consequência, maior qualidade técnica ao trabalho e, com isso, aumento da expectativa de que o magistrado seja convencido das conclusões obtidas.
O Novo CPC reformou também o regime da distribuição do ônus da prova. Permanece a clássica carga do autor de demonstrar as provas dos fatos constitutivos de seu direito e do demandado de comprovar os fatos interruptivos, impeditivos e extintivos. Contudo, agora o magistrado poderá redistribuir esse ônus, por decisão fundamentada (artigo 373), concedendo oportunidade para que a parte possa desincumbir-se desse ônus, trazendo o contrato, e-mail, testemunha etc. Isso deve produzir diminuição das defesas meramente processuais, onde se combatiam preponderantemente a falta de prova de alegações autorais, passando as empresas a concretamente produzir provas que confirmem seu direito material defendido.
Nesse ponto, acredito que o Novo CPC tenderá a diminuir a injustificável separação entre os advogados corporativos contenciosos e os contratuais. Primeiro, porque os responsáveis pelo contencioso deverão participar ativamente da coleta e da produção de provas, a exemplo do histórico de negociação, de e-mails e gravações telefônicas, armazenamento de subsídios e entrevista com os envolvidos.
Em segundo lugar, em seu artigo 190, o Novo CPC prevê a realização de convenções processuais, referentes a pactos firmados a qualquer momento, capazes de regular não apenas sob qual rito o processo judicial seguirá, mas também quais provas deverão ser produzidas e por quem para demonstrar determinado fato. As partes podem ajustar, por exemplo, que um inadimplemento contratual em contrato de obra só será considerado comprovado por meio de laudo pericial do Instituto de Perícias Técnicas – IPT de São Paulo, regulando a forma de participação das partes, com custos suportados pelo empreiteiro e com renúncia do direito de impugnação das conclusões.
Isso significa que os advogados que precisam defender em juízo o direito material de seus clientes – e que conhecem com especialidade quais pontos são especialmente importantes ao processo conforme precedentes judiciais -, deverão participar ativamente, não apenas da formação do contrato, mas sobretudo do acompanhamento de sua execução (notificações, renegociações, perícia etc.).
As convenções processuais abrem oportunidade também para os contratos de consumo, em especial quando possibilitem a previsão de resolução prioritária dos conflitos por mediação, podendo, inclusive, já serem especificadas pela convenção questões como o rito a ser seguido, o centro em que ocorrerá a mediação ou ainda a possibilidade de imposição de multa para o contratante que se negar a participar desse meio de resolução extrajudicial dos conflitos, constituindo-se em importante instrumento de barateamento e simplificação da resolução dos processos.
Todas essas medidas, que chamarei de contenção dos litígios, contudo, podem demandar solução apenas em médio prazo, já que têm mais um condão de influir em demandas futuras. Por outro lado, com a adequada apuração do big data, análise dos procedentes e comparação aos casos individuais, será possível a melhor identificação das demandas nas quais as chances de êxito são mínimas, correspondendo o acordo à opção mais adequada para minimizar os efeitos negativos (imagem ou financeiros) da derrota.
O Novo CPC trouxe uma série de modificações que fomentam a composição dos litígios e têm a capacidade de sua extinção em curto prazo. As empresas, como regra, não serão mais citadas para se defender, mas para comparecer em audiência a ser realizada no judiciário ou em centros de conciliação, a fim de negociar com seu cliente a resolução do conflito. Apenas após o insucesso do acordo abre-se prazo para a contestação, instaurando-se efetivamente o contencioso (artigo 335). Nada disso é novidade especialmente nas causas de pequeno valor, mas o novo regramento agora leva de forma ampla o Judiciário ao papel prioritário de instrumentador da autocomposição, em detrimento da solução heterônima dos litígios.
Para que a mudança seja efetiva, as empresas precisarão dar especial atenção a esse momento negocial, treinar seus prepostos e advogados na arte da negociação e, sobretudo, aprender a perceber os reais anseios dos autores. Para os litigantes corriqueiros, é fundamental que haja uma política de acordo desenhada para que possam ser atendidas, de forma rápida e padrão, demandas idênticas e de poucas chances de êxito. Por outro lado, ter à disposição um canal direto, durante a audiência, entre advogado ou preposto negociador e o departamento jurídico, garantirá maior chance de composição e atendimento do anseio específico de determinado autor, garantindo um tratamento singular, ainda que para uma reclamação massificada.
Já há no mercado, também, algumas empresas que comercializam serviços de chat, negociação por telefone ou modelos nacionalizados de mecanismos como os on line dispute resolution americanos, que devem ser estudados e podem ser usados nesse novo cenário. Por fim, não é demais lembrar que alguns Tribunais Estaduais, e o próprio CNJ, têm divulgado qualificações de empresas conforme sua habilidade em resolver amigavelmente seus conflitos, o que naturalmente constitui um instrumento que valoriza ou denigre a imagem de qualidade da empresa junto a seus clientes.
A meu ver, também, as empresas precisarão passar por uma revisão de suas regras de provisionamento: desde a diminuição do tempo médio do processo; o aumento da previsibilidade das decisões; a criação de uma estrutura ritual mais suscetível à autocomposição; à adaptação ao aumento dos honorários sucumbenciais e das custas e taxas judiciais de diversos tribunais.
Os IRDRs também poderão forçar uma necessidade de desembolso em bloco de condenações (centenas, milhares de casos), acaso a empresa seja vencida. O que ordinariamente era desembolsado ao longo de meses e anos, pode ser cobrado aos milhares em um único momento (veja-se, por exemplo, o caso das inúmeras demandas de planos econômicos suspensas, que poderiam repentinamente ser julgadas). Todas essas razões podem potencialmente interferir nos orçamentos para contingências passivas e nas metas de cash flow, geralmente adaptadas à sazonalidade de suas receitas.
O momento do desembolso é tão importante quanto o montante dele. Quem nunca foi surpreendido no final do ano com uma condenação inesperada de um processo concluso há muito tempo e que impactou toda a meta do departamento jurídico e possivelmente o próprio resultado da empresa? Acredito que a partir de março deste ano, os jurídicos que pretendam contribuir de forma eficaz para a defesa dos interesses de suas empresas precisarão revisar imediatamente suas práticas, eventualmente adaptando-as à nova estrutura processual.
Autor: Carlos Harten é sócio-diretor do Queiroz Cavalcanti Advocacia. Conselheiro federal da OAB.