Decretação ex officio da prisão temporária é manifestamente ilegal

Autores: Gamil Föppel El Hireche e Alan Siraisi Fonseca (*)

 

No dia 22 de fevereiro de 2016, foi deflagrada mais uma fase da operação “lava jato”. Como em outras tantas etapas, foram cumpridos diversos mandados, entre buscas e apreensões, conduções coercitivas e prisões cautelares. O texto não pretende, entretanto, examinar os aspectos inerentes à referida investigação (que servirá, apenas, de exemplo privilegiado). Intenta-se tratar de uma questão jurídica relevante, observada nessa nova etapa, mas que é, infelizmente, comum na prática jurídica forense.

Vamos aos fatos.

A autoridade policial representou pela prisão preventiva de determinadas pessoas, no que se viu acompanhada de parecer favorável do Ministério Público Federal.

O fundamento elencado, como em diversos outros casos, foi a suposta garantia da ordem pública, especificamente para que “cessem a prática de novos atos de lavagem transnacional de ativos”.

De modo incidental, aparentemente sem qualquer fundamento concreto, ao menos que tenha sido expresso na representação, arguiu-se o “receio que os investigados possam […] tentar interferir nas investigações”. Sobre esse aspecto, não se apontou qualquer fato concreto, com base nos elementos de informação colhidos no inquérito policial, que corroborassem as alegações contidas no pedido formulado. E, mais uma, vez se confunde gravidade em abstrato de um comportamento com a sua gravidade concreta, buscando-se antecipar a tutela penal….

Faltou, nos sempre lúcidos dizeres do ministro Celso de Mello, portanto, “base empírica idônea” [1]. Com as devidas e necessárias licenças, a questão limitou-se a uma conjectura da autoridade que preside a investigação, o que não merece tutela jurisdicional. Caso existisse algum fundamento, era imperioso assinala-lo expressamente (ganhando, a representação, novos contornos de validade), inclusive para possibilitar a apreciação do Juízo e permitir o contraditório pela defesa (com os meios de impugnação a ele inerentes).

Ao apreciar o pedido, contudo, ainda que comungando de alguns dos posicionamentos contidos na representação, o Juízo decidiu contrariamente ao quanto pleiteado (mesmo que, nesse caso, parcialmente) pela autoridade policial:

A medida estaria, em princípio, justificada pela longa duração da conduta delitiva e por sua gravidade em concreto. Seria também ela necessária para interromper a prática delitiva, o que parece ser imperativo diante da aparente habitualidade dos investigados em aceitar pagamentos subreptícios de serviços, máxime considerando que 2016 é ano eleitoral no Brasil e é preciso prevenir que dinheiro de possível origem criminosa contamine as eleições vindouras.

Entretanto, reputo nesse momento mais apropriada em relação a eles a prisão temporária, como medida menos drástica, o que viabilizará o melhor exame dos pressupostos e fundamentos da preventiva após a colheita do material probatório na busca e apreensão.

[…]

Tratando-se de medida menos gravosa aos investigados do que a preventiva, pode este Juízo impo­la em substituição ao requerido pela autoridade policial e pelo MPF. (sem grifos no original)

Vê-se que a decisão é absolutamente silente quanto a qualquer outro fundamento para decretação da prisão preventiva diferente das alegadas “gravidade em concreto das condutas” e “longa duração da conduta delitiva”. Afirma-se, literalmente, que a medida estaria justificada por esses aspectos. Qualquer outra alegação da autoridade policial, porque não expressamente acolhida, deve ser considerada rejeitada (inclusive ante a ausência de impugnação, pelos meios próprios, da parte interessada).

Extraídos os fatos que ilustram o presente estudo, passa-se ao exame da questão jurídica.

O embasamento teórico alegado para tal decisão, em análise inicial descuidada, aparenta ser bastante sedutor: sendo medida alegadamente menos drástica, em relação à prisão preventiva, o julgador poderia decretar a temporária, como medida substitutiva ao requerido pela autoridade policial. É exatamente essa questão que se fia a presente análise.

Seria, afinal, um possível benefício aos investigados, que veriam a constrição às suas respectivas liberdades de locomoção, ao menos em princípio, limitada temporalmente, vez que a prisão preventiva tem o prazo de cinco dias, ao contrário da preventiva, que pode se estender — como reiteradamente visto ao longo da operação “lava jato” — por longos meses (sem que disso se extraia qualquer juízo de valor. Trata-se de um dado meramente objetivo e hipotético).

A interpretação jurídica, contudo, não pode ser assim tão superficial. Prisões preventiva e temporária não se confundem e têm fundamentos bastante diversos, inconciliáveis, registre-se. A primeira, embora criticável, tem seus correspondentes fundamentos previstos no Código de Processo Penal, podendo ser decretada “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal.” A segunda, disciplinada pela material e formalmente inconstitucional Lei 7.960/1989, possui outros requisitos: além de haver fundadas razões de autoria ou participação do indiciado em um dos crimes taxativamente elencados pelo dispositivo, deve-se demonstrar sua imprescindibilidade para as investigações do inquérito policial. São, pois, modalidades disjuntivas de custódia: são absolutamente contraditórias, inconciliáveis.

No caso da prisão temporária, tanto a autoridade representante, quanto o magistrado que a decreta devem demonstrar que “a investigação necessita da prisão ou, ainda, a liberdade é incompatível com o que necessita a investigação para esclarecer o fato” [2]. Há, portanto, um severo ônus argumentativo/probatório para se fundamentar, idoneamente, a prisão temporária, que é bastante distinto do referente à prisão preventiva.

É o que Aury Lopes caracteriza como periculum in libertatis “distorcido” (“porque não é a liberdade do imputado o gerador do perigo que se quer tutelar” [3], o que fundamentaria, em tese, a prisão preventiva). E nisso reside as maiores críticas quanto à (in)constitucionalidade da prisão temporária: diante do direito a não autoincriminação (e outras garantias fundamentais), não há como se cogitar a imprescindibilidade da prisão para investigação.

Desse modo, a substituição ex officio da prisão preventiva pela temporária é inviável, ainda que sob a ótica da proporcionalidade. Essa conclusão, inclusive, abarca outra grave situação vivenciada na persecução penal: pedidos de prisão temporária formulados alternativamente, em relação à preventiva. A pretensão é logicamente inviável, sendo evidente situação de preclusão.

Isto porque, a incidência do princípio da proporcionalidade à situação em exame não permite o decreto, ex officio, da prisão temporária. Em primeiro plano, por haver óbice legal a tal procedimento: vez que essa medida cautelar “será decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público” [artigo 2º, caput, da Lei 7.960/1989].

Ora, trata-se de observância ao sistema acusatório (cada parte no lugar constitucionalmente demarcado [4]). Do contrário, ter-se-ia o órgão julgador como responsável pela gestão da investigação, o que é francamente inadmissível. Haveria, nesse cenário, contrariedade a dispositivos da Constituição Federal, especialmente pela usurpação de atribuições institucionais das demais funções essenciais à justiça.

Em segundo lugar, pelo próprio ordenamento jurídico enunciar a solução a ser adotada quando a prisão preventiva (ainda que presentes seus fundamentos legais) revelar-se desproporcional: a substituição pelas medidas dispostas no artigo 319 do Código de Processo Penal.

Ao cabo, encampou-se raciocínio próprio do direito processual civil (quanto à existência de um poder geral de cautela), o que é inaceitável pela profunda distinção dos sistemas que regem ambos os processos e, muito especialmente, por afrontar o princípio da legalidade. E busca-se sustentar esse tipo de decisão numa suposta situação mais favorável ao investigado. Assim, com esse tipo de atuação pelo Poder Judiciário, ganha ainda mais relevo a pergunta: “quem nos salva da bondade dos bons?” [5]

 

 

 

 

Autores: Gamil Föppel El Hireche é advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de Execuções Penais.

 Alan Siraisi Fonseca é graduando em Direito na Universidade Federal da Bahia.


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