Autor: Erick Linhares (*)
1. Novo CPC é fonte subsidiária indireta
Dispõe o artigo 52 da Lei 9.099/1995 que a legislação processual comum será aplicada aos juizados especiais, apenas na execução e no que couber. Isso significa que, na fase de conhecimento, excetuada a hipótese do artigo 30 da mencionada lei[1], não há previsão de incidência subsidiária do Código de Processo Civil.
Tem mais. A expressão “no que couber”, prevista no citado artigo 52, objetiva evitar a importação de normas do processo ordinário que contrariem os critérios informadores dos juizados especiais, contemplados no artigo 2º da Lei 9.099/1995. Ou seja, funciona como um filtro, uma cláusula de validação da legislação processual comum. O objetivo é manter a integridade do Sistema dos Juizados Especiais.
Como lembra Chimenti, isso não impede a aplicação analógica do Código de Processo Civil (artigo 4º da LINDB[2]), “mas recomenda a superação das omissões do legislador com base nos princípios do novo sistema[3]“.
Vale dizer, a importação de normas do Código de Processo Civil exige, além da omissão normativa, a necessidade de suprir lacuna no sistema dos juizados especiais. E isso ocorre quando a legislação processual ordinária der mais densidade aos princípios do artigo 2º da Lei 9.099/1995, para buscar resultados compatíveis com a efetividade, a oralidade, a simplicidade, a informalidade, a economia processual e a celeridade.
Seguramente, por isso, o novo Código de Processo Civil, que se funda no paradigma de um processo constitucional (artigo 1º do novo CPC), dispõe, expressamente, que suas normas serão aplicadas supletiva e subsidiariamente aos processos eleitorais, trabalhistas e administrativos (artigo 15 do novo CPC). A omissão aos juizados especiais não foi acidental, buscou-se assegurar a autonomia processual desse sistema, conforme preconiza o artigo 98, inciso I, da Constituição da República.
Como se vê, quando o legislador quis aplicar o novo código aos juizados, o fez expressamente nos artigos 985 (inciso I) e 1.062. Em nenhum momento se previu a incidência generalizada do novo CPC aos juizados especiais.
Inclusive, na nova legislação processual, o rito sumário foi suprimido, subsistindo apenas o procedimento comum, o que reforça a tese da inaplicabilidade do novo CPC à Lei 9.099/1995.
O processo, nos feitos sujeitos a rito sumaríssimo, é disciplinado pelas normas que lhe são peculiares, para os feitos cíveis (Lei 9.099/1995), para os federais (Lei 10.259/2001), para os fazendários (Lei 12.153/2009) e para o processo trabalhista (a CLT com as alterações feitas pela Lei 9.957/2000).
O que se busca é um diálogo entre esses diplomas normativos que seguem o mesmo rito, pois a subsidiariedade não se restringe ao texto do Código do Processo Civil, mas às normas processuais cíveis sumaríssimas.
A Lei 9.957/2000 estabeleceu o procedimento sumaríssimo no Direito do Trabalho, a par das disposições gerais estabelecidas na CLT e com muita similitude com o rito dos juizados especiais, como se pode ver:
a) admissibilidade de pedido oral reduzido a termo: LJE (artigo 14) e CLT (artigo 786);
b) a capacidade postulatória pode ser exercida pelas próprias partes: LJE (artigo 9º) e CLT (artigo 791);
c) admissibilidade de representação do réu por preposto: LJE (artigo 9º, parágrafo 4º) e CLT (artigo 843, parágrafo 1º);
d) competência para causas de até 40 vezes o salário mínimo: LJE (artigo 3º, inciso I) e CLT (artigo 852-A);
e) vedação à citação por edital: LJE (artigo 18, parágrafo 2º) e CLT (artigo 852-B, inciso II);
f) comunicação de mudança de endereço das partes: LJE (artigo 19, parágrafo 2º) e CLT (artigo 852-B, parágrafo 2º);
g) unicidade da audiência: LJE (artigo 28) e CLT (artigo 852-C);
h) obrigatoriedade de comparecimento pessoal das partes à audiência: LJE (artigo 9º) e CLT (artigo 843);
i) ausência do autor à audiência resulta em extinção do processo: LJE (artigo 51, inciso I) e CLT (artigo 844);
j) ausência do réu à audiência resulta em revelia: LJE (artigo 20) e CLT (artigo 844);
k) mesmos poderes instrutórios do juiz: LJE (artigo 5º) e CLT (artigo 852-D);
l) prioridade à solução conciliatória: LJE (artigo 21) e CLT (artigo 852-E);
m) registro resumido dos atos ocorridos em audiência: LJE (artigo 13, parágrafo 3º) e CLT (artigo 852-F);
n) decisão de plano dos incidentes processuais ocorridos em audiência: LJE (artigo 29) e CLT (artigo 852-G);
o) concentração da produção de provas em audiência: LJE (artigo 33) e CLT (artigo 852-H);
p) manifestação imediata e em audiência sobre os documentos apresentados pelas partes: LJE (artigo 29, parágrafo único) e CLT (artigo 852-H, parágrafo 1º);
q) dispensa do relatório da sentença: LJE (artigo 38) e CLT (artigo 852-I);
r) admissibilidade de julgamento por equidade: LJE (artigo 6º) e CLT (artigo 852-I, parágrafo 1º).
Por isso, a Justiça do Trabalho tem recorrido constantemente à Lei 9.099/1995, como fonte subsidiária, para a aplicação da CLT (com as alterações efetuadas pela Lei 9.957/2000), por ser “subsistema de identidade principiológica e valorativa com o processo do trabalho”[4].
O próprio Tribunal Superior do Trabalho[5] pontuou que a questão da aplicação de normas da Lei 9.099/1995 ao rito trabalhista “deve ser analisada a partir da interpretação simétrica com as leis que disciplinam mecanismos de celeridade na prestação jurisdicional”.
E conclui: “A jurisdição como exercício do poder soberano do Estado é una, motivo pelo qual a instituição de procedimentos que busquem impingir celeridade na prestação jurisdicional a causas com valores limitados deve buscar a harmonia entre institutos correlatos. Com fulcro no princípio da duração razoável do processo e amparo no art. 769 da CLT, a lacuna de norma específica na legislação do trabalho deve ser suprida pela observância do disposto nos artigos 31 da Lei 9.099/95 e 278, parágrafo 1º, do CPC”[6].
No mesmo sentido, admitindo a incidência da Lei 9.099/1995 ao rito processual trabalhista, há numerosos precedentes de vários tribunais regionais: 1ª Região[7], 2ª Região[8], 3ª Região[9], 4ª Região[10], 5ª Região[11], 10ª Região[12], 14ª Região[13], 15ª Região[14], 20ª Região[15], 21ª Região[16], 23ª Região[17] e 24ª Região[18], dentre outros.
O caminho inverso também é possível, principalmente no que permitir maior celeridade, simplicidade e efetividade na prestação jurisdicional. Ainda que contrarie norma do novo CPC (não endereçada expressamente aos juizados), pois se trata de fonte secundária e externa ao Sistema dos Juizados Especiais, como deixa bastante claro o artigo 15 do novo CPC.
Na prática, isso gera muitas consequências. Por exemplo, significa que a contagem de prazos que, segundo o novo CPC (artigo 219), será feita apenas em dias úteis, não se aplicará ao rito sumaríssimo — e, por conseguinte, ao Sistema dos Juizados — por invocação subsidiária do artigo 775 da CLT, que manda contar os prazos de forma corrida e que melhor atende aos princípios insculpidos no artigo 2º da Lei 9.099/1995.
Aliás, confira-se:
Artigo 775 (da CLT). Os prazos estabelecidos neste título[19] contam-se com exclusão do dia do começo e inclusão do dia do vencimento, e são contínuos e irreleváveis, podendo, entretanto, ser prorrogados pelo tempo estritamente necessário pelo juiz ou tribunal, ou em virtude de força maior, devidamente comprovada.
Parágrafo único. Os prazos que se vencerem em sábado, domingo ou dia feriado, terminarão no primeiro dia útil seguinte.
Esse artigo da CLT é plenamente compatível com o rito dos juizados especializados, já que o ordenamento jurídico dos feitos sumaríssimos, como um todo, tem os mesmos fundamentos e busca, sempre que possível, a conciliação ou a transação, princípios prestigiados de longa data no processo trabalhista.
A ideia que permeia a estrutura dos juizados é de um ordenamento jurídico autônomo, ancorado em princípios próprios e desenvolvido em teorias processuais distantes daquelas em que se fundamenta o Código de Processo Civil.
A importação de normas do procedimento ordinário para o especial ocorre na definição de institutos jurídicos, por exemplo: partes, juiz, suspeição, impedimento, coisa julgada e litigância de má-fé, dentre outros. Bem como, quando se tratar de dispositivo compatível com os princípios que animam os juizados, por garantir maior celeridade ao sistema e mais efetividade na prestação jurisdicional, como ocorre com a antecipação da tutela.
2. Conclusões
- O Sistema dos Juizados Especiais tem eixo teórico diverso daquele em que se funda o Código de Processo Civil e goza de autonomia processual.
- O legislador, quando quis aplicar o novo código aos juizados especiais, o fez expressamente nos artigos 985 (inciso I) e 1.062; em nenhum momento, previu a incidência generalizada do novo CPC aos juizados.
- Na nova legislação processual, o rito sumário foi suprimido, subsistindo apenas o procedimento comum, o que reforça a tese de inaplicabilidade do novo CPC aos feitos sujeitos a rito sumaríssimo.
- A integração deve ser buscada nos diplomas normativos que seguem o mesmo rito, pois a subsidiariedade não se restringe ao texto do Código do Processo Civil, mas às normas processuais cíveis sumaríssimas, desde que haja a concomitância de dois pressupostos, a omissão e a compatibilidade com os critérios do artigo 2º da Lei 9.099/1995.
- A CLT forma um subsistema de identidade principiológica e valorativa com a Lei 9.099/1995.
- A Lei 9.957/2000 estabeleceu o procedimento sumaríssimo no Direito do Trabalho, a par das disposições gerais estabelecidas na CLT e com muita similitude com rito dos juizados especiais. A Justiça do Trabalho tem recorrido constantemente à Lei 9.099/1995, como fonte subsidiária. O caminho inverso também é possível, principalmente no que permitir maior celeridade, simplicidade e efetividade na prestação jurisdicional.
- A contagem de prazos que, segundo o novo CPC (artigo 219), será feita apenas em dias úteis, não se aplicará ao rito sumaríssimo — e, por conseguinte, ao Sistema dos Juizados — por invocação subsidiária do artigo 775 da CLT, que manda contar os prazos de forma corrida e que melhor atende aos princípios insculpidos no artigo 2º da Lei 9.099/1995.
Autor: Erick Linhares é juiz de Direito em Roraima. Doutor em Relações Internacionais (Universidade de Brasília – UnB) e pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos (Universidade de Coimbra). É membro da Comissão Legislativa do Fonaje.