Autor: Pedro Câmara Raposo Lopes (*)
Com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, compartilho uma preocupação que encontra raízes na prática judiciária: a questão da ordem cronológica cuja rigidez já se procurou edulcorar com um remendo legislativo precoce.
O spiritus rectus da norma seria, como apregoado, o de afastar qualquer possibilidade de que amizades espúrias pudessem influenciar na ordem de julgamento dos feitos, o que se comprova pela nova causa de suspeição que é a amizade do juiz íntima com os advogados das partes.
O fim da norma é nobre, é induvidoso. E seria de rigor em qualquer país republicano, não fosse a dura realidade de nossa ‘grande pátria desimportante’, cuja lógica refoge ao entendimento de qualquer comissão de juristas, muitos dos quais afastados da fastidiosa prática forense e mais afeitos aos corredores de mármore dos tribunais superiores.
Penso que o legislador partiu de uma petição de princípio de que todo advogado é anético e de que todo juiz é dado a prevaricações. Teve em mente o modelo clássico de advogados influentes das capitais, o amigão (amigos de políticos e ‘et ceteras‘ que povoam as manchetes dos jornais), mas se esqueceu do profissional militante que age dentro das normas de sua arte e que será o maior prejudicado, no meu singelo juízo, com a inovação legal.
Explico: a primeira instância da Justiça Estadual, utilizando-me de um proposital eufemismo, encontra-se em “recuperação judicial”. Durante anos foi sucateada, porque os tribunais, via de regra, dirigiam os recursos materiais e humanos para suas secretarias. Sempre valeu o velho anexim popular: farinha pouca, meu pirão primeiro.
Dentro desse quadro de débâcle institucional, os magistrados de primeira instância, premidos pela necessidade de distribuir a justiça, conceberam uma válvula de escape para o sistema, que era o de prestigiar, em detrimento dos advogados de internet, o profissional militante, especialmente os contratados na Comarca para agir em nome de seus constituintes. As grandes bancas de advocacia das capitais, com isso, teriam que necessariamente contratar correspondentes locais ou (o que seria o ideal) o jurisdicionado deveria contratar um advogado da região, valorizando a profissão.
Não se tratava propriamente de embargos auriculares, como se costumou epitetar na prática, mas de decidir primeiro as causas que causavam maior angústia ao jurisdicionado, ou aquelas que pudessem trazer um retorno financeiro mais imediato para o profissional do Direito. Prestigiavam-se, repito, interesses legítimos e, com isso, o estrangulamento do sistema encontrava algum lenitivo na prática cotidiana.
Com a alteração legislativa, quando o advogado procurar um magistrado para a rápida solução de uma intrincada questão possessória ou de família, por exemplo, levará para o seu cliente a notícia fatídica de que a sua causa deverá aguardar o julgamento daqueles embargos opostos contra uma execução fiscal movida (e o exemplo não é tão absurdo assim) pelo antigo Instituto Brasileiro do Café, e que se achava confortável e propositalmente dormitando num escaninho poeirento. Aliás, somente as estatísticas das cortes de justiça estavam ligando para a desimportante demanda do falecido IBC.
Vejam os senhores que para os magistrados, com a modificação, a coisa ficou muito mais confortável. Não haverá advogados a interromper a rotina dos gabinetes e a desculpa está logo ali, na lei posta, de lege lata. Empurra-se, com isso, a sujeira para debaixo do tapete e quem perde, como sempre, é o jurisdicionado. E tudo isso porque a comissão de juristas teve em mente o clássico advogado amigão, de terno bem cortado e sapato de cromo alemão.
Aliás, uma solução interessantíssima e muito própria do Brasil é a criação de mecanismos de “preferências legais” para “furar a fila”. Mandados de Segurança, Habeas Corpus, causas envolvendo infantes e idosos, ações de improbidade administrativa, metas do CNJ… ufa! Num país em que tudo é prioridade legal, nada é prioridade factual.
Reparem que a prática brasileira consegue subverter mesmo a melhor das intenções de que se achavam animados os espíritos dos juristas que compuseram as comissões.
Enquanto a demanda da vida de uma pessoa (e também a da vida do advogado que precisa pagar suas contas) aguarda o julgamento da execução movida pela Superintendência da Borracha, juristas ganham rios de dinheiro vendendo livros, dando palestras e a comissão deu o trabalho por feito.
Melhor para os mapas dos tribunais, mas, na prática, pode ser que tenha sido um tiro pela culatra
São essas algumas considerações iniciais de um juiz preocupado com os interesses do consumidor de seus serviços.
Autor: Pedro Câmara Raposo Lopes é juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.