Autor: Manoel Messias de Sousa (*)
1. Introdução
Uma breve incursão em alguns dos milhares de processos administrativos disciplinares instaurados pelos mais diversos órgãos do Estado todos os anos faz perceber que, mesmo após o advento da Constituição Federal de 1988, a Administração Pública e os Tribunais ainda resistem em dar plena efetividade às garantias constitucionais dos servidores acusados nestes procedimentos de apuração e punição. Sem dúvida, existem farta doutrina e remansosa jurisprudência sobre a necessidade de defesa técnica por advogado no processo judicial. Contudo, pouco se fala ou se escreve a respeito dessa mesma garantia em seara do processo administrativo disciplinar.
Não era para ser assim, pois, grande é a quantidade de processos administrativos instaurados e servidores demitidos por ano na União, Estados e Municípios. O portal jurídico Consultor Jurídico, por exemplo, reproduziu no dia 26 de dezembro de 2015 notícia do jornal Folha de S.Paulo segundo a qual o governo federal expulsou 288 servidores envolvidos em corrupção entre janeiro e novembro de 2015 – o equivalente a 26 exclusões por mês num universo de 577 mil trabalhadores – aponta a Controladoria-Geral da União. O número é 12% inferior aos 329 funcionários públicos que foram banidos do serviço público pelos mesmos motivos nos 11 meses de 2014.
Portanto, oportuna a pergunta: será que todos esses servidores demitidos foram assistidos por um advogado em todos esses processos administrativos disciplinares? Ousaria a dizer que não.
Daí a necessidade de uma maior difusão na comunidade jurídica acerca da necessidade ou não de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar.
Essa questão é muito importante, pois basta recordar o debate travado pelo Supremo Tribunal Federal quando fora chamado a decidir se a defesa técnica por advogado integrava ou não o núcleo essencial da garantia do devido processo legal em sede de processo administrativo disciplinar, quando do julgamento, em Plenário, do RE 434.059/DF[1], em 07 de maio de 2008, de relatoria do Min. Gilmar Mendes.
2. Situações que demonstram a necessidade de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar
Não são poucos os acusados em processos administrativos disciplinares injustiçados pela Administração Pública e até pelos Tribunais. Daí a importância da defesa realizada por um profissional do direito para orientar e defender adequadamente o servidor público acusado no processo administrativo disciplinar. Se tal não ocorre, tem-se uma flagrante violação às suas garantias constitucionais, máxime aquelas catalogadas no seu artigo 5º, LIV e V, por exemplo.
A experiência deste autor, atuando como presidente de comissão disciplinar tem demonstrado que muitos servidores quando estão respondendo processo administrativo disciplinar têm suas defesas fragilizadas e prejudicadas, ora por não constituírem advogado, ora por desconhecerem seus direitos. Isso leva às comissões processantes, às vezes, atuarem com certo ativismo, para maximizar a eficácia das normas constitucionais.
Neste contexto, tem-se que o enunciado da Súmula Vinculante 5 do Supremo Tribunal Federal (“A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”), constitui um retrocesso jurídico, porquanto viola as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
Só quem atua no cotidiano como presidente e membro de comissões disciplinares, e advogado de defesa em processo administrativo disciplinar sabem o quanto é angustiante e estressante para o servidor público que responde a um PAD. Tem servidor que chega a “chorar” perante os membros da comissão durante as audiências, principalmente no momento de seu interrogatório. Existe servidor que se sente “mal” só de ser chamado de “acusado” pelos membros da comissão processante.
Advogar em causa própria não é bom, não é conveniente, porque o aspecto emocional acaba traindo o equilíbrio e a razão.
A doutrina e a jurisprudência já tinham pacificado o entendimento de que a Administração Pública não pode inviabilizar a garantia da ampla defesa e do contraditório aos acusados em processo administrativo disciplinar, como medida de justiça. O STJ chegou a sumular a matéria, pelo verbete 343, editada em 21.09.2007[2].
Entretanto, o STF, no julgamento do RE 434.059/DF, em 07 de maio de 2008, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, anulou totalmente o entendimento pacificado pelo STJ na Súmula 343, e editou, como dito, a Súmula Vinculante 5, anunciando pensamento contrário.
Rebato, uma a uma, de forma sucinta, as teses sustentadas pelo STF no julgamento do RE 434.059/DF, em 07 de maio de 2008, traz-se à baila os seguintes comentários.
O direito fundamental à ampla defesa não se esgota apenas em três elementos: (i) o caráter prévio da defesa; (ii) o dever de individualização das condutas; e (iii) o direito à prova. Eles não são suficientes para assegurar que o acusado no PAD tenha sido efetivamente defendido. Alguns meios e recursos de defesa só são explorados em toda sua potencialidade se o acusado estiver assistido, desde o início, por um advogado constituído nos autos. Afinal, apenas um técnico do direito terá plenas condições (técnico-emocional) de questionar eventuais erros de procedimento da comissão processante ou mesmo de suscitar questões jurídicas válidas e robustas, capazes de desconstituir enquadramentos jurídicos equivocados, por exemplo.
A experiência demonstra que, na prática, uma pessoa que não tem formação em direito dificilmente saberá distinguir quando uma questão jurídica é ou não complexa, exigindo a estratégia “x” ou “y”.
Dentro de uma perspectiva hermenêutica que busca conferir a máxima efetividade possível às normas e garantias constitucionais, não há como excluir a defesa por advogado.
Com efeito, com a decisão do STF, ora em exame faz transparecer que a defesa dos acusados no processo administrativo é mera questão formal e burocrática, que, infelizmente, precisaria acontecer para que o provimento final da Administração Pública restasse minimamente legitimado.
Essa visão míope dos operadores jurídicos não se coaduna mais com o texto constitucional, que equipara, no inciso LV, do artigo 5º , todos “acusados em geral”, assegurando-se todos os meios e recursos indispensáveis à ampla defesa, dentre os quais se inclui, inquestionavelmente, a assistência de um advogado.
Com todo respeito ao STF, não se consegue entender como a Corte Suprema conseguiu fazer interpretação restritiva do artigo 5º, inciso LV da Carta Federal de 1988. Ora, a cláusula constitucional do contraditório e da ampla defesa (Constituição, artigo 5º, LV) se aplica tanto ao processo judicial quanto ao administrativo. Então, por que o acusado no PAD não teria direito a uma defesa técnica por advogado? O texto constitucional é de uma clareza solar, que inclusive facilita a exegese do intérprete.
É de questionar: por que tanto desejo em diminuir o valor jurídico do processo administrativo disciplinar em detrimento do processo judicial? Num processo judicial-penal e num processo administrativo disciplinar não figuram dois seres humanos no polo passivo? Ou será que só no processo penal haverá atuação invasiva do Estado? Claro que não. No processo administrativo disciplinar também. Portanto, é descabido tachar de “defesa transbordante” ou “defesa ampliadíssima” a exigência de defesa técnica, quando esta é, claramente, um requisito mínimo para a eficácia da própria garantia consagrada na Constituição.
Na prática, os acusados em PAD não procuram a Defensoria Pública para fazer suas defesas. Ora, os funcionários públicos geralmente são filiados a sindicatos que prestam assistência jurídica. Além do mais, assim como a Administração é obrigada a nomear defensor dativo para o acusado revel em PAD (artigo 164, parágrafo 2º, Lei 8.112/90), o ideal seria que a Administração Pública tivesse também em sua estrutura administrativa, um setor próprio para promover a defesa técnica do servidor acusado em processo administrativo disciplinar.
Isto porque existem situações, nas quais o servidor público não tem dinheiro para contratar um advogado particular para lhe defender, ou, ainda, porque ele não está filiado a nenhum sindicato de sua categoria profissional. O Estado existe em função do homem e não homem em função do Estado. Se a Administração Pública acusa o servidor da prática de um fato supostamente violador das normas reguladoras de conduta disciplinar, deveria também assegurar, ao mesmo tempo, a este servidor as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
De fato, o direito de defesa no processo administrativo disciplinar constitui um direito indisponível do acusado, do que decorre, inarredavelmente, ter ele um verdadeiro direito constitucional de ser defendido por um advogado. Nessa ótica, é de se reconhecer que não atende ao preceito constitucional deixar ao alvedrio do acusado constituir ou não advogado para lhe defender no PAD. É que, na prática, muitos servidores públicos sequer possuem a dimensão da gravidade de um procedimento disciplinar contra si instaurado. Por conta disso, é ilusório acreditar que a dispensa da defesa técnica pelo servidor seja uma decisão consciente e informada.
O processo administrativo disciplinar pode ser tão grave na vida de um servidor público quanto o processo penal na vida de um cidadão qualquer. As agruras de ter sua conduta funcional questionada perante a Administração Pública não podem ser desprezadas ou tratadas com indiferença. Ademais, não custa lembrar que uma eventual demissão do serviço público pode implicar a retirada do único meio de vida do servidor acusado, comprometendo a sua sobrevivência e a de toda sua família. Em determinadas situações, isso pode ser tão grave quanto a própria perda de liberdade da pessoa. Por isso mesmo, a Constituição previu para ambos os casos (processo judicial e processo administrativo) um direito indisponível e irrenunciável à ampla defesa.
Nesse ponto em particular, cabe rememorar a advertência de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, quanto à prática reprovável de inverter a pirâmide normativa do ordenamento jurídico, de modo a acreditar menos na Constituição e mais na lei ordinária.”[3]
De tudo quanto exposto, resta claro que o artigo 156 da Lei 8.112/90 se constitui numa flagrante inconstitucionalidade. Não é razoável nem recomendável deixar que uma pessoa não formada em direito faça a defesa de um servidor público que teve um PAD instaurado contra si. Também não é conveniente a autodefesa, pelos motivos já ditos em parágrafos anteriores.
3. Conclusão
A edição da malfada Súmula 5 do Supremo Tribunal Federal, que tornou dispensável a necessidade de defesa técnica por advogado no PAD, mostra-se flagrantemente inconstitucional desde o seu nascedouro, porquanto totalmente sem amparo na Carta Cidadã de 1988.
Sem a intervenção de um profissional do direito nos PADs para aplicação de penalidades a servidores públicos, abre-se margem para toda sorte de arbitrariedades e abusos do Poder Público e de alguns tribunais de nossa Pátgria.
As críticas contundentes da doutrina a essa posição, reproduzidas parcialmente neste artigo, notabilizam o sério retrocesso que o entendimento representa em matéria de defesa de direitos fundamentais.
A melhor exegese nessa matéria é, sem dúvida, a sufragada pelo STJ no verbete 343 (“É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”), porque em consonância com o texto constitucional de 1988 e com os tratados internacionais em matéria de direitos humanos, direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana.
Assim, as reflexões levadas a cabo neste artigo estão a impor uma mudança de postura dos Tribunais e dos próprios órgãos da Administração Pública, de sorte a fazer valer, dia após dia, a efetividade das normas constitucionais no processo administrativo disciplinar.
Autor: Manoel Messias de Sousa é analista do MPU/Apoio Jurídico/Direito, lotado na Procuradoria-Geral da República, em Brasília, com atuação em Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância. Bacharel em Direito pela PUC-GO, é pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal e em Direito Constitucional e professor universitário.