Auxiliares locais podem ser enquadrados como servidores públicos

Autora: Ana Sylvia da Fonseca Pinto Coelho (*)

 

Atualmente, os auxiliares locais[1] vinculados ao Ministério das Relações Exteriores são regidos pela Lei 11.440, de 29 de dezembro de 2006, que instituiu o novo regime jurídico dos servidores do Serviço Exterior Brasileiro e revogou a Lei 7.501/86[2].

O diploma legal em vigor prevê que os auxiliares locais são regidos pela legislação vigente no país onde estiver sediada a repartição em que desempenham suas atividades, sendo assegurada a vinculação ao sistema da previdência social do Brasil àqueles que tenham nacionalidade brasileira e que, em razão de proibição legal, não possam se filiar ao sistema previdenciário local.

Contudo, apesar do disposto na Lei 11.440/06, que se limitou a repetir o disposto no artigo 67 da Lei 7.501/86 (alterada pela Lei 8.745/93[3]), imperiosa se faz a análise da legislação aplicável aos auxiliares locais contratados sob a égide das leis 3.917/61[4] e 7.501/86 (leis que regiam a referida categoria), ou seja, em momento anterior à entrada em vigor da Constituição de República de 1988.

A Constituição da República de 1988 estabelece, em seu artigo 37, que a administração pública deve observar os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, bem como atender à exigência de concurso público para a admissão de particulares que pretendam prestar-lhe serviços. A regra constitucional que condiciona o ingresso no serviço público à aprovação em concurso público de provas, ou de provas e títulos, busca conferir transparência à gestão da Administração Pública, objetivando assegurar o princípio da igualdade e evitar favorecimentos ilícitos.

Não obstante a exigência prevista no artigo 37, inciso II, da Constituição de 1988, a legislação anteriormente mencionada determinou a irretroatividade das leis como forma de evitar prejuízos ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, tornando imutáveis as situações consolidadas em momento anterior à vigência da norma respectiva, em obediência ao disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, da Carta Republicana, com o seguinte teor:

“A lei não prejudicará o direito adquirido, e o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Desse modo, a fim de compatibilizar tais normas, o constituinte originário inseriu norma transitória no texto constitucional, criando a estabilidade excepcional para servidores não concursados da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios que, ao tempo da promulgação da Lei Maior, contassem com, no mínimo, cinco anos ininterruptos de serviço público. As únicas exceções previstas para a aquisição da estabilidade nessa situação relacionavam-se aos ocupantes de cargos, funções e empregos de confiança, em comissão ou declarados, por lei, como de livre exoneração, segundo se infere do teor do artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988. Veja-se:

Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público.

§ 1º O tempo de serviço dos servidores referidos neste artigo será contado como título quando se submeterem a concurso para fins de efetivação, na forma da lei.

§ 2º O disposto neste artigo não se aplica aos ocupantes de cargos, funções e empregos de confiança ou em comissão, nem aos que a lei declare de livre exoneração, cujo tempo de serviço não será computado para os fins do caput deste artigo, exceto se se tratar de servidor.

A Constituição de 1988 determinou, portanto, o aproveitamento dos servidores públicos civis que, à época de sua entrada em vigor, contassem com, pelo menos, cinco anos de serviço público, os quais passaram a ser tidos como estáveis.

Da análise do dispositivo transcrito, depreende-se que os auxiliares locais, em exercício desde 5 de outubro de 1983, tornaram-se estáveis, fazendo jus, portanto, ao enquadramento como servidores públicos.

Com a publicação da Lei 8.112/90, o direito ao enquadramento dos auxiliares locais no Regime Jurídico Único dos servidores públicos civis da União foi confirmado pelo artigo 243, caput e parágrafo 1º, da lei referida. Confira-se:

Art. 243. Ficam submetidos ao regime jurídico instituído por esta lei, na qualidade de servidores públicos, os servidores dos poderes da União, dos ex-territórios, das autarquias, inclusive as em regime especial, e das fundações públicas, regidos pela Lei 1.711, de 28 de outubro de 1952 – Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, ou pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943, exceto os contratados por prazo determinado, cujos contratos não poderão ser prorrogados após o vencimento do prazo de prorrogação.

§ 1º Os empregos ocupados pelos servidores incluídos no regime instituído por esta lei ficam transformados em cargos, na data de sua publicação.

Verifica-se, portanto, que a legislação especial que dispôs sobre a situação dos funcionários do serviço exterior (leis 3.917/61, 7.501/86 e 8.112/90) assegurou a essa categoria de servidores a aplicação da legislação brasileira, inclusive quanto ao direito de enquadramento dos auxiliares locais no regime estatutário, com a transformação dos empregos públicos em cargos públicos.

Uma vez reconhecida a condição de servidores públicos federais, regidos pela Lei 8.112/90, aos auxiliares locais devem ser assegurados todos os consectários legais decorrentes desse reconhecimento, tais como a averbação do tempo de serviço prestado para fins da percepção de anuênios e para fins de aposentadoria segundo as normas do Regime Próprio de Previdência Social.

O enquadramento no Regime Jurídico Único do auxiliar local que trabalhou para embaixada/consulado brasileiro no exterior é matéria já pacificada no âmbito dos tribunais regionais federais, bem como do Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende das ementas dos julgados transcritas a seguir:

PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGENTE PÚBLICO SERVINDO NO EXTERIOR. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. AUXILIAR LOCAL. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO DE SERVIDOR ESTATUTÁRIO. LEI N. 8.112/90. CONSECTÁRIOS LEGAIS. POSSIBILIDADE. ENQUADRAMENTO COMO OFICIAL DE CHANCELARIA. CARREIRA DO MRE. ART. 33 DA LEI N. 8.829/93. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. ASSISTENTE DE CHANCELARIA. EQUIVALÊNCIA DE ATRIBUIÇÕES E ESCOLARIDADE. POSSIBILIDADE. 1. Não corre a prescrição “contra os ausentes do Brasil em serviço público da União, dos estados, ou dos municípios” (art. 169, II, CC/-1916, reproduzido o teor pelo art. 198, II, do CC vigente). Assim, se o autor, desde 1976, presta serviços públicos em diplomacia do Brasil o exterior (Inglaterra), não há como admitir a contagem de prazo prescricional. 2. O apelante, auxiliar administrativo do Ministério das Relações Exteriores, exerce, na Embaixada do Brasil em Londres, Inglaterra, atividades típicas de apoio ao serviço exterior, desde 1976, pretendendo ver reconhecida essa condição com todos os efeitos financeiros decorrentes. 3. Com a edição da Lei 7.506/86 e Lei 8.829/93, o critério para o reenquadramento determinado pelo último diploma é a natureza da atividade desempenhada pelo postulante, observados os demais requisitos exigidos no seu art. 33. Ocupantes de emprego permanente no Ministério das Relações Exteriores no estrangeiro detêm o direito de integrar as carreiras de oficial ou de assistente de chancelaria, exigindo-se para aquela grau superior de escolaridade. Precedentes desta corte. 4. Se as funções exercidas pelo oficial local mais se assemelham às de oficial ou de assistente de chancelaria, feita a equiparação, não cabe à União enquadrá-la num cargo genérico, de auxiliar administrativo, mas, sim, na função que efetivamente exercia. É indiferente tenha essa função sido, nominalmente, criada em momento posterior. 5. O reconhecimento da condição de servidor pertencente ao regime jurídico único da União (Lei 8.112/90) gera o direito a todos os seus consectários, dentre estes, a aposentadoria. 6. Comprovada a implementação dos requisitos legais, bem assim os riscos da demora, conforme fundamentação do pedido, concede-se a antecipação dos efeitos da tutela, para o enquadramento e a aposentação do autor, nos moldes requeridos, bem assim a conversão em pecúnia e o pagamento dos períodos de licença-prêmio aos quais faz jus, haja vista a inviabilidade de seu gozo ou a contagem em duplicidade para os fins de cômputo como tempo de serviço. 7. Apelação da União e remessa oficial, tida por interposta, às quais se negam provimento. Apelação da parte autora parcialmente provida.

(TRF-1 -AC: 00219729420104013400, Relator: JUIZ FEDERAL CARLOS AUGUSTO PIRES BRANDÃO (CONV.), Data de julgamento: 12/08/2015, PRIMEIRA TURMA, Data de publicação: 23/09/2015) (grifou-se)

ADMINISTRATIVO. AUXILIAR LOCAL DE EMBAIXADA BRASILEIRA NO EXTERIOR. ENQUADRAMENTO COMO SERVIDORA PÚBLICA FEDERAL. LEI Nº 8.112/90. PRECEDENTES DO STJ. 1. Não corre a prescrição “contra os ausentes do Brasil em serviço público da União, dos estados, ou dos municípios” (art. 169, II, CC/1916, reproduzido o teor pelo art. 198, II, do Código Civil vigente). No caso, como a autora presta serviço púbico no Exterior desde 1977, não há que se falar em contagem de prazo prescricional (Nesse sentido: AC 2008.34.00.012163-7/DF). 2. A Justiça Federal não é competente para apreciar pedidos decorrentes da relação trabalhista existente antes de 1990, e seus reflexos, porquanto sujeitos à disciplina da CLT, e assim de competência da Justiça do Trabalho. 3. A autora foi admitida em 02/05/1977 para prestar serviços como auxiliar administrativa na Embaixada Brasileira em Londres e, até o ajuizamento da ação, ainda prestava serviços sem interrupção, fazendo jus ao enquadramento no regime jurídico único dos servidores públicos civis da União, nos termos do art. 19 do ADCT e art. 243 da Lei 8.112/90, averbando-se todo o tempo de serviço como auxiliar Local para fins de anuênio e demais efeitos legais. 4. No tocante ao pedido de isonomia com o cargo de oficial de chancelaria do quadro permanente do Ministério das Relações Exteriores, observa-se que o pedido não pode ser acolhido na forma pleiteada, pois não restou comprovada a identidade de atribuições entre as funções exercidas pela autora e o cargo pretendido. 5. A autora deve apenas ser enquadrada em cargo de nível médio, em funções compatíveis com aquelas até então desempenhadas, fazendo jus às eventuais diferenças salariais existentes entre a remuneração então percebida e a remuneração do cargo. Nesse sentido: MS 14382/DF (STJ, 3ª Seção, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, unânime, julgado em 10.3.2010, DJe 6.4.2010). 6. Uma vez reconhecida a condição da apelante como servidora pública federal estatutária, nos termos da Lei 8.112/90, faz ela jus a todos os direitos e vantagens inerentes ao cargo e a aposentadoria como servidora pública federal uma vez que se encontram reunidos os requisitos legais para a sua concessão. 7. Os juros de mora são devidos à razão de 0,5% ao mês, a partir da citação, tendo em vista que a ação foi ajuizada após a vigência do artigo 4º da Medida Provisória 2.180-35, de 24/08/2001, que acrescentou a letra F, ao art. 1º da Lei nº. 9.494/97, e, após a vigência da Lei 11.960/2009, deverá incidir a taxa de remuneração básica e juros da caderneta de poupança. 8. A correção monetária deve ser aplicada desde a data em que cada parcela se tornou devida (Súmula 19 deste tribunal), com a utilização dos índices constantes do Manual de Cálculos da Justiça Federal, devendo ser observada a prescrição quinquenal, no momento do cálculo das diferenças salariais. 9. Honorários advocatícios fixados na razão de 5% sobre o valor da condenação, nos termos do art. 20, § 3º e 4º do CPC. 10. Apelação a que se dá parcial provimento, (grifou-se)

(TRF-1 -AC: 401340 DF 3324.20.11.401340-0, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES, Data de Julgamento: 10/05/2012, PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: e-DJF1 p.89 de 30/05/2012)

Da análise das decisões acima transcritas, verifica-se que, aos auxiliares locais que prestavam serviços à Embaixada do Brasil em Londres, foi-lhes reconhecido o direito ao enquadramento como servidores públicos federais (regidos pela Lei 8.112/90), o que lhes garantiu a aposentadoria pelo Regime Próprio de Previdência Social.

Aos indivíduos inseridos no contexto aqui tratado, recomenda-se a procura por um profissional especializado no tema, uma vez que o enquadramento como servidores públicos federais, dos auxiliares locais contratados pelas embaixadas/consulados no período mencionado depende, na maioria dos casos, de intervenção judicial específica voltada à tutela desses trabalhadores.


[1] Art. 66. Auxiliar local é o brasileiro ou o estrangeiro admitido para prestar serviços ou desempenhar atividades de apoio que exijam familiaridade com as condições de vida, os usos e os costumes do país onde esteja sediado o posto (Lei 7.501/86).
[2] Em 27 de junho de 1986 foi editada a Lei 7.501, que revogou integralmente a Lei 3.917/61 e determinou a incidência da legislação brasileira aos auxiliares locais, naquilo que lhe fosse aplicável, respeitadas as peculiaridades decorrentes da natureza especial do serviço e das condições do mercado local de trabalho.
[3] A Lei 8.745/93 alterou a redação do artigo 67 da Lei 7.501/86 para dispor que as relações trabalhistas e previdenciárias dos auxiliares locais seriam regidas pela legislação vigente no país em que estivesse sediada a representação.
[4] A categoria denominada auxiliar local surgiu no ordenamento jurídico por meio da Lei 3.917, de 14 de julho de 1961, que reorganizou a estrutura do Ministério das Relações Exteriores e dispôs, em seu artigo 44, que os chefes das Missões Diplomáticas e Repartições Consulares poderiam admitir, a título precário, auxiliares locais demissíveis ad nutum.

 

 

 

Autora: Ana Sylvia da Fonseca Pinto Coelho  é sócia do escritório Torreão Braz Advogados, bacharel em Direito pela Universidade Fumec, pós-­graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Milton Campos e mestre em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento