Autor: João Paulo Aguiar Moreira (*)
1. Apresentação do problema
O presente trabalho pretende esmiuçar o termo “interessados” na redação do artigo 983 do novo Código de Processo Civil. A empreitada tem propósito certo: investigar se a sociedade de advogados, representando uma série de clientes com interesse direto no resultado de um incidente de resolução de demandas repetitivas, poderia ser admitida como interessada e, a partir de então, sustentar e apresentar documentos no âmbito do incidente.
Nesse bojo, esperamos lançar luzes sobre o instituto, bem como fomentar o debate em torno das repercussões do advento do novo Código de Processo Civil na cultura processualista brasileira.
2. Ponto de partida: o que é o incidente de resolução de demandas repetitivas?
Antes de investigar a possibilidade da sociedade de advogados figurar como interessada no âmbito do incidente de resolução de demandas repetitivas, mister se faz lançar alguns apontamentos gerais a respeito do instituto.
Esse é, inegavelmente, uma inovação do novo CPC que procura cumprir o objetivo geral do diploma processual, qual seja, promover uma Justiça ágil e efetiva à serviço da população, pela via da geração de “uniformidade na jurisprudência, dando sentido prático ao princípio da isonomia e à necessidade de previsibilidade, criando segurança jurídica”[1].
Vocacionado a dar cabo, principalmente, de demandas que tratem de direitos individuais homogêneos, bem como questões de índole processual idênticas, trata-se de incidente que visa, à semelhança do que já ocorre com uma série de institutos do antigo CPC, proporcionar uniformização do entendimento jurisprudencial acerca de uma questão de direito controvertida. A decisão alcançada será, portanto, aplicável de antemão a um sem número de ações que se debrucem sobre a mesma tese jurídica.
Nesse diapasão, há o que se chama de “cisão de competência”, em moldes semelhantes àqueles do julgamento de recursos repetitivos nas cortes superiores. A diferença reside na constatação de que, no incidente de resolução de demandas repetitivas, via de regra, a uniformização do entendimento sobre a questão jurídica controversa que se apresenta se dá do 1° para o 2° grau, circunstância que nos permite afirmar que o instituto se volta prioritariamente à chamada “Justiça de origem”. Assim, o teor da decisão do tribunal é ponto de partida para que os juízes singulares decidam seus processos.
No que tange a abrangência do incidente, não nos é permitido dizer que, uma vez decidido, apresentará implicações locais tão somente. Pelo contrário, há a possibilidade de alargamento da eficácia da solução atribuída, até abarcar todo o território nacional (artigo 987, parágrafo 2°), caso haja interposição de recurso extraordinário ou especial sobre a decisão de mérito dada pelo tribunal de origem. Do ponto de vista prático, a elevação da questão debatida para as cortes superiores é extremamente provável[2], circunstância que nos conduz à conclusão de que a palavra final em parte substancial dos incidentes será dada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Defendendo o uso consciente do novo instituto, Maria Theresa Wambier (2015, p. 1398) aduz que:
“Não se pode exigir, para o uso do expediente do incidente de julgamento de demandas repetitivas, que já haja milhares de ações em curso versando a mesma matéria, como costuma ocorrer no Brasil. O que se quer com a exigência legal é o que instituto não tenha somente a função PREVENTIVA em relação a divergências jurisprudenciais. Na verdade, se quis que a divergência já estivesse, em alguma medida, instalada. Quis-se que houvesse um certo amadurecimento do tema, florescimento do desacordo, para que possam ser avaliados argumentos embasados de uma e de outra posição” (grifo nosso).
Sob essa ótica, dentre os requisitos necessários à instauração do incidente (artigo 976, novo CPC), a nova lei exige que haja efetiva repetição de processos, e não mera potencialidade de que os processos se multipliquem.
Uma vez admitida a instauração do incidente, outros que versem sobre a mesma questão não deverão ser aceitos, ao menos no mesmo tribunal — a fim de evitar desperdício de atividade jurisdicional. No entanto, nada impede que, não admitido o incidente, este possa sê-lo no futuro, caso passe a preencher os pressupostos.
Considerando o que foi exposto, resta evidente a importância do instituto para a edificação da jurisprudência pátria, especialmente no tocante à questões de direito controvertidas que gerem dissídios interpretativos. Tal afirmação assume contornos dramáticos a partir da possibilidade do incidente gerar repercussões em todo o país.
Daí depreende-se a importância do artigo 983, do novo CPC. Isso porque é nesse dispositivo que se aborda a sistemática de oitiva das partes e interessados do âmbito do incidente — fase de suma importância para a formação consciente do convencimento do magistrado responsável pela relatoria. Passemos, então, para a análise devida.
3. O artigo 983 em foco
A preparação do incidente para julgamento se inicia com a faculdade do relator de ouvir as partes, os interessados e os amici curiae — pessoas, órgãos, bem como entidades com interesse na controvérsia cujas atividades e funções estejam, de alguma forma, ligadas à questão de direito objeto do incidente[3] —, os quais terão o prazo de 15 dias para juntar documentos e fazer as diligências necessárias para esclarecer a questão. Esse prazo não é peremptório, tendo em vista o já apontado grau de interesse público envolvido e pode, inclusive, ser prorrogado, desde que requerido por pedido fundamentado. Em seguida, terá o Ministério Público, na condição de custus legis, o mesmo prazo para se manifestar.
O interesse do amicus curiae é essencial e completamente diferente do interesse dos terceiros interessados. Nesse ponto, importante apontar o silêncio da doutrina no tocante à delimitação daquilo que se considera “interessados” para os fins do artigo 983 do novo CPC. Partimos da ponderação de Guilherme Rizzo Amaral, no sentido de que a admissão de interessados para se manifestarem no incidente deve ser tarefa criteriosa. Nesse sentido, se aduz que “não se mostrará viável admitir a intervenção de todo e qualquer indivíduo interessado na solução da questão de direito”[4].
A ponderação, apesar de sóbria, é por demais abrangente. A autor não tece maiores considerações sobre os critérios para classificação e admissão de terceiros interessados. O mesmo pode ser dito a respeito da obra de Luiz Guilherme Marinoni[5].
A despeito disso, nos deparamos com as considerações de Wambier, a qual defende que os “interessados” de que trata o código consistem nas partes dos processos sobrestados e dos outros processos não sobrestados que versam sobre a mesma tese jurídica[6]. Essas seriam pessoas titulares do direito sobre o qual se debruça o incidente, ocupando posição semelhante à do assistente litisconsorcial — com interesse equivalente ao das partes de fato.
Assumindo a tese da doutrinadora, segunda a qual o artigo 983, ao referir-se aos “demais interessados”, estaria tratando de todas das partes nas demandas afetadas e sobrestadas em razão da instauração do incidente, somos remetidos ao objeto central do presente trabalho.
Poderia a banca advocatícia, na condição de representante judicial de uma certa pluralidade de partes cujos processos encontram-se sobrestados em razão do incidente, ser admitida como interessada — na acepção de Wambier — e, a partir de então, apresentar documentos, nos termos do artigo 983 do novo CPC, bem como sustentar em caso de designação de audiência?
4. Conclusão parcial
Tomando como pressuposto a acepção de “interessados” de Wambier, defendemos ser perfeitamente possível a admissão da banca advocatícia como representante de um grupo delimitado de interessados.
Partindo dos critérios já ventilados — oposição de pedido de ingresso como interessado devidamente fundamentado, inclusive com demonstração objetiva de que a banca de fato represente judicialmente número expressivo de partes com processos sobrestados — entendemos que a medida encontra respaldo no espírito do novo CPC. Isso porque a admissão do escritório de advocacia como representante de uma massa de interessados é medida que implica em inegável economia processual — pilar central do novo diploma processual civil.
Além disso, dada a potencial abrangência do incidente, bem como a constatação de que os interessados são efetivos titulares do direito debatido, porquanto possuem interesse equivalente ao das partes de fato, entendemos que a manifestação da banca enquanto representante de uma coletividade assume caráter estratégico. A fazê-lo, a banca é capaz de abstrair a contingência do conflito processual entre as partes e lançar argumentos jurídicos de ordem mais geral. Assim, estará o julgador melhor habilitado a decidir o incidente de forma a solucionar a controvérsia jurídica que se apresenta.
Autor: João Paulo Aguiar Moreira é graduando em Direito pela Universidade de Brasília e estagiário no escritório Gaia Silva Gaede & Associados.