Autor: Marcos de Aguiar Villas-Bôas (*)
Em maio de 2011 publiquei um texto na Revista Dialética de Direito Tributário, 188, cujo título era A inconstitucionalidade do art. 25 da Lei 11.941/2009 e o Controle de Constitucionalidade Realizado pelo Carf. No referido texto, foi argumentado o seguinte:
- interpretação e aplicação do direito significam interpretação e aplicação do sistema, como já dizia Karl Engisch. É impossível aplicar lei sem aplicar Constituição. Isso significa contradizer o que é o próprio direito. É um nonsense.
- A Constituição não é um subsistema jurídico qualquer, que pode ser afastado conforme a vontade de alguns, nem mesmo por lei. Ela é o conjunto de normas máximas, é o topo, de onde tudo se constrói, o que há de mais superior no sistema. Como aplicar normas de um sistema sem afastar aquelas contrárias às suas normas máximas?
- É possível cindir o sistema jurídico para fins didáticos, como no caso de estudar a disciplina Direito Constitucional; contudo, não há cisão na interpretação e na aplicação. Não há como aplicar direito pela metade. Quando se aplicar lei inconstitucional pelo fato de não se poder declarar a sua inconstitucionalidade, estar-se-á aplicando norma inválida, que não pertence ao sistema, é a aplicação do não-direito.
- Os textos infraconstitucionais devem ser, necessariamente, desdobramentos do texto constitucional. Eles podem inovar naquilo que não firam as normas máximas constitucionais, sobretudo no que toca a cláusulas pétreas, como os direitos fundamentais do indivíduo. No momento em que a Lei 11.941/2009 impede que o Carf declare inconstitucionalidade de lei, pode-se ler da seguinte forma: se a lei for inconstitucional, aplique-a sem pestanejar.
- A Constituição é uma lei como as demais, porém a Lei Maior, a Lei Fundamental. Não importa como seja chamada, a força normativa da Constituição não é mais negada desde meados do século XX, ideia bem desenvolvida por Konrad Hesse. Se os enunciados constitucionais tratam de princípios, de normas mais gerais e têm maior caráter político, isso é porque eles são os mais importantes de todos, estabelecem as nossas bases e precisam abarcar todos os fatos acontecidos no país ou até fora dele.
- Todo texto é interpretado e a Constituição é apenas mais um a ser interpretado pelo Carf, sendo, porém, o mais importante de todos. Ao não se declarar inconstitucionalidade no Carf, é o mesmo que admitir a aplicação de todos os textos normativos tributários aplicáveis, menos dos mais importantes. Assim, fere-se a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que cada vez mais se consolida no sentido de buscar máxima efetivação das normas constitucionais.
- Aplicar lei inconstitucional é aplicar norma inválida, ser injusto por premissa. Ao vedar declaração de inconstitucionalidade no Carf, admite-se a prática de um novo direito, que é aplicado por um subsistema inventado à margem da CF/88.
- A Constituição funda o Estado Democrático de Direito no seu artigo 1º. Ela é, segundo a própria, todo o fundamento do Estado, constitui o que será das relações no Brasil. O artigo 60 prevê um procedimento mais complicado para que se altere a Constituição devido à maior importância do seu texto.
- O controle de constitucionalidade é feito por qualquer órgão aplicador do direito. Ele não consiste apenas em afastamento de normas infraconstitucionais claras que afrontam a Constituição, mas também de certas interpretações inconstitucionais em casos mais difíceis. Deste modo, devido à Lei 11.941/2009, alguns podem defender que não pode ser feita também a interpretação conforme a Constituição pelo Carf, afastando normas inconstitucionais construídas a partir das leis, o que é gravíssimo.
Pelo fato de o texto ter sido escrito em meados de 2010, não havia sido publicada ainda a Portaria 52, de 21 de dezembro de 2010, que trouxe as Súmulas Vinculantes do Carf e, dentre elas, a Súmula 2: “O Carf não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária”.
Segundo o Regimento do Carf atual, no seu artito 45, perderá o mandato o conselheiro que “deixar de observar enunciado de súmula”. Enquanto um conselheiro da 1ª Seção do Carf, sinto-me, portanto, à vontade para tratar desse assunto, uma vez que a Súmula 2 sequer pode ser questionada em julgamento.
Na atividade de conselheiro, tenho aplicado a Súmula 2 e deixado de analisar alegações de inconstitucionalidade, porém ressalvando a minha posição sobre o assunto. Defendo com tranquilidade e certa convicção que a Súmula 2 deve ser cancelada com urgência, pois representa um atentado ao direito e ao próprio Carf, que, enquanto órgão julgador, intérprete e aplicador autêntico do direito, não se pode furtar qualquer tipo de apreciação da Constituição.
No texto aqui mencionado, a proposta era de que se passasse a interpretar cada vez mais a Constituição no Carf e que todas as turmas pudessem afastar leis por entenderem que elas eram inconstitucionais. Continuo acreditando ser essa uma saída correta, viável e melhor do que a proibição de controle de constitucionalidade em concreto.
Há, no entanto, uma saída que, se conjugada com essa, pode dar mais celeridade à solução de questões sobre inconstitucionalidade de leis, que é um mecanismo para levar essas questões ao STF a partir do seu surgimento em qualquer processo administrativo ou judicial. É assim que acontece na França desde a criação da Question Prioritaire de Constitucionnalité (QPC).
O Brasil tem, provavelmente, o maior sistema constitucional tributário do mundo. Inúmeras normas importantes estão previstas na CF/88 e não estão repetidas em legislação infraconstitucional. Ao não afastar leis por inconstitucionalidade, cria-se um novo sistema tributário brasileiro, cujas normas máximas são as leis complementares e ordinárias, que serão concretizadas pela legislação infralegal.
Os importantíssimos princípios e direitos previstos na Constituição, se não repetidos pela legislação infraconstitucional, se perdem. Sorte dos contribuintes quando o próprio Código Tributário Nacional ou outra lei decidiu por repetir o princípio ou um direito deles previsto na Constituição. Caso contrário, aplica-se lei inconstitucional.
A Súmula 2 do Carf é um resultado de acórdãos antigos e relatados por conselheiros representantes da Receita Federal. O primeiro acórdão é o 101-94.876, cuja sessão ocorreu em 25 de fevereiro de 2005, de relatoria de Caio Marcos Candido (Receita Federal). Não há fundamentação para a não análise de matéria constitucional. Cita-se um trecho do recurso do contribuinte que se refere a inconstitucionalidade e nem se analisa a alegação por conta disso. Conclui-se na ementa que cabe ao Poder Judiciário analisar constitucionalidade de leis.
O segundo acórdão é o 103-21.568, cuja sessão ocorreu em 18 de março de 2004, de relatoria de Nilton Pêss (Receita Federal). Ele é muito semelhante ao primeiro, inclusive tratando do mesmo assunto: a trava de 30%. A diferença é que esse acórdão fundamentou a conclusão no artigo 102, I, “a”, e III, “b”, que, ironicamente, é da própria Constituição.
Esses dispositivos tratam das competências do STF para analisar Ação Direta de Inconstitucionalidade e Recurso Extraordinário, nada dizendo a respeito de uma suposta competência exclusiva do Judiciário para controle de constitucionalidade em concreto.
Caso esses dispositivos que regem a competência do STF impedissem controle de constitucionalidade, os juízes também não poderiam afastar lei em face da CF/88, a menos que o STF o tivesse feito previamente, o que não tem qualquer sentido e não é o que ocorre no Brasil.
O terceiro acórdão é o 105-14.586, cuja sessão ocorreu em 11 de agosto de 2004, de relatoria de Luiz Gonzaga Medeiros Nóbrega (Receita Federal). Ele também tem como objeto a trava de 30% e segue a mesma linha do acórdão anterior, citando os mesmos dispositivos e concluindo que a inconstitucionalidade apenas pode ser declarada por órgãos administrativos se já o feito pelo STF.
Essa é uma visão antiquada e atécnia da interpretação jurídica, que parte do pressuposto de que uma lei deve ser interpretada literalmente, apenas havendo uma inconstitucionalidade quando o órgão constitucional do país a declara.
O assunto se perde no jogo de palavras e a Constituição se torna algo fora do sistema jurídico ou algo muito especial, cujas normas em relação com as demais deveriam ter um tratamento diferenciado.
Não há diferença entre considerar uma instrução normativa da Receita Federal ilegal e uma lei inconstitucional. É a mesma situação: normas inferiores não podem ser aplicadas quando afrontem normas superiores, o que está dito, aliás, numa lei, a de Introdução ao Código Civil.
Repito, se fosse assim, nenhum juiz poderia decidir afastando lei que ele julga inconstitucional. Esse entendimento leva a perpetrar as inconstitucionalidades do sistema por anos, até que o STF venha a decidir sobre elas, o que leva, muitas vezes, mais de uma ou duas décadas.
É o mesmo que negar o controle de constitucionalidade em concreto, que, em verdade, não é nenhuma técnica especial, como é o controle em abstrato, praticado por órgão específico e com procedimento específico. O chamado controle em concreto é invalidação de norma inferior por afronta a superior, declaração corriqueira, feita por qualquer homem da sociedade, mas, autenticamente, apenas por aqueles que têm poder para aplicar a lei.
O quarto acórdão é o 108-06.035, cuja sessão ocorreu em 14 de março de 2000, de relatoria de Nelson Lósso Filho (Receita Federal). Trata também da trava de 30% e de outros temas. Seguiu a linha dos últimos acórdãos, fundamentando que a lei viria ao sistema para ser aplicada, como se não coubesse inter-relacioná-la com as demais leis, sobretudo com a maior de todas.
Com respeito aos relatores e demais que seguiram seu posicionamento, essa visão é descabida e vem de uma época em que os brasileiros ainda não estavam acostumados com a atividade construtiva que qualquer julgador exerce.
Se estivéssemos falando da atividade do auditor da Receita Federal, até haveria maiores discussões, apesar de que ele também deve afastar lei quando ela for inconstitucional. O que pode e deve existir é mecanismos de uniformização de entendimento dentro dos órgãos administrativos.
No caso de um auditor fiscal que entender ser uma determinada norma tributária inconstitucional, poderia haver um mecanismo para consulta a órgão especial da Receita Federal, que avaliaria a questão, discutindo, inclusive, se seria o caso de o Presidente da República propor uma ADI.
Toda a sociedade interpreta a Constituição. Essa é uma ideia antiga, que ficou célebre pela obra do alemão Peter Härbele, aplicado mais de uma vez pelo nosso STF e homenageado, inclusive, pelo ministro Gilmar Mendes. Cabe aos órgãos administrativos estabelecer as interpretações que serão seguidas pelos seus membros e discutir eventuais inconstitucionalidades de leis que eles possam entender existentes. A aplicação cega de leis inconstitucionais não pode persistir!
Os demais acórdãos que embasam a Súmula 2 do CARF trazem os mesmos argumentos de falta de competência, alguns fazem referência aos já citados dispositivos da Constituição, que nada dizem sobre o dever de um órgão administrativo julgador tomar a Constituição em plena consideração e efetivá-la.
Apelando ao absurdo e trazendo um exemplo que funciona pedagogicamente, essa Súmula 2 do Carf segue uma linha de que, caso criada uma lei para discriminar negros, mulheres ou gays, deveremos segui-la, até que o Poder Judiciário e, no caso, o STF defina que essa lei é inconstitucional.
Inúmeros enunciados foram redigidos em lei, decreto, regimento interno do Carf e, por fim, na Súmula 2 para garantir que as leis fossem aplicadas sem controle de constitucionalidade. Todos esses enunciados são inconstitucionais e devem ser contestados.
O primeiro passo a ser tomado é cancelar a Súmula 2 e, para isso, o Regimento Interno do Carf, no artigo 74, determina que os sujeitos competentes para pedir cancelamento de súmula são: o presidente do Carf, o procurador-geral da Fazenda Nacional, o secretário da Receita Federal do Brasil ou um presidente de confederação representativa de categoria econômica habilitada à indicação de conselheiros.
Outra medida que deve ser tomada, paralelamente, é o ajuizamento de ADI em face do artigo 25 da Lei 11.941/2009, com pedido para que eventual declaração de inconstitucionalidade se estenda aos demais textos normativos que prescrevem norma no mesmo sentido.
Essas sugestões aqui trazidas não pensam apenas nos contribuintes, mas no país. É um erro grave estender qualquer tipo de aplicação de direito sem máxima concretização da Constituição, ainda que seja preciso afastar texto legal claro num sentido contrário a ela. Como se sabe, hoje no Brasil se cria normas infraconstitucionais a varejo, inclusive por meio de Medidas Provisórias. Permitir que se aplique direito sem aplicar a Constituição é uma afronta séria ao Estado Democrático de Direito!
Se os indivíduos contrários a esse posicionamento apresentarem razões práticas no sentido de que a proibição atual é boa para o país, estarei aberto a discuti-las. Parece-me, no entanto, que a proibição de declaração de inconstitucionalidade pelo Carf é uma mera defesa de tese jurídica mal fundamentada, pautada em preconceitos teóricos, em visões antiquadas sobre o que é a Constituição, a interpretação etc.
Ao fundo, pela forma como se formou a Súmula 2, fica claro que o fim maior da proibição de se afastar lei por inconstitucionalidade no Carf é o de beneficiar a Receita Federal, sendo cada cidadão do país o real prejudicado pela perpetuação de leis tributárias inconstitucionais.
A Súmula 2 veio para sepultar a discussão sobre a inconstitucionalidade da trava de 30% para uso dos prejuízos fiscais acumulados, o que, como já defendi em texto passado[1], deve vir a ser reconhecido pelo STF num futuro próximo.
Outra prova desse fim prejudicial ao país está escancarado na própria Lei 11.941/2009, que estabelece exceções para a proibição de declaração de inconstitucionalidade de leis pelo Carf. Lá está expressamente dito que, quando não for mais do interesse da AGU brigar pela lei tributária, então poderá ser declarada a inconstitucionalidade dela, o que retira qualquer dúvida sobre a proibição não estar pautada em qualquer tipo de interpretação constitucional, mas nos interesses da União dentro das relações tributárias.
Esse é mais um dos inúmeros exemplos em que a União e, sobretudo, a Receita Federal, órgão seu, deixam de lado qualquer preocupação democrática, econômica e de justiça tributária para atingir aquele que, infelizmente, tem sido seu fim único no Brasil: encher os cofres ao máximo para que as receitas possam servir às pessoas que estão governando.
Autor: Marcos de Aguiar Villas-Bôas é advogado, conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.