Autor: Fernando José da Costa (*)
Após décadas de espera e apresentação de um projeto enviado pelo governo em substituição a outro, houve aprovação relâmpago pelo Congresso Nacional do Projeto da Lei de Regularização de Bens. Após sanção presidencial, entrou em vigor, no Diário Oficial de 14 de janeiro de 2016, por meio da Lei 13.254. Sucinta em 12 artigos, discorre sobre o regime especial de Regularização Cambial e Tributária de Recursos, Bens ou Direitos de Origem Lícita (RERCT), não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes, domiciliados ou com sede no país até 2014.
Equivocadamente é denominada de Lei da Repatriação, já que a terminologia que vem do latim repatriare significa fazer voltar à pátria, ou seja, deveria tratar somente de bens retornados ao Brasil.
Porém, conforme previsto no parágrafo 4º do artigo 4º, os bens a serem regularizados existentes no exterior podem ou não ser transferidos. Se optado pela não internação do bem, tem-se a regularização sem a falada “repatriação”. A lei tem por escopo legalizar perante os órgãos nacionais os recursos, bens ou direitos localizados no exterior ou já repatriados, denominados “bens”, de residentes, domiciliados ou com sede no Brasil, em 31 de dezembro de 2014, que não foram declarados à Receita Federal brasileira (RFB) ou declarados de forma incorreta.
Dentre as condições mais relevantes impostas por essa lei para a regularização do bem destacam-se: a) a apresentação voluntária da “declaração única de regularização específica” denominada Dercat à Secretaria da RFB, com cópia ao Banco Central do Brasil (BCB) (artigo 4º); b) tal apresentação deve ser feita dentro de um prazo legal; c) pagamento de Imposto de Renda e multa sobre o valor do bem; d) os recursos ou patrimônio devem ter origem lícita, oriundos de atividades permitidas ou não proibidas pela lei; e) a não aplicação desta lei aos condenados a crimes descritos no parágrafo primeiro do artigo 5º, bem como a detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, seus cônjuges e parentes consanguíneos ou afins até o segundo grau ou por adoção.
Sobre a declaração voluntária única de regularização específica e consequente adesão ao RERCT, a lei é clara ao exigir descrição pormenorizada dos bens, melhor detalhada pela Instrução Normativa da Receita Federal 1627, de 11 de março de 2016. Referida IN descreve a declaração voluntária como aquela que informe fato que não tenha sido objeto de lançamento. Tal IN, apesar de esclarecer muitas questões, se omite a tantas outras, repete muitas normas já trazidas na lei de regularização, além de trazer dispositivos contrários a própria lei, tornando-a confusa e passível de discussões. Enquanto a lei exigia o envio da Dercat à RFB, com cópia ao Banco Central do Brasil, a IN, facilitando o contribuinte, previu que caberá à própria RFB o envio dessa declaração ao BCB (artigo 5º, parágrafo 1º da IN).
Do pagamento do IR e da multa
Sobre o pagamento do imposto e da multa, foi vetado pela Presidência da República a possibilidade de parcelamento em até 12 vezes para regularização de bens imóveis (parágrafo 3º do artigo 5º). Dessa forma, o pagamento do imposto e da multa deverá ser feito integralmente e apresentado juntamente com a declaração de regularização dentro do prazo legal supramencionado. A lei prevê para apresentação da Dercat o pagamento de 15% do Imposto sobre a Renda, a título de ganho de capital do valor do bem avaliado em 31 de dezembro de 2014.
Insta ainda ao contribuinte pagar uma multa de regularização de 100% sobre o valor do IR, qual seja, mais 15% sobre o valor do bem avaliado em dezembro 2014. Estão isentos do pagamento da multa o somatório dos valores depositados no exterior no limite de até R$ 10 mil, respeitada a cotação do dólar para venda. Sobre o valor a ser pago, a lei (artigo 4º, parágrafo 9º), prevê que, se o valor do bem não estiver avaliado em real, tem-se duas situações.
Se o bem não estiver ou não for avaliado em dólar americano, deverá a esse ser convertido, pela cotação do dólar de venda pelo BCB, em 30 de dezembro de 2014. Estando em dólar, o valor deverá ser convertido para a moeda nacional, pela cotação do BCB do dólar para venda em 30 de dezembro de 2014 – R$ 2,65. Já a IN (artigo 7º, parágrafo 4º) ao tratar da apuração do valor do ativo em real, estipulou o valor do dólar fixado para venda pelo BCB para 31 de dezembro de 2014, a saber R$ 2,66. Todavia, sustenta-se que uma IN não tem força de alterar lei federal, dessa forma, o valor para conversão deverá ser o do dia 30.
Para bens existentes no exterior que deverão ser convertidos à moeda nacional, como a taxa do dólar para venda de hoje. Com o pagamento integral, o contribuinte regulariza seu bem até 31 de dezembro de 2014, todavia, se repatriá-lo, estando o dólar da data da repatriação maior que o de 2014, terá ainda que pagar o imposto de ganho de capital, deste valor do dólar de 30 de dezembro de 2014 ao do dia da repatriação. Essas como tantas outras questões certamente serão passíveis de discussões perante o Poder Judiciário.
Da origem lícita
Sobre a origem lícita, isso quer dizer que ele tem que ter sido adquirido de uma atividade permitida ou não proibida por lei (artigo 2º, I). Esclarecendo, se você alcançou esse bem exercendo uma atividade permitida por lei e que dê condições de adquirir esse bem, poderá regularizá-lo. Todavia, essa é uma das condições que traz maior insegurança ao contribuinte. Eis a dúvida, como comprova a licitude de um bem até então classificado como ilícito?
A explicação é simples, esse bem não declarado configurava para o Direito Tributário, Administrativo e Penal um ilícito. Essa lei possibilita àquele que, espontaneamente, declarar esse bem irregular, pagando o imposto e a multa e cumprindo todas as demais obrigações nela descritas, de ter uma extinção de punibilidade criminal e uma anistia a qualquer penalidade extrapenal, em todos os órgãos públicos, como a Receita Federal, Banco Central, CVM, cessando dessa forma qualquer possibilidade de ser processado ou condenado em qualquer esfera judicial.
Não há na lei qualquer exigência para o declarante apresentar documentação que comprove a origem lícita daquele bem, até porque, muito provavelmente, como se trata de um bem não declarado ou declarado incorretamente, tal documentação dificilmente seria por ele guardada. O que poderá ou melhor deverá ocorrer é o confronto entre a atividade exercida que deu origem aquele bem e o próprio valor do bem não declarado. Caso tal bem não seja compatível à renda da atividade que deu ensejo à sua aquisição, estará o contribuinte sujeito a ter que explicar ao Fisco como conseguiu adquirir tal bem e se não conseguir explicar, de ser excluído do RERCT. Como a lei é clara ao exigir que a declaração única de regularização específica contenha a “descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos”, entende-se que essa declaração deva trazer detalhes da atividade que deu origem a tal.
Das restrições
Sobre as restrições à utilização dessa anistia, a lei comete sua maior falha, a Presidência da República veta o inciso I do parágrafo 5º do artigo 1º que discorria “I – com decisão transitada em julgado”. Esse veto em uma primeira leitura nos faz crer que foi impedida a aplicação dessa lei a sujeito condenado em ação penal pelos crimes listados no parágrafo 1º do artigo 5º, abaixo descritos, mesmo que tal condenação relacionada a esses bens não declarados não seja definitiva, não se importando se é de primeira, segunda ou até de terceira instância. Imagina-se que a única interpretação possível a essa questão é a de que basta o acusado ter sido condenado em qualquer instância criminal, mesmo ainda não transitada em julgado, para que ele esteja impedido de regularizar sua declaração de bens.
Posiciona-se pela inconstitucionalidade desse dispositivo com veto presidencial porque viola um dos mais sagrados princípios constitucionais, o da presunção de inocência. Se ninguém pode ser considerado culpado até decisão condenatória transitada em julgado, como pode uma lei vetar a alguém, que ainda não foi condenado definitivamente, uma possibilidade de ter os mesmos direitos de outro cidadão? Ele não é presumidamente inocente, até que contra ele exista uma condenação transitada em julgado?
Poder-se-ia imaginar que tal restrição valeria para qualquer condenação, todavia, na própria lei se dará se cumpridas as condições impostas à adesão ao programa antes de decisão criminal. O inciso II do parágrafo 2º desse mesmo artigo, ao prever a extinção de punibilidade dos crimes discorridos nos incisos I ao VII do parágrafo 1º, discorre “somente ocorrerá se o cumprimento das condições se der antes do trânsito em julgado da decisão criminal condenatória”. Isso demonstra de parte dos legisladores grave desconhecimento da matéria já que uma mesma lei, com tão poucos dispositivos, prevê duas posições antagônicas.
Assim, confrontando os dispositivos tem-se possível extinção de punibilidade criminal àqueles que não tiverem sido condenados definitivamente antes da regularização do bem. Ao mesmo tempo, um impeditivo de utilização dessa lei para qualquer condenado criminalmente pela não regularização do bem, mesmo em processos não transitados em julgado. Isto, data maxima venia, é um absurdo.
A Lei 13.254, no artigo 11º, impediu seus efeitos aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, seus cônjuges e parentes ou afins, até segundo grau ou por adoção. Em respeito a princípios como o da taxatividade, as normas penais devem ser claras, não podem admitir interpretações, nesse contexto como se pode definir as funções públicas “de direção”? Sobre tal restrição, a lei não previu o período em que tais pessoas deveriam estar nesses cargos, dessa forma a IN estabeleceu a data de 13 de janeiro de 2016 (artigo 4º, p. 4º). Assim, quem exerceu essa atividade pública por décadas até 12 de janeiro de 2016 pode aderir ao RERCT; quem a exercia no dia 13 de janeiro do mesmo ano, mesmo que por um dia, não pode.
Deseja-se crer que este artigo não prevê, de forma absoluta, que toda atividade pública de direção ou eletiva é ilícita e que, por tal motivo, vedando a regularização dos bens dessas pessoas. Imagina-se que vise alcançar apenas aqueles que, em razão dessa função, praticaram ilícitos e por meio delas adquiriram bens não declarados. Feitas essas breves explicações, indaga-se como fica a regularização de bens oriundos da lícita atividade pública ou eletiva desempenhada por essas pessoas? Simplesmente não fica, essas pessoas, se tal norma não for considerada inconstitucional, não poderão regularizar seus bens, desrespeitando princípios constitucionais como o da isonomia.
O problema não para por aqui, como fica a situação das pessoas que, além da função pública ou eletiva, também exerciam outra atividade permitida por lei, que deu origem a um bem não declarado? Seria o caso de um empresário que, apesar de em 13 de janeiro de 2016 estar exercendo uma função pública de direção ou eletiva, possuir bens não declarados à Receita, oriundos de sua lícita atividade empresarial. Para essa nova lei, esta pessoa, igualmente, não poderá regularizar esses bens, mesmo oriundos de uma atividade lícita. Igualmente, vemos esta norma como inconstitucional.
E como fica a situação de bens adquiridos a partir de 2015? Sustentamos que, apesar de a lei de regularização não prever essa questão, deverá ser aplicada a esses casos, utilizando-se da analogia in bonam partem, ou seja, quando há hipótese não regulada por uma lei, aplica-se uma lei semelhante, desde que benéfica ao agente.
Da exclusão ao RERCT
Eis mais uma dúvida: e para aqueles casos de contribuintes que apresentaram as declarações únicas de regularização, mas por algum motivo não aderiram ao programa? Darão azo a procedimentos punitivos? Suas informações serão divulgadas a terceiros? Para esses casos, a lei foi omissa, não se manifestou.
Todavia, para aqueles que forem excluídos do RERC, a lei previu (parágrafo 2º do artigo 9º) que serão cobrados os valores equivalentes aos tributos, multas e juros, deduzindo o que já foi pago, sem prejuízo de penalidades cíveis, penais e administrativas. No entanto, previu que a instauração ou continuidade e procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos relacionados à regularização só poderão ocorrer se houver “evidência documental não relacionada à própria declaração prestada pelo contribuinte”.
Dessa forma, passamos a sustentar para aquele que apresentou a declaração, mas não conseguiu aderir ao programa de ter a mesma garantia daquele que foi expulso do RERCT, qual seja, de não ter contra ele uma investigação relacionada à documentação por ele mesmo apresentada, trata-se do princípio a miori ad minus (quem pode mais pode menos).
Caso ocorra a exclusão do RERCT ou a simples não adesão, fica o receio do órgão público, impedido de se utilizar da Dercat, mas sabedor das irregularidades praticadas pelo declarante, ir buscar na fonte tais informações e com isso formar a materialidade delitiva. Sobre essa questão, entende-se que, pela impossibilidade de divulgação ou publicidade dessas informações a qualquer órgão público, caso não respeita essa garantia, teria-se uma prova ilícita, logo inutilizável.
Tal preceito deverá igualmente ser aplicado àqueles casos em que o declarante ao regularizar bens existentes na pessoa física ou na jurídica, diversa daquela que deu origem a aquisição desses bens, vem, posteriormente, a ter essa pessoa jurídica responsável pelos recursos dessa aquisição investigada em razão de tais informações.
Conclusões
Por fim surge uma preocupação: e se o Poder Judiciário decidir pela inconstitucionalidade da lei, após os contribuintes terem apresentado a Dercat? Nesse caso, continuamos sustentando que a utilização dessa prova para dar início ou prosseguimento a qualquer investigação ou processo anularia esse feito pela utilização de uma prova ilícita.
Com a Lei 13.254, que possibilita a adesão ao programa de regularização de bens num curto prazo de validade, de 4 de abril até 31 de outubro de 2016, os advogados têm a obrigação de orientar clientes e a sociedade dos benefícios e prejuízos. Por exemplo, há notícias de instituições financeiras que passaram a interpelar clientes sobre a origem e movimentação de valores nela depositados, aumentando a possibilidade de essas instituições exigirem que esses valores sejam dela retirados, caso não haja explicação quanto à origem.
Acredita-se que findo o prazo para regularização no Brasil de bens mantidos no exterior, muitas instituições financeiras estrangeiras, pelos motivos acima apresentados, estarão tomando providências contra aqueles que não regularizaram esses bens perante o Fisco brasileiro. Por tudo o que foi exposto, opina-se firmemente pela adesão ao plano de regularização, exceto para os casos em que o contribuinte não preencha todas as condições impostas na lei para tal.
Autor: Fernando José da Costa é advogado criminalista, professor, mestre e doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutor em Direito Penal por Sássari – Itália, autor de vários livros e sócio do escritório Fernando José da Costa Advogados.