Autores: Carlos André Studart Pereira e Raimundo Márcio Ribeiro Lima (*)
É preciso ser breve neste articulado. Afinal, o terrível momento político-econômico brasileiro não admite morosidade em qualquer análise, mesmo nos casos de notória relevância jurídico-social, porquanto tudo flui com extrema celeridade e intensidade, especialmente quando algo se destina ao interesse das carreiras jurídicas lastreadas no comando constitucional da autonomia orçamentária, garantia institucional, de inegável necessidade, que tem servido, com espetacular frequência, para consagrar odiosos privilégios na República. A ideia de que nela todos se submetem à lei, infelizmente, parece não encontrar maiores arrimos na Administração Pública do Poder Judiciário, do Ministério Público e, mais recentemente, da Defensoria Pública da União. O substrato da autonomia orçamentária, em períodos de crise econômica, torna-se uma verdadeira panaceia remuneratória, recaindo, inclusive, num vale-tudo remuneratório, no que deveria causar um estrondoso assombro em qualquer sociedade minimamente organizada. E o pior: o estado de exceção remuneratório procura justamente assinalar a normalidade das benesses pecuniárias, como forma de refinada burla aos institutos jurídicos sobre a matéria, no substrato da lei e dos demais veículos normativos, como por exemplo, nas resoluções do Conselho Nacional de Justiça.
Como se deve saber, na contramão do que estava previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2016 (Lei 13.242/2015), a Presidente da República, por meio da Medida Provisória 711/2016, abriu crédito suplementar de R$ 419 milhões para cobrir despesas com auxílio-moradia para integrantes dos tribunais superiores, federais, trabalhistas e estaduais, além de servidores do Ministério Público, da Defensoria Pública da União e do Legislativo.
No regular trâmite da matéria, a Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, prestando subsídios à referida Casa Legislativa, emitiu a Nota Técnica 09/2016, enfatizando, em demorada, mas necessária transcrição, o seguinte:
No entanto, a observância das exigências arroladas no artigo 17, parágrafo 9°, da LDO 2016, não se encontra devidamente demonstrada na instrução da MP. A nosso ver, os valores abertos a título de crédito extraordinário na MP em apreço deveriam estar amparados em demonstrativos encaminhados pelos Poderes, Ministério Público e Defensoria Pública, nos quais restasse evidenciado o quantitativo de agentes públicos que fazem jus à ajuda de custo para moradia ou auxílio-moradia, nos moldes impostos pela LDO 2016, o que permitiria ao Congresso Nacional aprovar a medida proposta sem qualquer margem de dúvida quanto aos valores envolvidos no pagamento de tal benefício.
Quanto aos pressupostos constitucionais do crédito em análise, o caput do artigo 62 combinado com o parágrafo 3° do artigo 167 da Constituição exigem que a medida provisória que abre crédito extraordinário deve atender a despesas relevantes, urgentes e imprevisíveis.
Segundo a exposição de motivos, a relevância e a urgência do crédito justificam-se pela necessidade de adequar-se às exigências legais e pelo fato de que o não pagamento dessas despesas inviabiliza o regular funcionamento dos demais Poderes, da Defensoria Pública da União e do Ministério Público da União, no que diz respeito à concessão do auxílio-moradia.
Os requisitos de relevância e urgência são de natureza essencialmente política. Especialmente em relação ao requisito da relevância, alguns doutrinadores entendem que, ao tratar a medida provisória de assunto próprio de lei, seria, no mais das vezes, indiscutível a ocorrência de relevância a legitimar a adoção da medida.
Considerando que o crédito extraordinário é um dos instrumentos destinados a alterar lei a orçamentária, inegável que seu conteúdo trata de matéria própria de lei.
Quanto ao critério da urgência, o Supremo Tribunal Federal tem enfrentado a questão exigindo a demonstração objetiva desse requisito em termos de lapso temporal e não simplesmente sob o aspecto subjetivo de urgência, que se costuma associar a um juízo político de oportunidade e conveniência.
Já em relação ao requisito da imprevisibilidade, que só se aplica às medidas provisórias que tratam de créditos extraordinários, associada ao requisito de urgência pelo artigo 167, parágrafo 3°, a própria Constituição confere parâmetros para se aferir o caráter urgente e imprevisível das despesas:
“Art. 167 (….)
§ 3° – A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62.”
A exposição de motivos não traz justificativas para a imprevisibilidade dos gastos, embora o remanejamento proposto, com a indicação das fontes de recursos provenientes do cancelamento de despesas primárias, revele que as despesas com a Ajuda de Custo para Moradia dos Agentes Públicos estavam suficientemente previstas em programações genéricas, em desconformidade com o disposto no inciso XXV do artigo 11 da LDO 2016, que exige a discriminação em categoria de programação específica as dotações destinadas para tais despesas.
Portanto, trata-se de especificação de despesa prevista em programação genérica do orçamento, para atender a dispositivo da LDO 2016, visando dar maior transparência a esse benefício de natureza indenizatória. Ressalte-se ainda que foi discriminado no parágrafo 3° do artigo 167 da Constituição rol exemplificativo de situações que autorizam a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. Esse rol, embora exemplificativo, revela certa vinculação, no que se refere à gravidade da situação, acontecimento excepcional equiparável às situações mencionadas.
Ou seja, as situações que ensejam a edição de medida provisória em matéria orçamentária devem ser drásticas, catastróficas, nas quais a segurança social se encontre em grave e iminente risco. E o pagamento de auxílio moradia a agentes públicos não se equipara às situações mencionadas na Constituição quanto à gravidade da situação.
Dessa forma, a correção deveria ter sido encaminhada por meio de projeto de lei de crédito adicional, uma vez que não caracterizada a imprevisibilidade exigida pelo parágrafo 3° do artigo 167 da Constituição. Esses são os subsídios.
Não obstante esses indeclináveis obstáculos normativos, inclusive de envergadura constitucional, a relatora, deputada Gorete Pereira (PR-CE), mesmo reconhecendo a existência de um dele, opinou pela a aprovação da medida provisória, valendo-se dos seguintes fundamentos:
Consideradas as informações contidas na exposição de motivos que acompanham a referida medida provisória, depreende-se que se acham atendidos os pressupostos constitucionais quanto à relevância e a urgência. No que se refere à imprevisibilidade, a exposição de motivos não traz nenhuma justificativa.
Ainda em seu parecer, a parlamentar inadmitiu a emenda proposta pelo deputado Pedro Fernandes (PTB-MA), que buscava a inserção do seguinte dispositivo: “O auxílio moradia não poderá ultrapassar 8% da remuneração do servidor”. A justificação arvorada foi a seguinte:
Não há critérios de equivalência para os cargos em comissão ou função de confiança explicitados em lei. Crê-se haver ofensa ao princípio da isonomia, com evidente discriminação, se os outros cargos, não expressos na lei, não tiverem o mesmo tratamento. Havendo fixação do percentual do benefício, estabelecer-se-á critério de igualdade entre os servidores que tem direito ao auxílio moradia. Há de se lembrar que o trabalhador brasileiro recebe um salário mínimo e com esse valor precisa atender a todas as suas necessidades.
A relatora, porém, de maneira acertada, afastou a emenda, asseverando o seguinte:
“A emenda nº 1 trata de inserção de dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, contrariando o princípio da exclusividade das leis orçamentárias, insculpido no artigo 165, parágrafo 8º, da Constituição, devendo, dessa forma, ser inadmitida”.
No entanto, agindo de forma totalmente dissonante à fundamentação acima, corporificando, portanto, uma vergonhosa contradição, porque não se trata de mera atecnia jurídico-argumentativa, a relatora incluiu regras estendendo o auxílio-moradia para os agentes públicos aposentados.Veja-se o argumento ventilado pela parlamentar:
“Tendo em vista a relevância e a urgência explicitadas na EM nº 00011/2016 MP, de 18/01/2016, considerando a necessidade de realização da despesa a fim de viabilizar o regular funcionamento dos demais Poderes, da Defensoria Pública da União e do Ministério Público da União, entendo ser imprescindível e oportuna essa forma de intervenção do Governo Federal, tornando meritória a edição da Medida Provisória em exame.
Ademais, a fim de cumprir o princípio da igualdade estabelecido na Constituição, incluo dispositivo estendendo o auxílio-moradia a todos os juízes, inclusive aos aposentados”.
Por fim, a nova redação proposta para o texto ficou vazada nos seguintes termos:
“Art. 1º Fica aberto crédito extraordinário, em favor de diversos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, da Defensoria Pública da União e do Ministério Público da União, no valor de R$ 419.460.681,00 (quatrocentos e dezenove milhões, quatrocentos e sessenta mil, seiscentos e oitenta e um reais), na forma dos Anexos I e II.
§1º A ajuda de custo para moradia ou auxílio-moradia deverá ser paga aos agentes públicos da ativa e aos aposentados.
§2º A ajuda de custo para moradia será paga aos magistrados aposentados, a partir de janeiro de 2016.
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.
Não é preciso adentrar no mérito sobre o pagamento de auxílio-moradia aos agentes públicos na ativa que exercem suas atribuições na cidade em que estão lotados, até porque outros articulistas já expuseram a imoralidade e mesmo a ilegalidade dessa benesse nada republicada. No entanto, cumpre registrar que a deputada, relatora da medida provisória, com sua inusitada inserção, desconsiderou completamente a natureza do auxílio-moradia, que era para ser indenizatória. A ministra Cármen Lúcia, na sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, de 18 de novembro de 2015, em que se julgou o RE 606.358, elucidou esse ponto de forma bem singela: “Indenização é deixar indene, sem dano. Se não houve dano, não há que se falar em indenização, por óbvio. Aí é português. E, no entanto, sob o nome de verba indenizatória se paga o que não deve”.
Ademais, a jurisprudência da Suprema Corte é firme no sentido de que não é possível a extensão de benefícios indenizatórios aos servidores inativos, exatamente em razão da sua natureza. Tal entendimento restou consagrado na Súmula 680 da referida corte ao estabelecer que: “O direito ao auxílio-alimentação não se estende aos servidores inativos”. Além disso, no dia 28 de março de 2016, por coincidência, foi publicada a Súmula Vinculante 55, com a mesmíssima redação do aludido verbete, aliás, tratou-se de mera conversão.
Assim, com a devida vênia, a deputada equivocou-se ao levar para o texto normativo uma regra estranha “à previsão da receita e à fixação da despesa, contrariando o princípio da exclusividade das leis orçamentárias, insculpido no artigo 165, parágrafo 8º, da Constituição”, bem como ao estender uma verba de natureza indenizatória (pelo menos era para ser assim considerado) a servidores inativos. Porém, ainda há tempo para promover as necessárias corrigendas, pois o parecer apresentado ainda aguarda Deliberação na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO).
De todo modo, duvida-se que essas corrigendas sejam promovidas, certamente não conta de desconhecimento técnico-jurídico, o que seria algo inaceitável em função da excelência da Consultoria do Legislativo brasileiro, mas, sobretudo, pela necessidade de agradar largos interesses na estrutura do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública da União. No vale-tudo remuneratório as bandeiras institucionais, duramente conquistadas pela Constituição Federal de 1988, são simplesmente desprezadas em função de benesses pecuniárias, no mínimo, discutíveis à luz da legislação vigente.
Autores: Carlos André Studart Pereira é advogado.
é advogado e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.