Direitos da mulher ainda avançam de maneira incompleta no Brasil

Autor: Marco Aurélio Mello (*)

 

Por longo tempo, negou-se à mulher a capacidade jurídica, a cidadania, sem que lhe fosse reconhecido qualquer direito. Como coisa, passava da propriedade do pai para a do marido, sendo-lhe vedado praticar atos da vida civil de forma geral. Transcorridos séculos de civilização, ainda se faz presente entre nós a discriminação decorrente do gênero. Não tem sido fácil deixar no passado os efeitos decorrentes de anos de escravidão, educação precária e machismo.

A participação feminina na política hoje não é apenas permitida ou tolerada, senão determinada em lei. Foi preciso regulamentar o tema de forma a estabelecer percentual mínimo para a integração das mulheres nos pleitos – o sistema de cota. Prosseguiu-se, criando-se a necessidade de propaganda institucional, nos anos eleitorais, a fim de incentivar a igualdade de gênero e o envolvimento das mulheres. Infelizmente, não raras vezes, nas convenções dirigidas à escolha de candidatos, surgem chapas meramente formais, e não reais candidatas. É o faz de conta que muito nos envergonha.

A evolução desejada, no âmbito individual, condicionada à disposição de cada ser humano para agir de forma diferente, visando respeitar os demais, mostra-se lenta, sendo impulsionada, na maioria das vezes, pela produção legislativa. Cito o caso da chamada Lei Maria da Penha. Fui relator das ações que versavam a respectiva constitucionalidade.

Proclamou o Supremo que transferir à mulher a decisão sobre deflagrar a ação penal tendente a punir o agente – com quem, em geral, tem estreitos laços afetivos familiares ou resultantes do casamento – significa desconhecer o temor, a pressão e as ameaças sofridas pela vítima.

Assentamos o dever do Ministério Público de iniciar o processo decorrente de lesões corporais havidas no âmbito doméstico, mesmo que a vítima tenha perdoado o agressor. E, ainda, a impertinência da Lei das Pequenas Causas, ficando afastadas a suspensão do processo e a transação penal. O ritmo das transformações sociais não mais se coaduna com a demora verificada no trâmite necessário às alterações legislativas, tendo sido o Judiciário provocado a atuar em virtude da premência da realidade.

Não nos furtamos a enfrentar causas da maior relevância, como a alusiva à interrupção da gravidez diante de feto portador de anencefalia. Procedemos com o desassombro que se espera do magistrado: as convicções pessoais, de cunho moral e religioso, devem ser sublimadas quando analisada situação concreta. O juiz, no exercício do cargo, é a personificação do Estado, cabendo-lhe agir em conformidade com os ditames constitucionais, não lhe sendo lícito excluir, por motivo meramente de foro íntimo, a interpretação que mais bem resolva o caso.

O tratamento dispensado à defesa dos direitos da mulher e das questões de gênero deve considerar a opção legislativa pelo Estado laico, no que, se, de um lado, estabelece a liberdade religiosa, de outro, impede seja a religião tratada como fonte normativa quanto à disciplina de outros direitos fundamentais, como o direito à autodeterminação, à privacidade, à liberdade de orientação sexual e à liberdade no campo da reprodução.

Cumpre afastar as premissas falsas de que a regulamentação dos direitos da mulher decorre da fragilidade física feminina ou visa à concessão de privilégios. Nada mais errado. A cada dia, vê-se a ampliação da presença feminina no mercado de trabalho, muitas vezes como arrimo de família. A força de trabalho da mulher tem aquecido a economia e possibilitado a permanência do poder de compra. Sendo de igual qualidade as atividades realizadas e servindo aos mesmos fins, o que justifica a disparidade quanto ao salário? Nada. Males como esse, o excesso de jornada, as precárias condições de trabalho e a inobservância dos direitos decorrentes da maternidade devem ser combatidos com fiscalização rígida e apenação severa.

Se ainda não alcançamos o ponto desejado, certo é que evoluímos muito. A visão mais aberta inserida na Constituição Federal de 1988 mudou o conceito de família e implicou alteração da interpretação até então existente. A noção oriunda fundamentalmente da disciplina do casamento passou a uma regência constitucional alicerçada na realidade.

Se a família permanece como a base da sociedade, o conceito deve corresponder às modificações nela ocorridas. Os avanços memoráveis viabilizaram a reconstrução familiar, legitimando a caminhada no sentido da realização do homem e da mulher como seres humanos.

 

 

 

Autor: Marco Aurélio Mello é ministro do Supremo Tribunal Federal.


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