CPC perdeu chance de colocar Brasil na vanguarda em processos com arbitragem

Autor: Thiago Rodovalho (*)

 

O Novo CPC, com relação especificamente à arbitragem, representou uma grande perda de oportunidade de uma melhor disciplina da alegação de convenção de arbitragem. Como já tivemos oportunidade de pontuar, o Projeto do NCPC, na versão aprovada na Câmara dos Deputados, continha sensíveis avanços na disciplina da matéria,[2] avanços esses que se perderam na versão final aprovada no Senado Federal e sancionada pela Presidência da República.

Tratava-se da moderna criação de um procedimento específico para alegação de existência de convenção de arbitragem, que colocava o Brasil na vanguarda na matéria, prestigiando a arbitragem

Nesse sentido, em vez de alegar-se a existência de convenção de arbitragem em matéria preliminar de contestação, vendo-se a parte obrigada a adiantar, com isso, o próprio mérito de sua defesa (em atenção ao princípio da eventualidade), a versão aprovada na Câmara criava, como dito, momento procedimental específico para a apreciação de existência de convenção de arbitragem. A existência de convenção de arbitragem deveria ser deduzida em petição autônoma, na audiência de conciliação ou mediação, ou, caso essa não viesse a ocorrer, no momento em que o réu manifestasse desinteresse em sua realização, ou, ainda, no prazo da contestação, caso a audiência não tenha sido designada por outra razão.

Em todas essas hipóteses, essa petição teria o efeito de interromper o prazo para contestar (desde que instruída com a convenção de arbitragem), que voltaria a correr, por inteiro, somente após a intimação da decisão rejeitasse a alegação de convenção de arbitragem (evidentemente, pois, em caso de acolhimento, não haveria que se falar sequer em momento para contestar, com a extinção do processo sem resolução de mérito).

Deste modo, evitar-se-ia que o réu fosse forçado a adiantar o mérito da matéria que pretendesse ver deduzida no juízo arbitral (meritum causae). Deveria ele apenas formular a petição autônoma, instruindo-a obrigatoriamente com o instrumento da convenção de arbitragem (sob pena de rejeição liminar, podendo, inclusive, vir a ser considerado revel, em caso de descumprimento dessa exigência), tecendo as razões que entendesse pertinentes, repita-se, apenas e tão somente com relação à competência do juízo arbitral, sem a necessidade de adentrar o mérito. O juiz, então, ouviria a parte contrária apenas quanto à alegação de convenção de arbitragem, decidindo a questão.

Com isso, preservar-se-ia o mérito para o momento oportuno e para o foro competente.

Contudo, na versão final e aprovada do NCPC, suprimiu-se esse procedimento específico para alegação de convenção de arbitragem, com o retorno de sua alegação como uma simples preliminar de contestação, tal como já ocorre atualmente no CPC/1973, ao argumento de assegurar, com isso, a celeridade processual, entendimento esse que nos parece equivocado.

Essa supressão tem preocupado a comunidade arbitral brasileira, tanto que, em artigo publicado no final do ano passado, José Antonio Fichtner propõe uma interessante solução, qual seja, a de que a alegação de convenção de arbitragem possa ser feita por meio de uma exceção de pré-conhecimento.[3] Embora concordemos com a proposta do autor, temos de considerar que ela traz um risco à parte, ao menos até que essa possibilidade se consolide no entendimento jurisprudencial, especialmente com o modelo de respeito aos precedentes adotado pelo NCPC. Até lá, corre-se o risco de, rejeitando a alegação de convenção de arbitragem, o juiz entender que houve revelia, por não ter sido contestado o mérito da ação.

Assim, propomos uma nova alternativa, a possibilidade de que as partes disciplinem esse procedimento específico para alegação de existência de convenção de arbitragem através de negócio jurídico processual.[4]

A maior e melhor disciplina da possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais é, indubitavelmente, um dos grandes avanços do NCPC, mesmo que, no estágio atual, ainda esteja cercado de dúvidas a respeito de sua eficácia e de seus limites.

Os negócios jurídicos processuais, conquanto estudados no direito estrangeiro (Alemanha e Itália, v.g.) há cerca de quase cem anos,[5]demoraram, e muito, para chamar dos processualistas brasileiros, ficando, durante muito tempo, relegada a um segundo plano doutrinário, tratada lateralmente, fruto de uma visão (excessivamente) publicista do processo,[6]à exceção de primoroso e visionário estudo de José Carlos Barbosa Moreira, escrito em 1982, e publicado e republicado nos anos de 1983 e 1984.[7] Esse desinteresse da doutrina, contudo, desapareceu com o advento do NCPC, bastando ver os trabalhos específicos sobre o tema publicados nos últimos tempos.[8]

Os negócios jurídicos processuais representam um interessante diálogo entre o direito privado e o direito processual, razão pela qual Emilio Betti, com propriedade, afirma que a noção de negócio jurídico é aplicável ao campo do direito processual.[9]

Grosso modo, podemos conceituar negócio jurídico processual como sendo a possibilidade de as partes criarem certos regramentos processuais para si, sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo, dentro dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico (NCPC art. 190).[10] São, em suma, convenções celebradas entre as partes para constituir, modificar ou extinguir uma situação jurídica processual, sempre dentro dos limites admitidos pela lei.[11] Trata-se de conceito consentâneo com a ideia de autonomia privada, princípio esse que fundamenta o negócio jurídico processual, sem perder o processo o seu caráter público. Assim, a autonomia privada quer justamente significar o poder de criar normas jurídicas dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico.[12] Esse poder, no âmbito processual, encontra-se agora disciplinado nos arts. 190 e 191 do NCPC. Por evidente, no campo do direito processual, esse poder tem uma amplitude menor do que no direito privado, enfrentando limites maiores,[13] tendo-se o processo como um instrumento do Estado Democrático de Direito.[14]

Entretanto, em havendo paridade entre as partes (NCPC artigo 190 parágrafo único) e tendo o negócio jurídico processual por objeto ônus, poderes, faculdades e deveres processuais disponíveis das partes, sem o malferimento de princípios e garantias fundamentais do processo num Estado Constitucional, sua aplicação não deve ser apequenada.

O objetivo nesse estudo não é o de uma análise mais profunda do instituto jurídico dos negócios processuais, ainda que algumas linhas a seu respeito se façam necessárias, mas, sim, a de tê-lo como um instrumento adequado para que as partes interessadas possam previamente disciplinar o procedimento para alegação de convenção de convenção de arbitragem (negócio jurídico processual celebrado antes do processo).

Em verdade, a própria ideia de negócio jurídico processual não é estranha à arbitragem;[15] ao revés, lhe é muito íntima. A arbitragem nasce de um negócio jurídico processual (a convenção de arbitragem, cláusula ou compromisso) e, como regra, desenvolve-se a partir da celebração de um outro negócio jurídico processual (a assinatura do Termo de Arbitragem, que moldará o procedimento arbitral). Por evidente, na arbitragem, por se tratar de jurisdição privada, o âmbito dos poderes são maiores do que os observados no processo civil, como a possibilidade de criação de deveres inclusive para os árbitros, como a fixação de prazo para prolação da sentença arbitral.

Pois bem, dito tudo isso, temos que os negócios jurídicos processuais traduzem-se num interessante instrumento posto à disposição das partes apto a resolver o problema da alegação de convenção de arbitragem.

Assim, em nosso sentir, podem as partes, quando da elaboração da cláusula arbitral, convencionar, também, como se dará o começo do processo judicial, caso porventura haja a propositura de ação perante o Poder Judiciário, em vez de dar-se início à arbitragem, ou caso venham a ser judicializadas a existência, a validade e a eficácia da aludida cláusula arbitral, prevendo que, nessas hipóteses, incumbirá à parte-ré, ab initio, apenas deduzir, em petição autônoma, a existência de convenção de arbitragem, instruindo-a obrigatoriamente com o instrumento da convenção de arbitragem (sob pena de rejeição liminar, podendo, inclusive, vir a ser considerado revel, em caso de descumprimento dessa exigência), tecendo as razões que entendesse pertinentes, repita-se, apenas e tão somente com relação à competência do juízo arbitral, sem a necessidade de adentrar o mérito, abrindo-se, então, prazo para o juiz ouvir a parte contrária apenas quanto a essa alegação de convenção de arbitragem, decidindo a questão na sequência. Prevendo, por fim, que o prazo para contestar a ação propriamente dita (= mérito) somente teria início após a intimação da decisão rejeitasse a alegação de convenção de arbitragem, pois, em caso de acolhimento, não haveria que se falar sequer em momento para contestar, com a extinção do processo sem resolução de mérito.

Trata-se, portanto, da possibilidade de resgatar o momento procedimental específico para a apreciação de existência de convenção de arbitragem, tal como inicialmente projetado na versão do NCPC aprovada na Câmara dos Deputados, pela via negocial (= negócio jurídico processual).

Deste modo, sem prejuízo da tese por José Antonio Fichtner, com a qual concordamos, evitar-se-ia, com a celebração do negócio jurídico processual, o risco que ela traz à parte de sofrer os efeitos da revelia por não ter sido contestado o mérito da ação, na hipótese de rejeição da alegação de convenção de arbitragem, ao menos até que essa possibilidade (exceção de pré-conhecimento) se consolide no entendimento jurisprudencial, especialmente com o modelo de respeito aos precedentes adotado pelo NCPC.

 

 

 

 

Autor: Thiago Rodovalho é doutorando e mestre em Direito Civil pela PUC-SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Membro da Lista de Árbitros da CAM-FIEP, do CAESP, da CARB, da CAE, CBMAE, do CEBRAMAR, e da ARBITRANET.


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