Autor: Eduardo Suessmann (*)
Conforme tem sido amplamente divulgado pela imprensa, os Estados e o Distrito Federal estão enfrentando uma grave crise financeira decorrente da deterioração das contas públicas, tendo em vista a queda na arrecadação de tributos e o aumento das despesas correntes.
Nesse contexto, no último dia 13 de abril de 2016, foi publicado o Convênio ICMS 31/2006, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que busca vincular a destinação de parte dos incentivos fiscais recebidos pelas empresas para fundos de desenvolvimento e de equilíbrio fiscal estadual e distrital, visando o desenvolvimento e a manutenção do equilíbrio das finanças públicas estaduais e distrital.
Nesse sentido, confere autorização para os Estados e o Distrito Federal condicionarem a fruição de incentivos e benefícios fiscais, financeiro-fiscais, financeiros e dos regimes especiais de apuração que resultem em redução do valor ICMS, ao depósito, pelas empresas beneficiárias, de valor equivalente a, no mínimo, 10% do respectivo incentivo ou benefício nos referidos fundos. Tal valor seria calculado mensalmente e a exigência aplicável tanto para os incentivos e benefícios fiscais já concedidos, quanto para aqueles que vierem a ser concedidos. Ainda prevê que, na hipótese de descumprimento do referido depósito por três meses, a benesse concedida pelos Estados será definitivamente cancelada.
Embora a medida ainda não tenha sido implementada na prática, já foi noticiado pela imprensa[1] que, ao menos os estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Alagoas e Santa Catarina pretendem adotá-la. Nesse contexto, tendo em vista o nítido caráter arrecadatório da aludida medida, é oportuno analisar sua compatibilidade com a legislação tributária.
Em primeiro lugar, faz-se necessário ressaltar que tal exigência não pode ser considerada uma mera condição para a outorga de isenção, pois seria incongruente sob o ponto de vista lógico. Não faz sentido que o Estado imponha como condição para conferir ao contribuinte um benefício fiscal que este retorne, indiretamente, parte deste mesmo benefício fiscal. O resultado seria a anulação parcial do incentivo.
Diante disso, resta indagar qual seria a natureza jurídica do pagamento a ser efetivado pelos contribuintes. Por se tratar de uma prestação pecuniária compulsória, em moeda, que não decorre de sanção por ato lícito, que deverá ser exigida através de lei e cobrada de forma vinculada pelos Estados e o Distrito Federal, conclui-se que todos os requisitos previstos no artigo 3º do Código Tributário Nacional[2] estão atendidos e, portanto, trata-se de um tributo.
Caracterizada a natureza jurídica de tributo, é necessário verificar se este está em linha com as disposições constitucionais e legais aplicáveis. Diante das características de tal tributo, nos parece que duas interpretações seriam possíveis: (i) trata-se de exigência de ICMS com a vinculação da arrecadação para um fundo específico ou (ii) trata-se de uma nova espécie de contribuição, calculada com base nos incentivos fiscais concedidos, com a arrecadação destinada para o fundo mencionado acima.
A segunda interpretação nos parece a mais correta. Primeiro porque o tributo em questão não tem por fundamento a atividade de circulação jurídica de mercadoria, hipótese de incidência do ICMS, mas sim o fato de o contribuinte receber um incentivo fiscal, situação que em nada se compara com o ICMS, evidentemente. Segundo porque o montante arrecadado terá destinação vinculada a um fundo específico.
No entanto, independentemente da interpretação que se considere correta, entendemos que ambas as hipóteses são inconstitucionais e não poderiam ser exigidas. Isso porque, se considerado tal tributo como um imposto com destinação específica, a inconstitucionalidade há de ser reconhecida por flagrante desrespeito ao inciso IV do artigo 167 da Constituição Federal[3], uma vez que, salvo hipóteses bem delimitadas na Constituição, a destinação da arrecadação dos impostos não pode ser vinculada.
Nesse sentido, inclusive, já decidiu o Supremo Tribunal Federal, no contexto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.529/PR[4]; declarou-se a inconstitucionalidade da Lei 13.133/2001, do Estado do Paraná, que instituiu o Programa de Incentivo à Cultura, vinculando parte da receita do ICMS ao Fundo Estadual de Cultura.
Por outro lado, se considerado tal tributo uma nova hipótese de contribuição, a inconstitucionalidade estará igualmente presente, pois exceção feita à contribuição para custeio do regime previdenciário dos servidores públicos estaduais[5], não há, na Constituição Federal, qualquer dispositivo que permita a instituição de contribuição por parte dos Estados e do Distrito Federal.
Resta claro, portanto, que embora tenha características de tributo, a cobrança prevista no Convênio em questão está em conflito direto com a Constituição Federal e não pode ser exigida.
Como um último argumento, os Estados e o Distrito Federal poderiam alegar que se trata de medida compensatória, em observância ao artigo 14, inciso II[6] da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/00). Contudo, não parece ser este o caso, pois, além de não ter sido demonstrado que o desequilíbrio das contas públicas é decorrente de benefício fiscais concedidos ou que serão concedidos pelos Estados e o Distrito Federal, a medida prevista para supostamente compensar a renúncia tributária é inconstitucional, conforme demonstrado acima.
Ainda que tais inconstitucionalidades pudessem ser desconsideradas e que se assuma que o referido tributo é legítimo, é evidente que o recolhimento de tal montante representa um aumento indireto do ICMS, tendo em vista que acaba por reduzir o benefício anteriormente concedido e, portanto, implica aumento da carga tributária do contribuinte. Nesse contexto, somente poderia ser exigido através de lei e, considerando o entendimento do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 564.225/RS[7], com observância ao princípio da anterioridade.
Oportuno ressaltar, também, a impossibilidade de cobrança nas hipóteses de incentivo fiscal concedido por prazo certo e em função de determinadas condições, pois é vedada a sua modificação, tendo em vista a ressalva expressamente contida no artigo 178 do Código Tributário Nacional[8].
Há, ainda, outras questões que precisariam ser endereçadas como, por exemplo, se tal tributo seria aplicável para as situações em que o benefício fiscal foi concedido sem a aprovação unânime do Confaz e que, a princípio, seria inconstitucional. Ao lado disso, o tema repercute na guerra fiscal entre os Estados, na medida em que é possível que certos entes optem por não exigir aludido tributo dos contribuintes. Nessa situação, é evidente que as empresas tendem a optar por realizar os seus investimentos nos Estados em que a exigência será dispensada, agravando ainda mais a disputa entre os Estados.
Diante das considerações trazidas acima, embora seja compreensível a intenção dos Estados e do Distrito Federal de buscar novas formas de arrecadação para equilibrar as contas públicas, vê-se que há questões jurídicas e econômicas que devem ser consideradas antes que a exigência prevista pelo Confaz no Convênio ICMS 31/2016 seja efetivamente imposta, sob pena de se criar uma nova disputa judicial entre o Fisco e os contribuintes que certamente será prejudicial para ambos os lados.
Autor: Eduardo Suessmann é advogado de Trench, Rossi e Watanabe Advogados, aluno do mestrado profissional da FGV Direito SP e membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da mesma instituição.