Foro privilegiado deve acabar ou ser limitado aos chefes dos Poderes

Autor: Luís Roberto Barroso (*)

 

I. Olhando para trás: as causas mais profundas da corrupção
Três disfunções atávicas e crônicas acompanham a formação social brasileira. Elas se encontram na origem de muitas de nossas vicissitudes. São difíceis de combater porque foram naturalizadas e são praticadas muitas vezes de forma inconsciente.

II.1. Patrimonialismo
O patrimonialismo vem da nossa formação ibérica, na qual não se separava adequadamente a Fazenda do rei da Fazenda do reino, num ambiente em que dinheiros e proveitos de um e outro se misturavam. O patrimonialismo consiste na renitente apropriação da esfera pública pelos interesses privados.

Exemplo 1: o nepotismo. Desde sempre o país considerou normal a indicação de parentes para cargos públicos de livre-nomeação, até que o Supremo Tribunal Federal declarou a prática inconstitucional, em fevereiro de 2006. Detalhe significativo: um Tribunal de Justiça de importante Estado da federação se habilitou como amicus curiae para defender o direito de nomear a parentada.

Exemplo 2: a Constituição brasileira de 1988 é provavelmente a única Constituição no mundo que precisou de um dispositivo específico para explicitar que os governantes não podem utilizar dinheiro público para fazer promoção pessoal (artigo 37, parágrafo 1º).

II.2. Oficialismo
A segunda disfunção é o oficialismo. Esta é a característica que faz depender do Estado, isto é, de sua bênção, ingerência e financiamento, todo e qualquer projeto relevante, econômico, social ou político.  Os subprodutos inevitáveis desse modelo são todos muito ruins: burocracia, troca de favores e corrupção pura e simples.

Exemplo 1: o país tem 23.500 cargos em comissão.

Exemplo 2:  as desonerações sem transparência e os empréstimos favorecidos aos amigos.

Exemplo 3: temos um capitalismo que não gosta nem de risco nem de competição. Vive de financiamento público, reserva de mercado e cartelização. Ou seja: não é capitalismo, mas socialismo para ricos.

II.3. Inigualitarismo
Somos herdeiros de uma sociedade escravocrata – fomos o último país do continente a abolir a escravidão –, acostumada a distinguir entre senhores e servos, brancos e negros, ricos e pobres. Fomos criados em uma cultura em que a origem social está acima do mérito ou da virtude, e na qual existem superiores e inferiores.

Exemplo: é mais fácil punir um menino de 18 anos com 100 gramas de maconha do que alguém que tenha cometido uma fraude de 10 milhões. A Justiça, entre nós, é mansa com os ricos e dura com os pobres.

Em algum lugar do futuro, vamos vencer estas três disfunções com consciência crítica e idealismo. Nada é impossível. Em uma geração,  nós derrotamos o autoritarismo e a inflação.

III. Olhando para o presente: as transformações em curso
A corrupção tem causas diversas e profundas. Algumas são associadas às disfunções que narrei no tópico anterior. Outro capítulo importante para a análise da corrupção é o custo das eleições e o financiamento eleitoral. Mas como o nosso tema não é reforma política, vou focar em outro fator de fomento à corrupção, que é a impunidade.

As pessoas na vida tomam decisões levando em conta incentivos e riscos. O baixíssimo risco de punição – na verdade, a certeza da impunidade – sempre funcionou como um incentivo à conduta criminosa de agentes públicos e privados. A superação desse quadro tem exigido mudança de legislação, de atitude e de jurisprudência.

III.1. Mudança na legislação
Ao longo dos anos, lenta mas progressivamente, a legislação foi colocando foco na criminalidade de colarinho branco. Veja-se, ilustrativamente: Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro (Lei 7.492/86); Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária (Lei 8.137/90); Agravamento da pena por Corrupção Ativa e Corrupção Passiva (Lei 10.763/2003); Lei de Lavagem e Ocultação de Bens, Direitos e Valores (Lei 9.613/98, aperfeiçoada pela Lei 12.683/2012).

Embora a possibilidade de colaboração premiada já existisse, de modo incipiente, desde a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) e tenha sido reforçada com a Lei da Lavagem referida acima, foi a Lei 12.850/2013 (“Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal”) que veio a detalhá-la melhor. Merece menção, ainda, a  chamada Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que permitiu a responsabilização objetiva de pessoas jurídicas e o chamado acordo de leniência.

III.2. Mudança de atitude
O combate à corrupção envolveu, também, uma mudança de atitude, tanto por parte da sociedade quanto de juízes e tribunais. Nesse sentido, o julgamento da Ação Penal 470 (“mensalão”) foi um marco emblemático: a sociedade demonstrou de forma ativa a sua rejeição a práticas promíscuas entre setor privado e Poder Público, historicamente presentes na vida nacional. E o Supremo Tribunal Federal foi capaz de interpretar este sentimento e quebrar o longo ciclo de aceitação social do inaceitável. Merece crédito, neste processo de mudança de atitude, a atuação do relator do caso, ministro Joaquim Barbosa.

Pois bem: a condenação efetiva de mais de duas dezenas de pessoas, entre empresários, políticos e agentes públicos, por delitos como corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta de instituição financeira etc., produziu um efeito colateral de grande importância. De fato, no escândalo seguinte, as pessoas investigadas se dispuseram a colaborar com a Justiça, em busca das benesses da colaboração premiada (redução de pena em até 2/3, substituição da prisão por medidas restritivas de direitos e perdão judicial). A operação “lava jato”, ainda em curso, conduzida no âmbito do Judiciário pelo juiz Sérgio Moro, revelou um esquema de superfaturamentos, propinas e ilícitos diversos cuja profundidade e extensão estarreceram a sociedade brasileira.

III.3. Mudanças na jurisprudência
O Direito Penal deve ser moderado, mas sério. Na formulação famosa de Cesare Beccaria, é a certeza da punição – não a exacerbação da pena – que previne o crime. Em matéria de criminalidade de colarinho branco, ao lado da pena privativa de liberdade, a pena pecuniária deve ser executada com rigor. Na execução das condenações da AP 470, já sob minha relatoria, o STF endossou duas linhas jurisprudenciais que eu estabeleci, mudando a concepção anterior: (i) para beneficiar-se da progressão de regime prisional é preciso restituir o dinheiro desviado; e (ii) igualmente, para progredir de regime prisional é preciso pagar previamente a multa a que foi condenado. Alguns milhões foram arrecadados dos réus da AP 470.

Mais recentemente, igualmente com meu apoio, o tribunal mudou sua jurisprudência para permitir a execução das decisões condenatórias após o julgamento em segundo grau de jurisdição, fechando a porta pela qual os condenados escapavam ou retardavam indefinidamente o cumprimento da pena, mediante recursos procrastinatórios.

IV. Olhando para frente: é preciso acabar com o foro privilegiado
O foro por prerrogativa de função, apelidado de foro privilegiado, é um mal para o Supremo Tribunal Federal e para o país. É preciso acabar com ele ou reservá-lo a um número mínimo de autoridades, como os chefes de Poder. Há três ordens de razões que justificam sua eliminação ou redução drástica:

Razões filosóficas: trata-se de uma reminiscência aristocrática, não republicana, que dá privilégio a alguns, sem um fundamento razoável;

Razões estruturais: Cortes constitucionais, como o STF, não foram concebidas para funcionarem como juízos criminais de 1º grau, nem têm estrutura para isso. O julgamento da AP 470 ocupou o tribunal por um ano e meio, em 69 sessões;

Razões de justiça: o foro por prerrogativa é causa frequente de impunidade, porque é demorado e permite a manipulação da jurisdição do Tribunal[1].

Alguns dados estatísticos sobre o foro privilegiado[2]:

(i) tramitam no STF, atualmente, 369 inquéritos e 102 ações penais contra parlamentares;

(ii) o prazo médio para recebimento de uma denúncia pelo STF é de 617 dias (um juiz de 1º grau recebe, como regra, em menos de uma semana, porque o procedimento é muito mais simples)[3]; e

(iii) desde que o STF começou a julgar efetivamente ações penais (a partir da EC 35/2001, que deixou de condicionar ações contra parlamentares à autorização da casa legislativa), já ocorreram 59 casos de prescrição, entre inquéritos e ações penais.

Minha proposta nessa matéria: criar uma vara federal especializada no Distrito Federal, para julgar os casos que hoje desfrutam de foro privilegiado. O juiz titular seria escolhido pelo STF e teria um mandato de quatro anos, ao final dos quais seria automaticamente promovido para o 2º grau. Teria tantos juízes auxiliares quantos necessários, mas seria um único titular para dar unidade aos critérios de decisão. De suas sentenças caberia recurso para o STF ou para o STJ, conforme a autoridade.

V. Conclusão
O enfrentamento da corrupção e da impunidade produzirá uma transformação cultural importante no Brasil: a valorização dos bons em lugar dos espertos. Quem tiver talento para produzir uma inovação relevante capaz de baixar custos vai ser mais importante do que quem conhece a autoridade administrativa que paga qualquer preço, desde que receba vantagem[4]. Esta talvez seja uma das maiores conquistas que virá de um novo paradigma de decência e seriedade.

[1] Exemplo: um governador de Estado está sob investigação. O foro competente para julgá-lo é o Superior Tribunal de Justiça. No curso da investigação, ele se desincompatiliza para candidatar-se a deputado federal. Como não é mais governador, o inquérito baixa para a 1ª instância. Se ele se elege deputado, a competência sobe para o STF. Dois anos depois, ele se afasta para se candidatar a prefeito e a competência deixa de ser do STF. No limite, às vésperas do julgamento pelo STF, ele renuncia. Aí, a competência volta para o 1º grau. O sistema é feito para não funcionar.

[2] Os dados foram fornecidospela Assessoria de Gestão Estratégica do Supremo Tribunal Federal.

[3] No caso específico da denúncia contra o presidente da Câmara dos Deputados, único investigado da “lava jato” cuja competência é do Plenário, as datas foram as seguintes: denúncia apresentada em 20.08.2015 e aditada em 14.10.2015. Foi recebida em 3.03.2016. Se contarmos da data do aditamento, passaram-se cerca de seis meses.

[4] Sobre este ponto, denunciando o círculo vicioso que premia os piores, v. Míriam Leitão, História do Futuro, 2015, p. 177-78.

 

 

 

 

Autor: Luís Roberto Barroso  é ministro do Supremo Tribunal Federal, professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor visitante do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).


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