Autores: Francisco Sannini Neto e Henrique Hoffmann Monteiro de Castro (*)
É indene de dúvidas que o ordenamento jurídico pátrio adotou o sistema processual penal acusatório, que outorga a atores distintos as funções de investigar, acusar, defender e julgar. Nessa vereda, assume especial relevo num Estado Democrático de Direito a investigação criminal levada adiante pela Polícia Judiciária. Cuida-se da instituição com maior aptidão a levar adiante a apuração criminal, sem desconsiderar a admissibilidade excepcional de investigação preliminar por outros órgãos estatais.
Com efeito, o delegado de polícia é a autoridade vocacionada a conduzir a fase investigativa (artigo 144 da CF) e responsável por presidir com exclusividade e discricionariedade o inquérito policial (artigo 2º, parágrafo 1º da Lei 12.830/13). Constatação esta chancelada pela Corte Suprema[1], que afasta a possibilidade de qualquer outra autoridade comandar o procedimento policial.
A outorga constitucional e legal de protagonismo na investigação penal à Polícia Judiciária ganha sentido ao se perceber que se qualifica como órgão desvinculado da acusação e da defesa, possuindo compromisso voltado à apuração da verdade[2], o que repele um suposto caráter unidirecional[3]. Seu primeiro benefício não é perseguir o criminoso, mas proteger o inculpado[4]. Aliás, não por acaso o inquérito policial é presidido pelo delegado de polícia, que tem o dever de atuar como um assegurador de direitos, ora da sociedade (quando decreta a prisão em flagrante de uma pessoa, por exemplo), ora do próprio investigado (garantindo todos os seus direitos constitucionais).
Ademais, o fato de a Polícia Judiciária estar posicionada topograficamente no capítulo da Constituição que trata da segurança pública não impede o seu reconhecimento como função essencial à justiça[5]. Daí a proclamação dos Tribunais Superiores no sentido de que o delegado de polícia age stricto sensu em nome do Estado[6], integrando carreira jurídica[7].
Assim, a finalidade do procedimento preliminar não deve ser vislumbrada sob a ótica exclusiva da preparação do processo penal, mas principalmente à luz de uma barreira contra acusações infundadas e temerárias[8], além de um mecanismo salvaguarda da sociedade, assegurando a paz e a tranquilidade sociais[9].
Essa investigação preliminar deve ser feita com forte respeito aos direitos fundamentais estampados na Constituição da República, evitando ao mesmo tempo o excesso punitivo contra o investigado e a proteção insuficiente da sociedade[10], daí porque a chamamos de devida investigação criminal constitucional[11]. Isso significa que a investigação criminal deve desenvolver-se com a observância dos valores e princípios constitucionais, buscando o necessário equilíbrio entre garantismo e efetividade na primeira fase da persecutio criminis.
Não se discute que o inquérito policial repercute nos bens jurídicos mais caros ao cidadão, a saber, liberdade, patrimônio e intimidade, retirando o eue suas circunstâncias[12]. Não faria sentido algum conferir à autoridade de Polícia Judiciária tamanho poder decisório se tivesse receio de decidir conforme sua consciência, embasado no ordenamento jurídico.
A independência funcional afasta a hierarquia funcional entre integrantes da carreira de delegado de polícia, que se limita ao aspecto administrativo, em nada afetando o controle interno perante a Corregedoria de Polícia na fiscalização do respeito ao ordenamento jurídico (sem adentrar no mérito das decisões).
E tampouco prejudica o controle externo do Ministério Público, cujo dever de fiscalização restringe-se à atividade-fim da Polícia Judiciária, sem importar em qualquer hierarquia funcional entre as importantes carreiras.
Fácil notar que a independência funcional não prejudica, mas facilita o controle dos atos de polícia judiciária, pois a exigência de manifestações motivadas consubstancia-se em fator de incremento da transparência, inibindo interesses velados. Nesse passo:
Importante observar que as divergências entre convicções jurídicas de cada operador do direito (…) em nada prejudicam a regularidade da persecução criminal. Ao invés disso, enriquecem o debate jurídico, legitimando a decisão judicial e tornando o processo mais robusto e fundamentado[13].
Nessa linha de raciocínio, não há diferenças entre o status das convicções jurídicas dos operadores do direito, que possuem igual formação jurídica, sendo elas manifestadas no mesmo patamar, e apenas em momentos distintos[14]. Ora, assim como o Ministério Público é o titular da ação penal, o delegado de polícia é o titular do inquérito policial, devendo conduzi-lo com discricionariedade na busca pela verdade possível acerca dos fatos apurados, exarando decisões de acordo com o seu convencimento jurídico e nos termos da sua opinio delicti.
Exatamente por isso as Cortes Superiores rechaçam a requisição de indiciamento, devendo o delegado de polícia privilegiar sua análise técnico-jurídica em detrimento da posição de qualquer outra autoridade[15].
Nesse diapasão, a autoridade policial deve conta de seus atos tão somente à Constituição, às leis e à sua consciência, interditando-se a qualquer outro agente público a expedição de ordens a respeito de como agir nos casos em que oficia, desde que, por óbvio, suas decisões estejam devidamente fundamentadas.
A doutrina corrobora esse raciocínio:
A autoridade policial, munida do poder discricionário na condução da investigação, só deve satisfações à lei. (…) A condição de autoridade que reveste o cargo de delegado, faz com que aja com completa independência na condução da investigação policial, desautorizando qualquer determinação que seja contrária à sua convicção[16].
O livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia deriva do fato de o inquérito policial ser um procedimento discricionário (CPP, art. 14). A isenção e imparcialidade, por sua vez, são consectários lógicos dos princípios da impessoalidade e moralidade, previstos expressamente no art. 37, caput da Constituição Federal[17].
O modelo de investigação “inquérito policial” implica não apenas o domínio fático da investigação pela polícia, como, também, a autonomia plena dos atos investigativos, sem que, necessariamente, o Ministério Público a priori se manifeste sobre esses atos. Da mesma maneira, para os atos que não impliquem necessária invasão em direitos fundamentais, também não se cogita de qualquer interferência judicial[18].
O legislador caminha no mesmo rumo, tendo registrado sua posição por ocasião da edição da Lei 12.830/13:
O delegado de polícia não é um mero aplicador da lei, mas um operador do direito, que faz análise dos fatos apresentados e das normas vigentes, para então extrair as circunstâncias que lhe permitam agir dentro da lei. (…) A atividade do delegado de polícia, por lidar diretamente com a proteção de direitos individuais especialmente tutelados pelo Estado, demanda profissionais qualificados[19].
Para que a condução dos trabalhos de investigação possa ser realizada com a eficiência que a sociedade clama, faz-se necessária a garantia de autonomia na investigação criminal. (…) Com tais medidas, a investigação ganhará em agilidade, qualidade e imparcialidade, pois o Delegado de Polícia não sofrerá interferências escusas na condução do inquérito policial ou do termo circunstanciado[20].
No mesmo sentido vaticinou a Corte Suprema:
Inquestionável reconhecer (…) que assume significativo relevo o indiciamento no modelo que rege, em nosso País, o sistema de investigação penal pela Polícia Judiciária, considerada a circunstância — juridicamente expressiva — de que o indiciamento, que não se reduz à condição de ato estatal meramente discricionário, supõe, para legitimar-se em face do ordenamento positivo, a formulação, pela autoridade policial (e por esta apenas), de um juízo de valor fundado na existência de elementos indiciários idôneos que deem suporte à suspeita de autoria ou de participação do agente na prática delituosa[21].
Percebe-se, assim, a importância de se garantir a independência funcional do delegado de polícia nos autos do procedimento policial, pois, do contrário, não teria sentido a existência da própria Polícia Judiciária como instituição isenta e imparcial, sem qualquer interesse no processo que eventualmente possa se instaurar.
Nesse panorama, não é de se estranhar o alerta feito pelo pai do garantismo penal[22], seguido por doutrina de peso[23], no sentido de que a Polícia Judiciária tem que ser “separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender”.
Não por outra razão diversas constituições estatuais (a exemplo do Espírito Santo, São Paulo, Tocantins e Santa Catarina) consagram de maneira expressa a independência funcional do delegado de polícia, prerrogativa que também merece albergue na Constituição Federal.
A função investigatória demanda generosas doses de imparcialidade, serenidade e respeito à dignidade da pessoa humana. O delegado de polícia se sobressai como a primeira autoridade estatal a preservar os direitos fundamentais, não só das vítimas, mas também dos próprios investigados. Nessa perspectiva:
A independência funcional do Delegado de polícia, mais do que uma prerrogativa do cargo, traduz uma segurança do cidadão, no sentido de que não será investigado por influência política, social econômica ou de qualquer outra natureza, sendo tratado sem discriminações benéficas ou detrimentosas[24].
Amputar a liberdade funcional da autoridade policial equivale a retirar do cidadão a certeza de que será investigado por autoridade independente. Resta saber a quem interessa atacar a prerrogativa da independência funcional do delegado de polícia e enfraquecer a Polícia Judiciária, ferindo de morte o republicanismo ao inverter a lógica democrática e a tratando como órgão de governo, e não de Estado.
Autores: Francisco Sannini Neto é delegado de polícia do Estado de São Paulo, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. É professor da Graduação e da Pós-graduação da UNISAL/Lorena.
Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.