É hora de superar a contraposição entre estatais e empresas privadas

Autor: Floriano de Azevedo Marques Neto (*)

 

Superar o nosso legado patrimonialista é um dos grandes desafios brasileiros. Afinal, o Brasil surge, e permanece por mais de três séculos, como uma grande propriedade da Coroa Portuguesa. Surgimos como patrimônio real e constituímos nossa sociedade marcados pela cultura de apropriação privada dos bens comuns.

Lentamente vamos caminhando para superar o legado patrimonialista, exposto por Raimundo Faoro no clássico Os Donos do Poder. Recentemente, explicado pelo legado patrimonialista, vem enfrentando alguns esforços revisionistas. Destaque merece a crítica de Jessé de Souza em livro recém publicado (A Tolice da Inteligência Brasileira, 2015). A tese ali desenvolvida é que a crítica ao patrimonialismo teria como consequência a demonização do Estado, esterilizando os vícios do mercado. A tentativa merece um artigo específico. Mas esse debate voltou à mente diante de duas notícias recentemente veiculadas. De um lado a crítica “de esquerda” à mudança legislativa para a desobrigação da Petrobras como operadora necessária em todos os campos do pré-sal. De outro, a notícia de que a gestão de recursos humanos da Petrobras a partir de 2007 gerou um passivo trabalhista da ordem de R$ 30 bilhões.

No debate sobre a atuação da Petrobras no pré-sal o projeto de lei aprovado pelo Senado retira a obrigatoriedade de que a petroleira estatal seja a operadora necessária de todos os campos de exploração de óleo e gás situados no pré-sal. Tal como está a lei hoje, ou se tem a Petrobras como operadora obrigatória (em regime de partilha, associada a outras petroleiras ou não) de todas as reservas, ou simplesmente a riqueza do pré-sal não será explorada. Ocorre que não é economicamente viável uma única operadora explorar todas aquelas reservas, inclusive pelos riscos e investimentos associados. Na atual conjuntura, com alto endividamento, a Petrobras se tornou um entrave para exploração daquelas reservas, mesmo que o preço do barril voltasse aos patamares de três ou quatro anos atrás.

Os críticos da mudança alegam que o interesse público só será consagrado se aquela riqueza econômica do subsolo for explorado por um ente estatal. O raciocínio aqui se baseia, de boa fé, na crença de que o ente estatal é o veículo puro do interesse de toda a coletividade, em última instância os donos anônimos do patrimônio público. Desconte-se aqui o fato de que a União detém menos da metade do capital total da Petrobras, estando o restante na mão de investidores privados, muitos dos quais estrangeiros.

A notícia do passivo trabalhista põe luz em outro aspecto. Informa que passivo trabalhista monumental (os valores escriturados como contingência trabalhista teria que nos últimos anos teria saltado de R$500 milhões para R$14 bilhões entre 2006 e 2014) se deve à política de Recursos Humanos adotada pelos gestores ligados ao movimento sindical petroleiro. Segundo a notícia, em 2007 a Petrobras teria estendido o adicional de periculosidade (até então pago àqueles trabalhadores submetidos a risco, como é regra) a todos os seus empregados independentemente de desempenharem atividade de risco. Ou seja, passaram a fazer jus ao adicional tanto os que operam sondas em plataformas em alto-mar, como funcionários que só operam a máquina de extração de cópias no ar condicionado da Rua Chile. Ocorre que, uma vez universalizado o benefício salarial, os empregados efetivamente engajados em atividades perigosas passaram a postular, com razão, um adicional que distinga sua remuneração daquela paga aos demais, como manda a lei. A vitória destes trabalhadores, tida como certa, pode causar, só ela, um impacto da ordem de R$20 bilhões. Outras concessões semelhantes foram feitas, acatando-se todas as demandas históricas dos sindicatos. Legítimas ou não, isso pressionou brutalmente o caixa da Estatal.

Uma estatal não é portadora de vícios ou de virtudes por si. Contudo não é correto dizer que a exploração de uma atividade econômica por um ente estatal seja também garantia do interesse público. E não me refiro aqui à corrupção ou apropriação política dos recursos das estatais. O Estado nada mais é que uma ficção jurídica. O Estado, e por conseguinte os entes estatais, nada mais são do que um conjunto de direitos (prerrogativas) e obrigações (deveres perante os cidadãos) previstos na ordem jurídica, a partir da Constituição.

O modo e os instrumentos por meio dos quais maneja estas prerrogativas para assegurar tais direitos devem ser moldados visando a maior efetividade e eficácia. Pode-se consagrar direitos mediante simples poder coercitivo, recrutando servidores, servindo-se de empresas privadas, delegando ao mercado sob regulação, atribuindo ao terceiro setor, usando mecanismos de fomento.

Montar estruturas estatais (empresas, autarquias) é, por vezes, necessário e eficiente. Mas nem é sempre conveniente, nem é garantia de que o coletivo estaria automaticamente consagrado. Um ente estatal pode ser capturado pelos interesses subalternos do mercado, como ocorre na corrupção. Pode ser apropriado pelos atores políticos, como é exemplo o nepotismo ou o populismo. Ou ainda pode ser capturado pelos interesses particularísticos dos seus empregados ou colaboradores, como ocorre no corporativismo. São todas formas de patrimonialismo. Em comum, há nelas apropriação do interesse geral pelos interesses pessoais ou grupais.

Defender que a exploração dos hidrocarbonetos do nosso subsolo, no pré ou pós sal, reverta para os brasileiros é absolutamente necessário. Dizer que isso só é possível se for feito por meio de uma empresa estatal, ainda que seja a Petrobras, não é sustentável. O que não significa advogar pela extinção ou alienação de todas as estatais, longe disso. Mas há inúmeras maneiras de se consagrar o interesse coletivo sem aumentar a máquina estatal. Aumentar a produção e garantir que a União se aproprie do excedente e os Estados e Municípios recebam royalties é de interesse público. Aumentar os bônus dos funcionários de uma estatal não é necessariamente de interesse público.

É mais do que hora de superar a contraposição entre estatais e empresas privadas. Ambas podem ser veículos de efetivação dos valores públicos. E ambas podem ser o paraíso dos interesses mesquinhos. Só não dá para aceitar que mantras ideológicos sirvam para esconder os verdadeiros interesses que movem as ideologias.

 

 

 

Autor: Floriano de Azevedo Marques Neto é advogado e sócio do Manesco, Ramirez, Perez, Azevedo Marques Advogados. Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo


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