Autor: Allan Titonelli (*)
No Brasil, anualmente, perdemos em torno de 10% do PIB com a sonegação, o que corresponderia a R$ 518,2 bilhões levando em conta o PIB de 2014, segundo estudos do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) [1]. Se não houvesse percentual tão alto de sonegação poderíamos ter uma carga tributária menor e até mesmo enfrentar a presente crise de forma mais eficaz.
Somente uma participação cidadã mais ativa poderá criar um envolvimento necessário para enfrentar o presente problema. Entre os direitos e devedores do cidadão podemos ressaltar a doutrina sobre o dever fundamental de pagar tributo, que tem contribuição pioneira de José Casalta Nabais, defensor de deveres do cidadão perante o Estado, os quais conduzem à existência de uma cidadania fiscal atrelada à concretização da solidariedade[2]:
“Noutros termos, o imposto não pode ser encarado, nem como um mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado.”
O exercício pleno da cidadania pressuporia cumprir com os deveres, para assim os direitos serem respeitados. Entretanto, desde o absolutismo Europeu a noção de Estado sofreu tantas alterações e mudanças, passando pela Revolução Francesa, que os direitos dos cidadãos se tornaram fundamentos da democracia, hoje, inclusive, muitas vezes o conceito de cidadania e democracia se confundem. Recorde-se, nesse pormenor, das palavras de Ulisses Guimarães, ao promulgar a Constituição de 1988, chamando-a de cidadã, quando o termo também poderia ser substituído por “Constituição Democrática” sem modificar seu objetivo.
A garantia dos direitos ao cidadão tornou-se tão fundamental que a Constituição de 1988 incluiu-a entre as cláusulas pétreas (artigo 60, §4°, IV), o que acabou gerando, incongruentemente, um comportamento social de afastamento do cidadão no cumprimento dos seus deveres.
Entre os deveres pode-se citar aqueles ligados à participação política, que infelizmente somente são lembrados quando da realização das eleições. A prática política tem sido relegada a poucos, uma vez que os cidadãos em geral estão proclamando uma saturação com as ações ligadas ao modo de exercê-las. A conduta de prostração tem sido associada ao fato de correlacionarem o exercício da política à corrupção. Nada obstante, a generalização desse conceito pode estar ligada à falta do exercício de uma cidadania mais ativa do que com a realidade cotidiana. Vale comparar a presente conduta com a adjetivação “idiota” em seu conceito originário, cuja palavra advém do grego idiotes, que se referia ao homem privado, o qual não tomava partido das questões afetas à sociedade e do coletivo, aquele que se apresentava egoísta ou individualista.
Isaiah Berlin retrata esse conflito tendo como enfoque modelos de liberdade[3]:
“O perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no poder social, os homens não se preocupassem com os direitos e garantias individuais.
O perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político.”
Renato Janine Ribeiro faz uma metáfora entre o trânsito e nossas condutas sociais para explicar antropologicamente a questão[4]:
“É possível dizer que, entre nós, a lei tinha — e infelizmente conserva — um papel indicativo, mais que normativo: ela funcionava como um ideal que gostaríamos de ver aplicado, mas com o qual nosso compromisso era frouxo. Ou talvez: a lei deveria aplicar-se aos outros, não a nós. (…) O mesmo vale para o trânsito: sempre esperamos que os demais motoristas cumpram as leis, quando estas nos beneficiam, mas muitos se recusam à necessária reciprocidade, desobedecendo ao Código quando isso lhes pode conferir alguma vantagem, mínima que seja, como alguns meros segundos.”
O individualismo em confronto com o coletivo é um tema recorrente desde os primórdios da vida em sociedade. Para Hobbes o individualismo seria uma característica inata ao ser humano, então como vencer esse egoísmo para construir-se uma convivência coletiva harmônica?
Enfrenta-se esse paradigma com o propósito de apresentar propostas para superar a dicotomia da conduta do cidadão de, ao mesmo tempo que cobra do Estado a prestação dos serviços (direitos), deixar de cumprir com o dever básico de contribuir, configurando a prática sonegadora.
Resgata-se o texto de Renato Janine Ribeiro para aplicar um arquétipo ético que deveria servir como um padrão de conduta[5]:
“Dificilmente poderíamos enunciar hoje uma ética sem partir da proposta de Kant: que os atos de cada sujeito, em matéria ética, sejam o que exprime seus valores; que cada um se responsabilize por suas ações e que delas se extraiam todas as consequências. Ora, é exatamente esse caráter recíproco dos direitos e deveres que ainda faz falta na sociedade brasileira. A célebre frase — “para os amigos, tudo, para os inimigos a lei” — e variações em torno dela deixam clara essa posição. (…) Em suma, há séculos que na Inglaterra a lei é patrimônioda sociedade, enquanto para nós ela parece um ônus a pesar sobre os indivíduos menos afortunados; lá, ela é uma promessa, aqui, uma ameaça; lá, ela é bem, um ativo, umasset; aqui, corre o risco de criar liabilities, de ser um empecilho, um estorvo.”
A citação a Immanuel Kant feita por Janine busca extrair os conceitos lançados pelo pensador sobre o imperativo categórico, que em síntese pode-se afirmar como normas de condutas que deveriam respeitar três fórmulas: “Procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se torne em lei universal.”; “Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio.”; “agir somente segundo uma máxima tal que a vontade possa, mercê de sua máxima, considerar-se como promulgadora de uma legislação universal.”[6]
Esse agir, segundo essas normas universais, contribuiria para o cidadão pensar mais coletivamente. Da mesma forma, a educação enquanto forma corretiva para o cidadão se adequar à vida em sociedade é um dos elementos da doutrina de Émile Durkheim.
A partir desse princípio educacional, que inclui deveres de transparência e de cidadania, deveria se formar a interação entre o Estado e o Cidadão para esclarecer o verdadeiro papel da tributação e a nocividade da sonegação, pois quando todo mundo paga, todos acabam pagando menos.
É bem verdade que algumas iniciativas nesse sentido já pavimentaram caminhos, como a lei da transparência, a informação da tributação nos produtos e serviços, a nota legal e outras medidas já colaboram para aclarar o convencimento. Há mais propostas que podem ser realizadas em complemento, como o constrangimento público de uma listagem contendo todos os sonegadores, o que possibilitará ao contribuinte cobrar uma maior responsabilidade social dos setores sonegadores. Nesse sentido, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) acaba de disponibilizar uma nova listagem de devedores em seu site, onde, entre as justificativas traçadas, explora justamente a temática aqui abordada, assim[7]:
“Já está disponível no site da PGFN nova versão da lista de devedores. Houve várias alterações em relação ao sistema anterior, como a inclusão dos devedores de FGTS, a possibilidade de consulta dos devedores por Estado, Município e atividade econômica, bem como a inclusão de novas faixas de valor. Agora é possível, por exemplo, identificar os devedores de FGTS do município de Sorocaba-SP que atuam no setor de construção de edifícios.
A inclusão do filtro de faixa de valor acima de R$ 1 bilhão aponta os maiores devedores da União e do FGTS, revelando o terrível impacto que causam às finanças públicas e à sociedade como um todo.
Cobrança indireta e controle social
A Lista de Devedores funciona como um mecanismo de cobrança indireta dos débitos com a União e o FGTS. A exposição da empresa numa lista pública de devedores prejudica sua imagem junto aos consumidores, motivando o empresário a regularizar sua situação perante a Fazenda Nacional, seja através de um parcelamento ou do pagamento à vista.
Além disso, a divulgação dos devedores impulsiona o controle social e o consumo consciente, permitindo ao cidadão optar por adquirir bens ou serviços de empresas que cumprem suas obrigações trabalhistas e fiscais.
Violação à livre concorrência
A inclusão do filtro “CNAE” (Classificação Nacional de Atividade Econômica) revela algo pouco abordado no Brasil, que é o prejuízo que a sonegação fiscal causa à livre concorrência. Em setores de acirrada concorrência, como a indústria de fabricação de automóveis, a presença de empresas com débitos de centenas de milhões de reais prejudica todo o mercado, uma vez que passam a gozar de uma vantagem sobre os concorrentes baseada num ato ilícito.
Ressalta-se que não estão incluídos na lista débitos parcelados ou cuja exigibilidade esteja suspensa por decisão judicial.”
De toda forma, o ideal seria formatar um plano governamental para uma grande campanha de educação fiscal, onde poderia ser trabalhado muitas variantes do mesmo problema. No mesmo sentido, o Sinprofaz, quando presidido pelo presente autor, lançou em 2013 campanha chamada sonegômetro, que tem como mote justamente esse debate qualificado.
Criar mecanismos que promovam uma maior participação do cidadão em relação à tributação como o “orçamento participativo” (com a definição de quem vai pagar a conta ou como será aplicado o dinheiro arrecadado) contribui para disseminar uma cidadania mais integrada, exercendo papel político de cogestor da coisa pública, comportamento esperado no Estado Democrático de Direito.
Tomando como referência estimular ações voltadas para a cidadania, que é um dos objetivos fundamentais da República (artigo 1º, § 2º, da CF/88), a instituição de uma recompensa a quem identificar práticas sonegadoras seria uma medida interessante, ajudando a difundir os deveres de todos perante o Estado e a coletividade, o que contribui para gerar uma noção cidadã de que todos devem zelar pela coisa pública.
O pagamento de recompensa a quem contribuir para o esclarecimento de ilícitos é uma praxe antiga nos países da common law. Nos EUA a recompensa é paga se o cidadão comprovar através de ação judicial a ocorrência da prática fraudulenta, em que o governo pode aderir. A medida é fruto de iniciativas para impedir fraudes.
Ainda explorando propostas no campo das recompensas, com o intuito de propagar a cidadania e tornar menos negativa a tributação, a instituição de desconto para o pagamento de todas as modalidades de tributo seria uma forma de tornar mais atrativa essa relação entre o poder do Estado e o dever do cidadão.
A necessidade de tornar a tributação mais atrativa tem feito parte de estudos sobre a racionalidade e sustentabilidade da tributação. Há evidências que a adstringência do Estado aos propósitos estritamente fiscais/arrecadatórios tem aumentado a resistência à tributação. Em compensação medidas que promovam o desenvolvimento econômico em equilíbrio com a preservação do meio ambiente ou outra causa alternativa, tem gerado cada vez mais aceitação perante a sociedade. Esse conceito de intervenção do Estado na economia respeitando um desenvolvimento sustentável está inserido no artigo 170, III e VI combinado com artigo 225, da Constituição Federal de 1988.
Observa-se uma tendência de mitigação da finalidade estritamente fiscal do tributo, como mecanismo de arrecadação para manutenção do Estado, em substituição a uma influência maior da extrafiscalidade como forma de tributação.
A extrafiscalidade do tributo desnatura o caráter eminentemente arrecadatório, constituindo em hipótese que privilegia os fins sociais a que se destinam os interesses da coletividade, pretendendo financiar, promover ou coibir certas atividades, o que tem gerado melhor aceitação, provocando menor resistência.
Para implementar o desiderato aqui tratado pode-se utilizar de algumas das metodologias da matriz de negociação, demonstrando as perspectivas de ganhos mútuos (ganha-ganha) com as soluções apresentadas. Seja pelo fato de que quando todo mundo paga, todos acabam pagando menos, quanto pela possibilidade de diminuir a carga tributária se a sonegação se tonar menor, uma vez que mais recursos estarão disponíveis para o Estado. Até porque a sonegação é mais prejudicial aos menos favorecidos, pois o topo da pirâmide econômica é responsável pela maior parte da sonegação no país, onde dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional revelam que os 500 maiores devedores (os quais estão no topo da pirâmide de concentração de renda, estando entre eles doleiros e proeminentes empresários) acumulam 37% de tudo o que a União espera receber[8]. Ante ao exposto, é preciso que a sociedade rompa com a atual cultura leniente, pois conforme os ensinamentos de Confúcio “O sábio envergonha-se dos seus defeitos, mas não se envergonha de os corrigir.”
Autor: Allan Titonelli é procurador da Fazenda Nacional, membro da Comissão Nacional da Advocacia Pública do CFOAB, ex-presidente do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.