Pagamentos heterogêneos de planos de saúde e contribuição previdenciária

Autores: Roberto Ricomini Piccelli e Marcos Tranchesi Ortiz (*)

 

A isenção de contribuição para a assistência médica
Como as ações do poder público em prol do direito à saúde são custeadas com recursos da seguridade social, o legislador houve por bem tornar isento de contribuição previdenciária os valores destinados pelas empresas ao fornecimento de assistência médica e odontológica a seus colaboradores. Quanto mais pessoas cobertas por planos de saúde, menos gente no Sistema Único de Saúde. Tributar a cobertura médica, portanto, parece uma má ideia do ponto de vista de política fiscal.

Desde uma perspectiva estritamente técnica, é discutível também se o oferecimento de assistência de saúde aos empregados e diretores caracteriza remuneração, como seria pressuposto para a incidência da contribuição previdenciária sobre as despesas incorridas pela empresa a esse título.

Seja como for, a isenção está disciplinada na Lei 8.212/91, que estabelece uma única condição: a cobertura da assistência médica (ou odontológica) deve alcançar todos os empregados e dirigentes. A redação do artigo 28, parágrafo 9º, q, não poderia ser mais clara:

“§ 9º Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente:

q) o valor relativo à assistência prestada por serviço médico ou odontológico, próprio da empresa ou por ela conveniado, inclusive o reembolso de despesas com medicamentos, óculos, aparelhos ortopédicos, despesas médico-hospitalares e outras similares,desde que a cobertura abranja a totalidade dos empregados e dirigentes da empresa”.

O propósito para que a vantagem fiscal esteja condicionada à universalidade da assistência parece óbvio. Terá pretendido o legislador ampliar o rol dos beneficiários da assistência médica patrocinada pelas empresas, o que, por consequência, gera uma economia ainda mais significativa para o sistema público. Enfim, trata-se de um instrumento extrafiscal de que se serviu a União para estimular os empregadores a investirem na saúde dos seus empregados e dirigentes.

A isenção, portanto, é interessante, e a própria condição para que seja fruída parece bastante razoável. A norma, por melhor que seja, porém, sempre enseja dificuldades na sua aplicação caso a caso.

O Acórdão 9202-003.846 do Carf e a fundamentação contraditória
Assim é que chegou recentemente à Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf o caso de uma empresa que custeava a assistência à saúde para todo o seu quadro, mas que contemplava um dirigente com plano de categoria superior àquela assegurada aos demais. A empresa foi autuada por ter descontado o valor da despesa mensal da base de cálculo da contribuição previdenciária. Teria supostamente descumprido a condição prevista na parte final da alínea “q” do artigo 28, parágrafo 9º, da Lei 8.212/91.

Por unanimidade, decidiu-se pelo afastamento da isenção:

Contribuições Sociais. Previdenciárias. Período de apuração: 01/01/2007 a 31/12/2008. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. DIVERSIDADE DE PLANOS E COBERTURAS. Os valores relativos a assistência médica integram o salário-de-contribuição, quando os planos e as coberturas não são igualitários para todos os segurados. DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PRINCIPAIS E ACESSÓRIAS. APLICAÇÃO DE PENALIDADE. RETROATIVIDADE

A relatora do recurso especial fundamentou o seu voto no artigo 111, II, do Código Tributário Nacional, que predica a interpretação literal para a legislação concessiva de isenção. Como a verba não era destinada de forma equivalente a todos os empregados e dirigentes, estaria descumprido o requisito legal, se lido em sua literalidade.

Ao contrário do que constou da fundamentação do voto condutor, no entanto, o pagamento de diferentes planos de saúde para os colaboradores, pela letra do artigo 28, parágrafo 9º, “q”, da Lei 8.212/91, não redunda na perda do direito à isenção. A única condição ali interposta para que a assistência médica não integre o salário de contribuição é que todos os empregados e dirigentes sejam contemplados. Nada há que determine que sejam usuários do mesmo nível de assistência.

Na essência, o argumento do acórdão não invoca, portanto, a literalidade do dispositivo, mas a sua teleologia. Segundo o raciocínio que guiou a turma julgadora, a norma, ao exigir a universalidade, tinha em vista a isonomia também quanto à extensão do benefício. Seria, aliás, uma linha aceitável do ponto de vista argumentativo, mas fatalmente conflitante com o mesmo artigo 111, II, do Código Tributário Nacional.

Uma solução literal para o caso não poderia, pois, alijar da isenção a empresa que paga assistência médica a todos os seus empregados e dirigentes, mesmo quando nem todos são contemplados com planos de igual categoria.

Subsidiariamente: a base de cálculo do tributo
A disparidade na cobertura dos colaboradores até pode ser um problema em um caso-limite. Em tese, afinal, é possível que grandes discrepâncias nos valores dos planos de saúde estejam a indicar um propósito fraudulento por parte da empresa. Para excluir do salário de contribuição o auxílio médico a um grupo de profissionais, a empresa poderia dedicar a alguns menos prestigiados na estrutura interna um plano de fachada apenas para fruir da isenção prevista no artigo 28, parágrafo 9º, “q”, da Lei 8.212/91. Se ficar claro o propósito fraudulento desse tratamento diferenciado a alguns dirigentes ou empregados, a isenção perde a razão de ser.

Façamos agora uma abstração. Vamos admitir que a abrangência da regra isentiva fosse determinável a partir de uma interpretação teleológica do seu enunciado, tal qual se demonstrou ter ocorrido no comentado Acórdão 9202-003.846, da CSRF.

Ora, o julgado partiu do pressuposto teórico de que a isenção se subordina não apenas a que a empresa ofereça assistência à saúde para todos, mas, além disso, a que a qualidade do serviço disponível seja a mesma, sem distinção. Descumpririam a condição legal tanto a empresa que contrata plano de saúde em favor de alguns de seus colaboradores, como aquela outra que, embora custeie o serviço para todos, mantém mais de uma categoria de atendimento.

Por coerência com a premissa, parece-nos que nesta última hipótese — isto é, em que a inobservância reside na diferenciação da qualidade do serviço — a contribuição somente poderia recair sobre a parcela do custo que distingue os planos de categoria superior dos demais. Noutras palavras, a isenção operaria até o limite da homogeneidade do custo. Consequentemente, apenas as diferenças seriam acrescidas à base de cálculo do tributo.

Essa solução — novamente observada a premissa de que parte o decisum — seguramente manteria correspondência mais estreita com a natureza da verba patrocinada pela empregadora. Não há dúvida, afinal, de que, se o custeio de planos de assistência à saúde reveste natureza remuneratória, este caráter se evidencia mais marcante quanto à parcela da despesa que diferencia planos de qualidades distintas. O aspecto contraprestacional do sobrepreço é sem dúvida mais nítido.

Também por isso, no caso julgado pela CSRF, a empresa seria obrigada a recolher a contribuição previdenciária somente sobre a diferença entre o valor do convênio médico assegurado a todos os empregados e dirigentes e o daquele plano superior oferecido a um único diretor. Em um só passo, seriam evitados o desvirtuamento dos propósitos equalizantes do legislador ao estabelecer a regra da universalidade e até mesmo a possibilidade de fraude, tudo sem que se suprimisse arbitrariamente a norma isentiva em um caso enquadrado, a rigor, na letra do artigo 28, parágrafo 9º, “q” da Lei 8.212/91.

 

 

 

 

Autores: Roberto Ricomini Piccelli é advogado, mestrando em Direito Constitucional pela USP e integrante do escritório Tranchesi Ortiz, Andrade e Zamariola Advocacia.

 Marcos Tranchesi Ortiz  é advogado, mestre em Direito Tributário pela USP, sócio do escritório Tranchesi Ortiz, Andrade e Zamariola Advocacia e ex-conselheiro da 3ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.


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