Autor: João Paulo Aguiar Moreira (*)
A 1ª Turma da Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais julgou, na sessão do dia 6 de abril, o caso Bariguix Fazenda Nacional[1]. Nele, discutiu-se a possibilidade de dedução, na base de cálculo da IRPJ e da CSLL, de despesas derivadas de amortização de ágio interno. Os recursos especiais da contribuinte e da Fazenda Nacional foram interpostos em face de acórdão da câmara baixa que manteve a glosa da dedução da despesa com ágio, com manutenção de multa isolada e multa de ofício, no patamar de 75% sobre o Auto de Infração.
O caso representou mais um capítulo na cruzada travada pelo Fisco com o objetivo de coibir a chamada “criação fictícia” de ágio, especialmente no bojo de grandes operações de reestruturação societária. Desde meados de 2010, foi possível observar um crescimento progressivo das autuações lavradas com a finalidade de desconsiderar planejamentos tributários que envolviam fusões, aquisições e incorporações societárias, em concomitância com a aplicação de pesadas multas.
Não é por outra razão que centenas de corporações estão se dirigindo ao Carf para questionarem autuações que, não raro, chegam à casa dos bilhões de reais. Isso porque, além de tratarem-se de operações gigantescas e de elevada complexidade, a fiscalização aplicou,em boa parte dos casos, multa qualificada, no patamar de 150% sobre o valor do imposto supostamente devido, por entender que houve efetiva má-fé do contribuinte.
A questão do ágio está longe de ser simples. Em linhas gerais, pode ser entendido como a diferença entre o valor pago a um título e seu valor nominal, com o objetivo de obter alguma rentabilidade futura. Em matéria fiscal, o ágio é utilizado na dedução de encargos tributários, a exemplo do IRPJ e da CSLL, e pode ser aproveitado em até 5 anos após seu recolhimento.
Apesar do advento da Lei n° 12.973/14 trazer contornos mais claros à matéria – pacificando, dentre outros aspectos, a vedação de se deduzir ágio gerado internamente –, o fato é que basta uma análise superficial da jurisprudência do Carf para revelar que os julgadores têm baseado suas decisões na ausência de “propósito negocial”.
Nesse sentido, a investigação das bases e implicações da adoção da teoria do propósito negocial constitui aceleuma sobre a qual se debruça a presente empreitada. Tendo em vista a atualidade das autuações lavradas com a finalidade precípua de desconsiderar planejamentos tributários envolvendo ágio, mister se faz que revisitemos o instituto e fomentemos o debate em torno de seus fundamentos.
O ponto de partida não poderia ser outro que não as origens do próprio planejamento tributário.
Passemos então ao que fora proposto.
Das origens do planejamento tributário
A partir do advento do paradigma do welfare state, foi possível observar um crescimento progressivo do tamanho do Estado e de seus representantes. Nessa esteira, através de sua faceta financeira, a presença do Estado irradiou-se por todo o substrato social, passando a desempenhar uma série de atividades voltadas para a obtenção, gestão e aplicação dos recursos de que o Estado necessita para atingir seus objetivos precípuos[2].
Assim, sob a bandeira do atendimento das necessidades tidas como “públicas”, ampliou-se o grau de interferência estatal no âmbito privado. Por intermédio da tributação – principal fonte de receitas estatais –, retira-se do patrimônio do contribuinte aquilo que a ele pertence para que se possa dar cabo das demandas públicas.
Não é por outra razão que Ives Gandra[3]aduz que a imposição tributária constitui nítida norma de rejeição social, porquanto sempre desmedida e reveladora de certo arbítrio por parte do Estado. A imposição de penalidades severas, com peso confiscatório, em face do não cumprimento da norma tributária, provaria a veracidade da tese.
E é sob esta realidade que se assenta a tendência do sujeito passivo da relação tributária de esquivar-se das leis impositivas, haja vista que as considera excessivas.
Surgem, nessa perspectiva,os fenômenos da elisão e da evasão fiscal, os quais compartilham, na origem, a pretensão do contribuinte de fazer frente à carga tributária desmedida. A diferenciação fundamental entre elas reside nos meios adotados para fugir dessa carga: estes podem ser legais (elisão fiscal) ou ilegais (evasão fiscal).
Nesse sentido, elisão fiscal nada mais é do que “procedimento utilizado pelo sujeito passivo da relação tributária, objetivando reduzir o peso da carga tributária, pela escolha, entre diversos dispositivos e alternativas de lei, daqueles que lhe permitem pagar menos tributos[4]”.
E é precisamente nesse contexto que se insere a disciplina do planejamento tributário. Situado no interstício da tensão entre a pretensão arrecadativa do Estado e o direito do contribuinte de organizar seus negócios da forma que entender mais proveitosa, o planejamento tributário assume seu posto de importância na dinâmica da tributação no Estado Moderno.
A fundamentação desse “empreendimento jurídico” reside no reconhecimento de que a imposição tributária é essencialmente abusiva e, por isso, o interesse de dela distanciar-se será sempre legítimo; bem como na obrigação que se impõe ao Estado constitucional no sentido de que o exercício do poder de tributar seja,a todo momento,plasmado em valores e garantias constitucionais.
Imbuído dessa necessidade de lastro constitucional, o Estado elegeu o princípio da capacidade contributiva[5]como critério norteador da distribuição dos encargos tributários entre a sociedade. Por meio dele, consignou-se que a tributação deverá incidir sobre fenômenos que denotem a manifestação de riqueza.
Ocorre que, uma vez estipulado que as hipóteses de incidência tributária deverão evidenciar, objetivamente, a existência de capacidade contributiva, surge de imediato o questionamento acerca do modo como ela deverá ser percebida pelo legislador.Em outras palavras, quais situações deverão ser entendidas como efetivas manifestações de capacidade contributiva?
Nesse ponto, observa Schoueri e Freitas que:
“os fenômenos que serão submetidos à tributação nem de longe têm o condão de esgotar o universo de manifestações de capacidade contributiva. A presença de situação que revele, objetivamente, aquela capacidade, é condição necessária, mas não suficiente, para que se dê a imposição tributária. Não basta, pois, averiguar a ocorrência de capacidade contributiva […]. Importa que a situação tenha sido contemplada, de modo abstrato, pelo legislador[6]”.
Tal perspectiva coloca em evidência a necessidade de se observar o princípio da capacidade contributiva sempre pelas lentes da legalidade[7].É imprescindível que o legislador tenha disciplinado, via legislação, a hipótese de incidência tributária.Não é por outra razão que algumas manifestações de riqueza, apesar de refletirem capacidade contributiva, mantém-se incólumes da tributação.
Alcançamos, afinal, o pilar central do planejamento tributário. Confiante de que apenas as situações previstas pelo legislador estarão sujeitas à pretensão tributante, o contribuinte reclama para si a prerrogativa de organizar seus negócios de forma a afastar-se da tributação, muitas das vezes por intermédio de arranjos que não fazem sentido do ponto de vista estritamente empresarial, mas compreensíveis porquanto garantem como resultado final a economia de tributos.
Ocorre que, paulatinamente, diversas limitações ao planejamento tributário foram sendo criadas, via legislação ou jurisprudência, modificando o cenário até então traçado.
Nesse ponto, somos remetidos à jurisprudência administrativa do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o qual passou a rejeitar diversas estruturas engendradas pelos contribuintes com a finalidade de minorar a incidência de tributos.Voltamos nossa atenção especificamente à ideia de propósito negocial que vem sendo adotada pelo Conselho.
A doutrina do propósito negocial
A adoção do propósito negocial pelo Carf tem gerado certo rebuliço no meio tributário, haja vista as imprecisões de conceituação e aplicação do novo instituto.
Por meio dele, tem-se desconsiderado planejamentos tributários sempre que evidenciado que “a transação ganhou determinada forma exclusivamente por razões fiscais, ou ainda, que do ponto de vista empresarial, a transação não fazia sentido sem considerar seus benefícios tributários[8]”.
Surgido na jurisprudência norte-americana em um contexto de grandes reestruturações societárias, a business purpose doctrine, questiona, em síntese, se determinada operação teria sido efetuada da mesma forma, não fossem as vantagens tributárias geradas. Dentre seus fundamentos primordiais, reside a noção de que a simples concordância do planejamento tributário com a letra da lei é insuficiente para embasar uma economia tributária válida.
Impugna-se, dessa forma, toda e qualquer operação que tomou contornos diversos daqueles tidos como “normais” com vistas à economia de tributos. O fundamento da desconsideração é o de que falta à operação o necessário “substrato econômico”, o que apontaria a artificialidade desta ante a complexidade do arranjo engendrado pelo contribuinte.
O argumento é recorrente nas muitas autuações que se lavram hodiernamente em face do contribuinte. Planejamento tributário sem propósito negocial é aquele que se afasta da“economicidade” típica do negócio jurídico ao qual se remete.
Ocorre que,ao considerar insuficiente a circunstância de determinado planejamento tributário estar em consonância com a lei, a autoridade tributária privilegia o que se pode chamar de “interpretação econômica”. Por meio dela, defende-se ser necessário observar as implicações econômicas da norma tributária, haja vista sua natureza intrinsecamente econômica.
No entanto, a crítica que se faz à adoção de uma interpretação econômica da norma de incidência tributária invoca a centralidade do princípio da legalidade estrita nesse ramo do direito. Conforme dito, é impossível adotar interpretação de conteúdo que supere o comando sedimentado em lei, ao risco de macular o arcabouço principiológico que embasa a tributação no seio do Estado moderno. Nesse sentido, ensina Ives Gandra que“a interpretação de conteúdo, embora desejável, não pode, como se pretende projetar, oferecer desenho legal distinto daquele expresso na norma, risco de se estar ofertando realidade exegética diversa daquela esculpida pelo legislador[9]”.
Nessa esteira, o aplicador da norma não deve examinar conteúdo que não aquele lhe for intrínseco, posto que cogitar realidade diversa da mandamental “leva, necessariamente, ou à deturpação da norma ou à criação legislativa pela Hermenêutica, em ambos os casos gerando para os que possam sofrer sua aplicação restritiva prejuízo ou benefício indevidos[10]”.
Para além desse ponto, imperioso registrarmos as profundas imprecisões conceituais que circundam a aplicação desse instituto na jurisprudência administrativa exarada pelo Carf. Schoueri e Freitas, após detido estudo empírico das decisões do Conselho que faziam remissão ao propósito negocial como ratio decidendi, concluíram que:
“Curiosamente, embora a falta de propósito se revelasse como a efetiva razão para a recusa do planejamento, os julgadores procuravam justificar sua decisão com base em teorias como o abuso de direito, a fraude à lei, o negócio indireto e quejandras, chegando-se à situação paradoxal de que circunstâncias semelhantes eram afastadas, por fundamentos diversos[11]”.
De outro plano, não podemos fechar os olhos às implicações da importação estanque de critérios alienígenas pelo ordenamento pátrio, como parece ser o caso na doutrina do propósito negocial. Especialmente se tal ingresso se dá por meio de mera evolução jurisprudencial, sem o devido trato legislativo da questão. Nesse sentido, assevera Schoueri e Freitas que “ainda mais perigosa é a importação de critérios estrangeiros, se estes provém do common Law, cujas raízes divergem bastante da tradição continental[12]”.
A conclusão a que se chega é a de que a doutrina do propósito negocial, aplicada por intermédio da jurisprudência administrativa brasileira, carece de profunda e urgente reformulação. Ante os argumentos expostos, resta patente que sua aplicação gera obstáculos para a concretização de princípios fundamentais que representam verdadeiras garantias estendidos ao contribuinte. Por certo, a adoção irrestrita do instituto sem lastro legislativo corresponde à própria aniquilação da possibilidade de se empreender planejamento tributário no Brasil, haja vista que todo e qualquer arranjo elaborado pelo contribuinte na condução de seus negócios será passível de desconsideração e tributação pelo Fisco. É imprescindível, assim, que decidamos “entre planejamento tributário e propósito negocial”.
Autor: João Paulo Aguiar Moreira é graduando em Direito pela Universidade de Brasília e estagiário no escritório Gaia Silva Gaede & Associados.