Autores: Dierle Nunes e Jéssica Galvão Chaves (*)
Durante a tramitação legislativa do Código de Processo Civil (Lei 13.105/15), os embargos infringentes foram extirpados do rol recursal[1].
Na Câmara dos Deputados, criou-se na hipótese de julgamentos majoritários como sucedâneo do recurso uma nova técnica de julgamento, com índole não recursal, em caso de existência de voto vencido em julgamento de recurso de apelação, rescisória ou agravo de instrumento contra o julgamento parcial de mérito (art. 1.015, II), sendo nestes últimos dois casos cabível quando houver reforma da decisão ou rescisão da sentença, respectivamente (art. 942, §3º). O incidente não se aplicará em julgamentos de IAC, IRDR e proferidos pelo plenário ou órgão especial do tribunal (art. 942, §4º).
Assim, em prestígio à colegialidade dos julgamentos o art. 942 do CPC/15 dispõe que, em se tratando “de apelação não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado final, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito e sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores”.
O atual sistema processual elevou a colegialidade a novo patamar, buscando-se a construção de pronunciamentos perante os tribunais por meio da efetiva discussão pelos julgadores das questões levadas pelas partes (dever de consideração, art. 10 e 489, §1º, IV) em diálogo genuíno.
Para a adequada aplicação deste incidente de ampliação da colegialidade, assegurando-se as garantias do devido processo constitucional, do efetivo contraditório e amplo debate, para formação de pronunciamentos corretos e de melhor qualidade, faz-se indispensável a observância das etapas a seguir elencadas quando o resultado da apelação for não unânime:
· Convocação dos novos julgadores, nos termos regimentais, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, com prosseguimento do julgamento em nova sessão a ser designada;
· Divulgação do julgamento parcial, sem anúncio de resultado final, para a ciência inequívoca das partes, por meio de seus advogados sobre a divergência instaurada, a fim de se assegurar o efetivo contraditório de forma comparticipada, com oportunidade de influenciar no julgamento perante o órgão colegiado ampliado, viabilizando o encaminhamento de memoriais e sustentação oral, em consonância com o princípio da boa-fé processual e a regra da cooperação (artigos 5º, 6º e 7º, do CPC/15);
· A intimação dos procuradores das partes acerca da data da nova sessão de continuidade do julgamento para, caso queiram, efetuarem nova sustentação oral, em razão da convocação dos demais julgadores, podendo abranger toda a matéria discutida em sede recursal, em razão da inexistência de limitação legislativa ao objeto da divergência;
· Os novos integrantes da turma julgadora votarão sobre a matéria ventilada no recurso objeto da divergência, sem limitação a esta matéria, podendo inclusive a teor do que dispõe o art. 941, §1º e art. 942, §2º, do CPC/15 ocorrer o reposicionamento de entendimento pelos desembargadores que já proferiram seus votos.
· Mesmo que o tribunal não tenha no seu regimento interno adequação ao atual Código de Processo Civil/15, especialmente no que tange à hipótese do artigo 942, deverá ser aplicada a nova técnica de ampliação da colegialidade, com a convocação de novos julgadores em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão ao julgamento inicial.
Pontue-se que colegialidade almejada pelo novo código somente será garantida em sua plenitude caso não se promova o prosseguimento do julgamento na mesma sessão, embora haja tal permissão no §1º do artigo 942 do CPC/15, visto que é imprescindível o pleno conhecimento das questões discutidas no processo pelos novos integrantes da turma julgadora, para viabilizar uma plena deliberação colegiada por todos os desembargadores que compõem a turma julgadora.
Caso simplesmente se julgue na mesma sessão, não ocorrerá nova sustentação oral (esta só se aplica em caso de adiamento, conforme o caputdo dispositivo) e dificilmente os novos integrantes da turma terão prestado atenção no que foi dito na tribuna pelo advogado para um julgamento que, inicialmente, não participariam; de modo que esta autorização normativa (§1º) cria mais um “teatro” de colegialidade do que sua implementação efetiva.
Ademais o Código de Processo Civil/2015 deve ser aplicado e interpretado de forma sistêmica, o que implica dizer que o artigo 942, inclusive seu § 1º, deve ser interpretado com os demais artigos do mencionado código, especialmente em consonância com as normas fundamentais e as garantias do devido processo constitucional.
Conforme uma das autoras já mencionou em estudo anterior sobre o tema, não se mostra recomendado o prosseguimento do julgamento não unânime na mesma sessão na hipótese do art. 942, mesmo em caso de existência de desembargadores suficientes para reverter o julgamento,
“porque certamente contraditório e ampla defesa nesta hipótese seriam tão somente pro forma, já que não asseguram o devido processo legal de forma plena, diante da ausência na prática do amplo debate e menos ainda análise detida dos autos do processo, com decisão fundamentada em relação aos demais Desembargadores que passarem a julgar o recurso na mesma sessão em que se iniciou o julgamento com voto divergente. Nesta hipótese não há ampla defesa e comparticipação plena, com análise de todos os fundamentos e argumentos apresentados pelas partes pelos novos Julgadores, conforme previsão dos artigos 5°, 6°, 7° e 11° do CPC/15, já que não há como fazer tal estudo na própria sessão de julgamento”[2].
Como já se pontuou antes da tramitação do CPC/2015,
“os cidadãos não podem mais se enxergar como sujeitos espectadores e inertes nos assuntos que lhe tragam interesse, mas sim devem ser participantes ativos e que influenciem no procedimento formativo dos provimentos (atos administrativos, das leis e das decisões judiciais), e este é o cerne da garantia do contraditório. […] Tal concepção significa que não se pode mais na atualidade, acreditar que o contraditório se circunscreva ao dizer e contradizer formal entre as partes, sem que isso gere uma efetiva ressonância (contribuição) para fundamentação do provimento, ou seja, afastando a ideia de que a participação das partes no processo pode ser meramente fictícia e mesmo desnecessária no plano substancial”[3].
Portanto, caso os desembargadores competentes pelo julgamento sem unanimidade não observem os requisitos supramencionados, é possível e adequado o manejo de embargos declaratórios (art. 1.022 do CPC/15) após o encerramento do julgamento para controle da fundamentação e pré-questionamento (art. 1.022, parágrafo único, II e 1.025), bem como interposição de recurso especial, caso os vícios não sejam sanados no julgamento dos embargos declaratórios.
A nova técnica do incidente de ampliação da colegialidade não pode jamais caracterizar julgamento estratégico de anuência ao voto do relator ou aos votos majoritários, sem o prévio acesso e análise detida dos autos pelos novos desembargadores que passarão a compor o julgamento[4], cujo pronunciamento deve ser construído de forma efetivamente comparticipada com amplo debate, assegurando-se o direito à sustentação oral pelos procuradores das partes em nova sessão, sob pena de comprometimento do processo democrático, além do risco da não observância a tais requisitos desencadear novos recursos, como embargos declaratórios, recurso especial e até mesmo extraordinário, para aplicação adequada do novo dispositivo legal.
Não se pode ainda olvidar o papel dos embargos declaratórios caso os novos julgadores se omitam sobre argumentos suscitados pelas partes ou dos quais a lei obriga a análise. Especialmente, quando se percebe que o CPC/2015 guindou o recurso de embargos de declaração (ED), prescrito em seus artigos 1.022 a 1.026 (1.064, 1.065 e 1.067), a novos patamares de relevância.
Este recurso “pequeno-gigante”, que possui umbilical relação com a garantia constitucional da fundamentação racional das decisões (art.93, IX, da Constituição Federal de 1988), ora revigorada e fortalecida pela expressão de deveres cooperativos expressos no art. 489, §1º, CPC/2015, ganha grande destaque como instrumento de controle do respeito desta garantia nos julgamentos.
É evidente que os EDs, num primeiro momento, não se prestam a reformar os pronunciamentos judiciais, mas a permitir que o próprio órgão prolator da decisão possa integrar seu conteúdo pela constatação da presença dos vícios de omissão, obscuridade, contradição e de erro (art. 1.022), de modo que as duas decisões (a impugnada e de julgamento dos declaratórios) se somam e, permitem, a interposição na sequência de outro recurso que permitirá a reforma decisória em face do efeito interruptivo do art. 1.026,caput.
No entanto, o CPC-2015 traz uma série de potencialidades agora expressas, quais sejam: a) o recurso é cabível de qualquer pronunciamento judicial desde que se apresentem os vícios previstos em lei (recurso de fundamentação vinculada); b) previsão da complementaridade de recurso já interposto anteriormente ao julgamento dos EDs (art. 1.024, §4º); c) desnecessidade de ratificação de recurso já interposto (art. 1.024, §5º)[5]; e) utilização para viabilizar o suprimento de omissões para fins de pré-questionamento e permitindo sua aceitação na modalidade ficta (art. 1.025); f) previsão de seu cabimento com fins modificativos, desde que previstos os vícios do art. 1022 e que haja prévia oitiva da contraparte (art. 1.023).
Sua existência e importância, sem dúvidas, é fruto do sistemático descumprimento e superficialidade de vários julgados em nosso país decorrente, entre muitos outros fatores, da quantidade de processos em tramitação no Brasil.
Os EDs se consolidam, assim, como um instrumento técnico cooperativo normativo do controle da atividade de julgar e de busca da correção na fundamentação das decisões, inclusive nas hipóteses de omissão presumida pelo legislador no parágrafo do art. 1.022. E é exatamente neste aspecto que o recurso se liga ao incidente de ampliação de colegialidade com maior vigor, para que garanta que a turma julgadora cumpra o dever de consideração em relação aos argumentos suscitados pelas partes.
Como já se explicou, não se trata de recurso, mas de incidente que permite a continuidade de julgamento, sem a limitação cognitiva do revogado recurso de embargos infringentes, ou seja, não se limitando ao âmbito da divergência de modo que os novos julgadores têm o dever cooperativo (art. 489, §1º, IV) de levar em consideração todos os fundamentos e, caso não o façam, haverá omissão, mesmo que presumida (art. 1.022, p.ú., II).
Pontue-se, por fim, não ser mais possível no sistema do novo CPC, apesar da insistência de parcela dos profissionais em tentar agir como se nada tivesse ocorrido, a mantença daqueles entendimentos retrógrados de que “o julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”, pois estes fulminam inúmeros dispositivos da Constituição, do CPC e não se sustentam em nenhuma medida (como pontua com maestria Lenio Streck).[6]
O pressuposto indicado alhures deve governar a interpretação do novo incidente do art. 942 sob pena de se criarem inúmeras situações de nulidade[7] e retrabalhos, que a cautela e o respeito das normas fundamentais obstariam.
Autores: Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil, na Câmara dos Deputados.
Jéssica Galvão Chaves é assistente judiciário, mestranda em Direito Processual pela PUC Minas e professora da Escola Superior da Advocacia/OAB-MG e do Instituto de Educação Continuada – PUC Minas.