Novo CPC dificulta rejeição de recurso claramente inadmissível

Autor: Gustavo Vasques (*)

 

O novo CPC, como se sabe, acabou com o duplo juízo de admissibilidade, mais precisamente com o controle de admissibilidade que era realizado na origem, pelo juízo a quo[1]. Esta mudança tem como objetivo racionalizar a duração do processo, excluindo a análise, quase sempre dispensável, dos requisitos do recurso pelo juiz de piso. Todavia, em que pese louvável e digna de aplausos, nos casos de recursos manifestamente inadmissíveis, há de se rever esta vedação, exatamente para não ocorrer a morosidade na duração do processo — o que seria diametralmente oposto ao seu propósito, de se otimizar o trâmite processual, ocorrendo verdadeira “autofagia” neste ponto.

Assim, o presente texto busca analisar esta lacuna/inconsistência do CPC/2015 relacionada ao juízo de admissibilidade nos casos de recursos manifestamente inadmissíveis. Ao que parece, quando da elaboração do novo CPC/2015, tal situação passou despercebida, mas, agora, com a prática forense, já se observa a necessidade de urgente revisão legislativa.

Em termos práticos, ao se proferir uma decisão em primeira instância, o juízo prolator da decisão a ser combatida não tem mais a possibilidade de se manifestar acerca dos requisitos necessários ao conhecimento do recurso, cabendo tal mister exclusivamente ao juízo ad quem, destinatário da irresignação. Destaque-se que, em determinadas situações, o juízo a quo até pode se retratar[2] (a exemplo das apelações em face de sentença que extingue o processo sem exame do mérito), revendo o seu julgado, mas frise-se, não pode deixar de dar seguimento a um recurso por entendê-lo inadmissível (atente-se para o detalhe de que, em que pese possa, com fundamento na intempestividade, deixar de se retratar, não pode inadmitir um recurso usando este mesmo argumento).

Tal situação, porém, apesar de revelar um indiscutível avanço ao melhor curso do processo, traz um problema de ordem prática extremamente relevante e que, em última análise, encerra por levar ao travamento do processo, em sentido diametralmente oposto ao buscado pelo festejado dispositivo legal. Isto porque, nos casos de recursos manifestamente incabíveis, ao invés de se otimizar o trâmite processual, tem-se, ao fim e ao cabo, um verdadeiro obstáculo ao desenvolvimento regular da demanda.

A título de exemplo, imagine-se um caso, na esfera de uma execução fiscal, em que o executado apresenta apelação em face de decisão que rejeitou uma exceção de pré-executividade. Diante de tal decisão, inquestionavelmente, nos termos do parágrafo único do artigo 1.015, do CPC/2015[3], cabe agravo de instrumento (da mesma forma como já o era à época do CPC/1973). Ora, a interposição de apelação neste caso configura erro grosseiro, situação na qual a jurisprudência pátria se consolidou no sentido de não ser aplicável o princípio da fungibilidade, devendo-se rejeitar de plano a irresignação, por se tratar de recurso manifestamente inadmissível[4].

Na vigência do CPC antigo, o juiz de primeira instância já negava seguimento ao malsinado recurso e se prosseguia normalmente com o processo! Caso o recorrente discordasse da rejeição, poderia se insurgir por agravo de instrumento (que, diga-se, também não suspendia o prosseguimento da ação).

Eis o problema. Com o novo CPC, todavia, diante de uma apelação (ainda que manifestamente inadmissível), o juízo a quo não pode mais realizar este controle prévio, razão pela qual fica obrigado a enviar ao tribunal o recurso de apelação (embora grosseiramente equivocado), o que implica, na prática, em suspensão do processo (justamente o que o fim do duplo juízo de admissibilidade buscou combater)! Lembre-se, por oportuno, que o novo CPC permanece concedendo à apelação o efeito suspensivo automático, sendo que somente em situações previstas em lei este efeito é afastado (dependendo de pedido expresso ao relator).[5]

E, data venia, indefensável a aplicação, indiscriminada, do princípio da fungibilidade nestes casos. Isto porque, o parágrafo 3º do artigo 1.024[6], na esteira a interpretação extensiva dada pelo Enunciado 104 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC)[7] não se aplica aos casos (como este), em que não há dúvida objetiva (um dos requisitos essenciais exigidos para aplicação do mencionado princípio — diferentemente das regras de fungibilidade trazidas no novo CPC, a exemplo dos artigos 1.032 e 1.033). De outro turno, o artigo 932, parágrafo único, do novo CPC é destinado ao relator[8], além do fato de que o STF[9], recentemente, na esteira do enunciado administrativo 6, do STJ, decidiu que “o prazo de cinco dias previsto no parágrafo único do artigo 932 do novo Código de Processo Civil (CPC) só se aplica aos casos em que seja necessário sanar vícios formais, como ausência de procuração ou de assinatura, e não à complementação da fundamentação”.

Não bastassem estes argumentos, eventual aplicação indiscriminada do princípio da fungibilidade, na prática, certamente iria desencadear muitos absurdos. Basta lembrar da unificação dos prazos em 15 dias (o que já superaria, sempre, um dos requisitos do princípio), o que permitiria, grosso modo, que se apresentasse qualquer recurso e o juiz teria sempre que intimar para corrigir, atuando como verdadeiro assessor de advogado (como, por exemplo, apresentar recurso extraordinário em face de sentença). Por tais razões é que se entende que tal solução deve ser afastada nos casos de erro grosseiro.

Ainda que se considerasse que nesta situação a apelação não teria efeito suspensivo automático, o que se admite apenas por argumentar, ainda assim, na prática, não se realizará nenhuma constrição no patrimônio do devedor/recorrente enquanto a apelação (junto com os autos) estiver pendente no tribunal.

Há juízes que, buscando ajustar esta situação, estão providenciando cópia integral dos autos, a fim de se prosseguir normalmente com a execução em primeira instância, enquanto os autos principais, com a “apelação”, são remetidos ao tribunal para apreciação. Em seguida, após a apelação ser inadmitida no ad quem, já se determina que se translade as peças originais ao processo que subiu, descartando-se a cópia que existia. Apesar de inteligente e atender ao objetivo do novo CPC (dar celeridade ao processo), há séria controvérsia acerca da possibilidade de prosseguimento do processo diante da “apelação”, que, como já visto, apesar de manifestamente inadmissível, possui efeito suspensivo automático concedido pelo novo CPC.

Diante de tal quadro, à luz do propósito maior de se racionalizar o trâmite processual, mister que se providencie urgente alteração do novo CPC, a fim de se permitir, nestes casos de recurso manifestamente inadmissível, que o juiz singular realize este juízo de admissibilidade ou, ao menos, que se afaste o efeito suspensivo automático nestes casos e se permita que o juiz de primeira instância providencie cópia dos autos para prosseguimento da ação (como alguns já têm feito, a despeito de ausência de previsão legislativa).

Desta forma, entendendo-se que a primeira possibilidade se apresenta muito mais adequada, propõe-se, desde logo, a alteração do parágrafo 3º, do artigo 1.010, do novo CPC, complementando-se seu final, consolidando-se a seguinte redação: “§ 3º Após as formalidades previstas nos §§ 1º e 2º, os autos serão remetidos ao tribunal pelo juiz, independentemente de juízo de admissibilidade, salvo nos casos de apelação manifestamente inadmissível, reconhecidos pelos Tribunais Superiores em sede de precedente obrigatório, hipótese em que o juiz de primeiro grau poderá rejeitá-la de plano” (sugestão de alteração legislativa destacada).

 

 

 

 

Autor: Gustavo Vasques  é procurador da Fazenda Nacional na Bahia e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).


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