Autor: Igor Borges La Rosa (*)
I – Introdução
O Direito Constitucional se caracteriza historicamente como a base jurídica de um Estado e por mostrar as garantias e direitos mínimos das pessoas em relação ao poder estatal.
Documentos como a Carta Magna inglesa de 1215, a Convenção da Filadélfia de 1787, a Constituição Francesa de 1791, Constituição do México de 1917 e as recentes Constituições do Equador e da Bolívia de 2008 e 2009, respectivamente, cada uma no seu tempo, representam o desenvolvimento da cultura constitucional, como asseguradora de direitos e garantias das pessoas.
E neste rol podemos inserir a Constituição brasileira de 1988, pródiga em garantir direitos às pessoas que vivem sob sua égide, tais quais os direitos fundamentais (artigos 5º a 17º), dentre eles os direitos individuais, sociais, políticos e de nacionalidade; e os direitos sociais (artigos 193 a 232), com a seguridade social, educação, cultura e desporto, meio ambiente, família e os direitos dos índios.
No entanto, em que pese essa série de direitos e garantias estarem dispostos na lei maior, são muitas as dificuldades na efetivação dos seus mandamentos, que são muitas vezes interpretados como meros objetivos a serem alcançados pelo país, com eficácia programática, ou seja, sem aplicabilidade direta, sendo dependentes de políticas públicas que viabilizem a sua concretização.
“A eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais programáticas sempre foi palco de disputas doutrinárias, representando o maior desafio do Direito Constitucional contemporâneo. Na Itália, por exemplo, autores do quilate de Gaetano Azzariti sustentaram que as normas programáticas ou diretivas se limitam a indicar uma via ao legislador futuro, não sendo nem mesmo verdadeiras normas jurídicas, negando-lhes qualquer eficácia. Para essa doutrina tradicional, a falta de juridicidade das normas programáticas obsta o cidadão em invocá-las junto aos tribunais para pedir o seu cumprimento, ainda que contemplassem direitos sociais” (CUNHA JUNIOR, 2012, p. 182).
Todavia, podemos afirmar que atualmente é crescente o entendimento de que o texto constitucional não abriga apenas princípios norteadores, mas regras vigentes que devem refletir no mundo concreto, é a denominada constitucionalização dos direitos, teoria derivada do pós-positivismo jurídico de Ronald Dworkin e Robert Alexy.
“A proclamação da normatividade dos princípios em novas formulações conceituais e os arestos das cortes supremas no constitucionalismo contemporâneo corroboram essa tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como normas-chaves de todo o sistema jurídico; normas das quais se retirou o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a eficácia das Constituições em seus valores reverenciais, em seus objetivos básicos, em seus princípios cardeais.
(…)
O ponto central da grande transformação por que passam os princípios reside, em rigor, no caráter e no lugar de sua normatividade, depois que esta, inconcussamente proclamada e reconhecida pela doutrina mais moderna, salta dos Códigos, onde os princípios eram fontes de mero teor supletório, para as Constituições, onde em nossos dias se convertem em fundamento de toda a ordem jurídica, na qualidade de princípios constitucionais” (BONAVIDES, 2011, p. 286).
Neste cenário, destaca-se a figura do Mandado de Injunção como um instituto jurídico voltado para a efetivação das regras constitucionais que possuem algum déficit de aplicação concreta.
II – O Mandado de Injunção
O Mandado de Injunção está previsto no artigo 5º, inciso LXXI, da Constituição Federal, é um dos chamados “remédios constitucionais”, ações judiciais que visam a proteção de garantias constitucionais.
“LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.
O objetivo do Mandado de Injunção é conferir aplicabilidade às regras constitucionais que dependam de regulamentação.
O Mandado de Injunção tem lugar sempre que houver ausência, ainda que parcial, de norma regulamentadora que torne inviável o exercício de direito constitucionalmente assegurado.
Na Constituição brasileira são muitos os casos em que a aplicação de determinado direito é condicionada à criação de alguma lei, algumas já foram elaboradas, outras não.
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(…)
VII – o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”.
“Art. 66. São mantidas as concessões de serviços públicos de telecomunicações atualmente em vigor, nos termos da lei”.
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
(…)
III – contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
Salienta-se que o Mandado de Injunção não serve apenas para omissões do Poder Legislativo em suas três esferas, o termo “norma regulamentadora” é abrangente, incluindo também decretos, portarias, regulamentos, resoluções e outros atos administrativos legais necessários para a efetivação da Constituição.
“Muitos direitos constam de normas constitucionais que preveem uma lei ordinária ou uma lei complementar para terem efetiva aplicação. Nessas hipóteses, é fácil verificar a norma pendente de regulamentação. Há casos, contudo, em que a norma constitucional apenas supõe, por sua natureza, por sua indeterminação, a necessidade de uma providência do poder público para que possa ser aplicada. Norma regulamentadora é, assim, toda ‘medida para tornar efetiva norma constitucional: bem o diz o artigo 103, parágrafo 22. Nesses casos, a aplicabilidade da norma fica dependente da elaboração da lei ou de outra providência regulamentadora” (SILVA, 2005, p 449-450).
De se salientar também que a injunção tem lugar apenas quando a regra constitucional depender de regulamentação, ou seja, quando for possível a aplicação direta da Constituição, outra ação deve ser ajuizada (ordinária, mandado de segurança etc.), não o Mandado de Injunção.
III – Da Lei 13.300 de 23 de junho de 2016
Desde o seu surgimento no Brasil, com a Constituição de 1988, passaram-se 28 anos sem que a legislação infraconstitucional indicasse o rito que o processo de Mandado de Injunção deveria seguir.
Com esse impasse, havia uma adaptação do Mandado de Injunção ao rito do Mandado de Segurança, nos termos do artigo 24, parágrafo único, da Lei 8.038/90:
“Art. 24 – Na ação rescisória, nos conflitos de competência, de jurisdição e de atribuições, na revisão criminal e no mandado de segurança, será aplicada a legislação processual em vigor.
Parágrafo único – No mandado de injunção e no habeas data, serão observadas, no que couber, as normas do mandado de segurança, enquanto não editada legislação específica”.
No entanto, em razão das peculiaridades do Mandado de Injunção, haviam alguns problemas procedimentais com a aplicação do rito do Mandado de Segurança, a exemplo da questão da tutela liminar que era vedada pelo STF (porém prevista na Lei 8.038/90), os quesitos da petição inicial (já que não havia direito certo e líquido a ser demonstrado) e os efeitos da decisão judicial (como demonstrarei a seguir).
Com o advento da Lei 13.300 de 23 de junho de 2016, esse importante remédio constitucional recebe seu procedimento próprio, semelhante ao do Mandado de Segurança, mas atento às diferentes finalidades do Mandado de Injunção.
Quanto à competência jurisdicional para a análise do Mandado de Injunção, a Constituição Federal já previa no artigos 102, I, “q”, os casos em que a competência é originária do STF; no artigo 102, II, “a”, os casos em que a competência originária é dos tribunais superiores; no artigo 105, I, “h”, os casos em que a competência originária é do STJ e no artigo 121, parágrafo 4º, V, os casos em que a competência originária é dos TREs.
Nessa baila, a Constituição Federal não trata da competência para o caso de omissões regulamentadoras no âmbito dos estados e dos municípios.
No caso do estado do Rio Grande do Sul, a Constituição estadual prevê no artigo 93, V, “c”, que a competência originária para o julgamento do mandado de injunção compete aos tribunais de segunda instância, em casos de omissão de seus próprios integrantes; no artigo 95, XII, “b”, a Constituição gaúcha prevê a competência originária do Tribunal de Justiça para o julgamento das omissões do governador do estado, da Assembleia Legislativa e seus órgãos, dos secretários de Estado, do Tribunal de Contas do Estado e seus órgãos, dos juízes de primeira instância, dos membros do Ministério Público e do procurador-geral do Estado e no artigo 95, XII, “e”, a competência originária do Tribunal de Justiça para o julgamento das omissões dos prefeitos municipais e das câmaras de vereadores.
O sujeito passivo será sempre o órgão estatal ou poder constituído que tenha a competência de regulamentar a norma pretendida, sendo que no ajuizamento da ação o impetrante deve indicar o órgão e a pessoa jurídica de direito público ao qual ele é vinculado.
Após o recebimento da inicial o impetrado será notificado para prestar informações sobre a omissão, em um prazo de 10 dias. O órgão de representação judicial da pessoa jurídica ao qual ele é vinculado também será cientificado, para que ingresse no feito, caso entenda ser necessário.
Por se tratar de questão atinente ao Direito Público, o Ministério Público também deve ser ouvido, sendo que antes da decisão judicial terá o prazo de 10 dias para oferecer seu parecer.
Os efeitos da decisão judicial que julga o Mandado de Injunção sempre é questão que despertou discordância doutrinária e jurisprudencial acerca do seu objeto, sendo que três posições se destacam; a teoria da subjetividade, a teoria da independência jurisdicional e a teoria da resolutividade.
A teoria da subjetividade aponta que a decisão do Mandado de Injunção deve se limitar a declarar a omissão normativa e cientificar o órgão omisso para que tome a medida cabível.
Já para a teoria da independência jurisdicional, a decisão que acolha o Mandado de Injunção deve consistir em uma norma geral, cujos efeitos ultrapassem o caso concreto analisado no processo, com caráter erga omnes.
A terceira posição doutrinária e jurisprudencial é a teoria da resolutividade, que considera que a decisão que acolher o mandado de injunção deve dar as diretrizes para a efetivação do Direito Constitucional, com efeito apenas no caso concreto posto nos autos.
Nesse cenário, a Lei 13.300/2016 positivou elementos das três teorias, repassando ao julgador, na análise do caso específico, a decisão sobre os efeitos da decisão, considerando também a mora do impetrado.
Com efeito, o artigo 8º, inciso I, da Lei, afirma que com o reconhecimento da mora regulamentadora, o impetrado deve ser cientificado, com a fixação de prazo para que regulamente a norma.
O inciso II do referido artigo determina que, caso não seja regulada a matéria no prazo determinado, a decisão deve estabelecer as condições em que se dará o exercício do direito invocado nos autos, com aplicação entre as partes
O parágrafo único do artigo 8º refere que, caso o impetrado já tenha deixado fluir o prazo referente à mesma omissão, deve ser aplicado de forma direta o teor do inciso II.
O artigo 9º, parágrafo primeiro, da Lei 13.300/2016, admite que a decisão do Mandado de Injunção tenha eficácia erga omnes, ou seja, que seja universal, válida para todos. Tal ocorre quando for inerente ou indispensável ao objeto da injunção.
Ainda, o parágrafo segundo do referido artigo 9º determina que, quando houver o trânsito em julgado da decisão que conceder determinada injunção, os seus efeitos poderão ser estendidos a outros casos similares.
Se após o trânsito em julgado da decisão que acolher o mandado de injunçãoo órgão competente regular a matéria omissa, tal regulamento terá efeitos ex nunc, ou seja, não prejudicará os efeitos já produzidos pela decisão judicial, salvo se a aplicação da norma for benéfica ao impetrante.
A Lei 13.300/2016 regula ainda a possibilidade da impetração do Mandado de Injunção coletivo, cujo objeto pode ser os direitos constitucionalmente assegurados a determinado grupo social.
Nessa modalidade, os impetrantes podem ser o Ministério Público, a Defensoria Pública, os partidos políticos com representação no Congresso Nacional e as organizações sindicais, entidades de classes ou associações legalmente constituídas, nos termos do artigo 12º da Lei analisada.
Ainda, o Mandado de Injunção coletivo não induzirá à litispendência com relação aos individuais, todavia, caso o particular deseje se beneficiar dos efeitos do Mandado de Injunção coletivo, terá que desistir da demanda individual, no prazo de 30 dias a contar da ciência da ação coletiva.
Por fim, o artigo 14º da Lei 13.300/2016 determina a aplicação subsidiária das regras referentes ao mandado de segurança.
IV – Conclusão
Com isso, verificamos que a Lei 13.300/2016 consubstancia um avanço para a constitucionalização do direito, fato que representa um avanço à cultura jurídica nacional, eis que instrumentaliza o Mandado de Injunção, fazendo com que as garantias e direitos constitucionais fiquem ao alcance de todas as pessoas.
Quanto ao procedimento adotado, verifica-se que a estrutura é muito similar à que já era adotada com a aplicação da lei do Mandado de Segurança, todavia, houve avanços com a definição de questões que eram discutidas na doutrina e na jurisprudência, como os efeitos da decisão que acolher a injunção e a possibilidade do Mandado de Injunção coletivo.
Autor: Igor Borges La Rosa é advogado do escritório MZ Advocacia e especialista em Direito Constitucional pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Bacharel em Direito pela Faculdade Anhanguera de Pelotas (RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas.