Autor: Rodrigo Capez (*)
A colaboração premiada suscita inúmeras controvérsias, dentre elas a extensão dos poderes conferidos ao Ministério Público para negociar. Discute-se, por exemplo, a legalidade de cláusulas prevendo regimes de cumprimento de pena fora dos parâmetros do Código Penal, como o regime aberto domiciliar para penas acima de quatro anos de reclusão, ou que confiram ao colaborador o direito de permanecer com bens ou valores que constituam produto do crime ou proveito auferido com a sua prática.
Com os desdobramentos da operação “lava jato”, a mais recente polêmica diz respeito à colaboração premiada do investigado preso, que se desejaria vedar, ao fundamento de que lhe faltaria a necessária liberdade psíquica. Esse argumento não convence.
A colaboração premiada é um meio de obtenção de prova, assim como a busca e apreensão, a interceptação de comunicações telefônicas e o afastamento do sigilo bancário, bursátil ou fiscal (artigo 3º da Lei 12.850/13). Como meio de obtenção de prova, destina-se a colaboração premiada à aquisição de elementos ou fontes de prova para a reconstrução dos fatos.
Otávio Luiz Rodrigues Júnior define negócio-jurídico processual “como uma declaração de vontade, unilateral ou bilateral, dirigida ao fim específico da produção de efeitos no âmbito do processo, de que é exemplo, no processo civil, a transação em juízo (…)”.[1]
Nesse contexto, a colaboração premiada também é um negócio jurídico processual, haja vista que o seu objeto é a cooperação do imputado para a persecução penal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração.
A Lei 12.850/2013 exige, como requisitos de validade do acordo de colaboração, a voluntariedade do agente, a regularidade e a legalidade dos seus termos. O mais importante acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Federal a respeito da colaboração premiada é o HC 127.483/SP, relator o ministro Dias Toffoli, julgado em 27 de agosto de 2015 e publicado no DJe de 4 de fevereiro de 2016.
Para a Suprema Corte, esse acordo somente será válido se a declaração de vontade do colaborador for desejada com plena consciência da realidade e escolhida com liberdade.
Decidiu-se, por unanimidade, que requisito de validade desse acordo é a liberdade psíquica do agente, e não a sua liberdade de locomoção. A declaração de vontade do agente deve ser produto de uma escolha feita comliberdade (= liberdade psíquica), e não necessariamente em liberdade, no sentido de liberdade física.
Logo, não há impedimento a que o acordo seja firmado por quem esteja preso, desde que haja voluntariedade na colaboração.
Para a Suprema Corte, negar-se ao preso a possibilidade de firmar esse acordo e de obter benefícios por seu cumprimento violaria o princípio da isonomia, por não haver correlação lógica entre essa vedação e a supressão da liberdade física do agente, uma vez que o fator determinante para a colaboração premiada é a sua liberdade psíquica, vale dizer, a ausência de coação, esteja ele solto ou não.
Tanto isso é verdade que, mesmo após o trânsito em julgado da condenação, a Lei nº 12.850/13 admite a colaboração premiada de quem se encontre preso (artigo 4º, parágrafo 5º).
Nesse contexto, a nosso sentir, seria manifestamente inconstitucional a iniciativa legislativa que visasse impedir o imputado de firmar um acordo de colaboração premiada pelo só fato de estar preso cautelarmente. Não se pode ignorar, a toda evidência, a possibilidade de ofensa ao privilégio contra a autoincriminação. Com efeito, o direito ao silêncio (artigo 5º, LXIII, CF) projeta largos efeitos em matéria de prisão cautelar.[2]
De acordo com Maria Elizabeth Queijo, a expressão nemo tenetur se detegeresignifica que ninguém é obrigado a se descobrir, equivalente à máxima latina nemo tenetur se accusare (ninguém é obrigado a se acusar), a qual, no direito anglo-americano, traduz-se no privilege against self-incrimination.[3]
O reconhecimento desse princípio, que se funda no instinto ou dever natural de autopreservação,[4] representa o respeito à dignidade da pessoa humana no processo penal e a vedação da produção de provas que impliquem violação de direitos do imputado, numa limitação à busca da verdade.[5]
Por ser um direito fundamental constitucionalmente assegurado, o seu exercício jamais poderá produzir qualquer efeito desfavorável ao imputado, razão por que não se limita à mera vedação a que, na valoração da prova, importe confissão ou seja interpretado em prejuízo da defesa (art. 186 e seu parágrafo único, CPP).
Assim, é manifestamente ilegítima, por ausência de justificação constitucional, a adoção de medidas cautelares de natureza pessoal, notadamente a prisão temporária ou preventiva, que tenham por finalidade obter a colaboração ou confissão do imputado, a pretexto de sua necessidade para a investigação ou a instrução criminal.[6] Nesses casos, embora constitucional a norma em abstrato, na apontada incidência ela produziu um resultado inconstitucional.[7]
Como assevera Vittorio Grevi, em nenhuma hipótese o exercício do direito ao silêncio pode ser colocado como fundamento, no terreno do periculum libertatis, de uma medida cautelar pessoal, que jamais pode ser adotada com o fim de induzir o imputado a colaborar com a autoridade judiciária.[8]
Essa questão não é cerebrina, pois o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a ilegitimidade constitucional de prisão preventiva cuja razão preponderante foi a recusa da imputada, no exercício do direito ao silêncio, em responder ao interrogatório judicial a que submetida.[9]
O Supremo Tribunal Federal também decidiu que carece de legitimidade constitucional, por manifesta ofensa ao privilégio contra a autoincriminação, a decretação da prisão temporária ou preventiva do imputado pelo seu não comparecimento à delegacia de polícia para prestar depoimento[10] ou “por falta de interesse em colaborar com a Justiça”, supostamente evidenciada pelo fato de os réus “haverem respondido às perguntas de seus interrogatórios de forma desdenhosa e evasiva, mesmo sabedores de que tais versões não encontram guarida no caderno investigatório”.[11] E não é só.
Ainda que, explicitamente, não seja essa a motivação da decisão, caso se constate, inclusive pela forma de atuação extraprocessual do juiz ou dos órgãos da persecução penal, que o verdadeiro objetivo da prisão cautelar é forçar a colaboração do imputado, sua inconstitucionalidade será patente.
Essa questão evidencia-se em investigações complexas, que envolvam intrincada cadeia de agentes, quando não organizações criminosas, na prática de crimes contra a administração pública, o sistema financeiro nacional ou de lavagem de dinheiro, em que haja interesse concreto dos órgãos da persecução penal em formalizar com o investigado um acordo de colaboração premiada, visando a identificação de coautores e partícipes e de infrações penais; a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa e a recuperação do produto ou do proveito das infrações penais praticadas (art. 4º da Lei nº 12.850/13).
Ainda que legalmente se admita, diante da relevância da colaboração, o perdão judicial, a redução de pena ou substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, é vedado utilizar-se da decretação ou da manutenção da prisão cautelar como instrumento de barganha com o imputado, no intuito de coagi-lo a colaborar.
Neste particular, o Supremo Tribunal Federal, no HC nº 127.186/PR, Segunda Turma, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 3/8/15, referente à denominada “operação Lava-a-Jato”, assentou que
“(…) seria extrema arbitrariedade que certamente passou longe da cogitação do juiz de primeiro grau e dos Tribunais que examinaram o presente caso, o TRF da 4ª Região e o Superior Tribunal de Justiça manter a prisão preventiva como mecanismo para extrair do preso uma colaboração premiada, que, segundo a Lei, deve ser voluntária (Lei 12.850/13, art. 4º, caput e § 6º). Subterfúgio dessa natureza, além de atentatório aos mais fundamentais direitos consagrados na Constituição, constituiria medida medievalesca que cobriria de vergonha qualquer sociedade civilizada”.
Em suma, o mero fato de o imputado encontrar-se preso não faz presumir a ausência de liberdade psíquica para transigir.
Autor: Rodrigo Capez é juiz auxiliar no Supremo Tribunal Federal e mestre em Processo Penal (USP).