Direito não pode ser entrave para o novo marco regulatório dos drones

Autores: Caio Cesar Figueiroa e Rafael Carvalho Rezende Oliveira (*)

 

Acredita-se que a humanidade está atravessando um período de transição, o natural devir decorrente da luta pela sobrevivência, ou, como preferem os economistas, o aperfeiçoamento da administração dos recursos escassos, de modo a maximizar a satisfação das necessidades, minimizando os custos decorrentes desse processo. Esse foi justamente o tema debatido na última edição do Fórum Econômico Mundial, que ocorreu em janeiro, na cidade de Davos, na Suíça. O evento, que ocorre anualmente desde 1971, reuniu os principais líderes empresariais e políticos para discutir as questões mais urgentes enfrentadas mundialmente. Segundo Klaus Schwab, presidente e fundador do organismo, é possível inferir, a partir das mais recentes transformações nas relações de produção, que o mundo está passando pela sua quarta revolução industrial[1].

É inegável que o tema das inovações tecnológicas está cada vez mais em pauta, principalmente em decorrência dos impactos que essas criações têm propiciado em diversos ambientes. Em certas ocasiões, o grau de inovação proporciona mudanças tão radicais que afetam toda a estrutura do modelo atingido, de modo a quebrar sua linha de condução anterior. Trata-se dadisrupção tecnológica, movimento esse que tem gerado certas preocupações para o Direito, que se vê sempre na ânsia de regular o uso de novas tecnologias.

E há razões para que o Direito se preocupe com esse gap. O fenômeno da disrupção era encarado como um efeito secundário da inovação, um processo eventualmente voluntário e mais demorado, concedendo um significativo período de tempo para que os agentes reguladores pudessem se adequar com a sua gradual implementação antes de delimitar o uso dos produtos decorrentes da evolução[2]. Atualmente, a disrupção tem sido um processo abrupto, se tornando um fim em si mesmo[3]. Vale, por essa razão, um alerta: o desenvolvimento intencional e constante de tecnologias disruptivas sem ponderar outros elementos e valores que não só a eficiência poderá ser problemática. A grande questão se restringe à previsibilidade e controle dos riscos decorrentes desse fenômeno.

Um dos casos que se enquadra perfeitamente nesse contexto trata da possibilidade de exploração de atividade econômica com o uso auxiliar dedrones, formalmente conhecidos por Sistemas de Aeronaves Não Tripuladas (Unmanned Aircraft Systems – UAS). Desse gênero, desdobram-se duas categorias, os Remotely Piloted Aircraft Systems (RPAS), compreendendo as aeronaves que dependam de comandos remotos para sua plena operação, e as aeronaves totalmente autônomas, que, uma vez programadas, não sofrem qualquer tipo de interferência durante a execução da operação. Vamos nos ater ao caso dos RPAS. A aplicação desses dispositivos pela iniciativa privada apresenta uma série de vantagens no aspecto econômico, reduzindo significativamente os altos custos decorrentes de manutenção e operação de aeronaves tripuladas e as despesas decorrentes da contratação de equipe de tripulação, por exemplo[4].

Na medida em que se prolifera o uso indiscriminado desses equipamentos, também cresce a intenção estatal pela intervenção na atividade, visando assegurar, em última instância, a segurança na operação de tais equipamentos, e, ao mesmo tempo, possibilitando o bom uso do espaço aéreo enquanto bem público. Porém, em que medida são cabíveis ações para regular a relação entre os RPAS e a sua iminente integração com o espaço aéreo?

Não é necessário dispender muitos minutos de reflexão para se apontar as preocupações mais latentes pelo uso inadequado de RPAS pela sociedade civil, sendo o aspecto da segurança indubitavelmente o mais relevante. Nesse ponto, pesa a dificuldade dos agentes reguladores locais em construir um arcabouço normativo que permita o uso controlado de RPAS, resguardando a segurança de terceiros, sem obstar, por outro lado, o aprimoramento da tecnologia e a expansão da utilidade dessas ferramentas pela iniciativa privada[5].

Outro aspecto posto em questionamento abrange a relação de privacidade. John Horgan aponta as tendências de evolução dos drones para objetos cada vez menores, possibilitando o uso para fins de vigilância, por exemplo[6]. Enquanto que, no campo da segurança, o controle estatal se torna mais factível pelo condicionamento das operações por meio de autorizações, o risco da vigilância clandestina é uma barreira mais complexa, ainda que se imponham exigências de identificação dessas aeronaves[7].

O desvirtuamento do uso dos RPAS, todavia, não pode ser impedimento para que o Estado abdique do seu papel regulador, de modo a rechaçar asexternalidades apontadas, assim como também não pode provocar asfixias regulatórias no desempenho da atividade econômica[8] É desse movimento pendular entre maior e menor intervenção que se travam as propostas de regulação, cuja mora na resposta desses problemas à sociedade acaba afetando, consequentemente, o desenvolvimento tecnológico nacional, ou agravando as preocupações do seu uso sem o devido controle.

No Brasil, o estado da arte é de incompletude, que embora já tenha delimitado os contornos mínimos para o uso experimental em atividades científicas, o seu emprego para exploração de atividade econômica encontra-se em estágio embrionário. Apesar do recente corpo de normas infralegais que tentaram viabilizar um marco provisório àqueles que anseiam pelo uso das aeronaves com intuito comercial, até que seja possível entender todas as nuances de sua operação, é necessário, desde já, apontar algumas das circunstâncias que ensejam “entraves” — como a própria iniciativa privada costuma denominar[9] — para o escorreito desenvolvimento da atividade, se mantidas no âmbito do marco regulatório definitivo, prometido pela Anac desde 2014.

Apesar da realização de consulta e audiência pública, que ocorreram no final de 2015, até o presente momento, nada foi concretizado, sendo que os pedidos de autorização estão sendo analisados casuisticamente pela área técnica da agência, com ulterior apreciação do pedido pela diretoria colegiada[10]. Do material até o momento divulgado pela Anac, nada foi mencionado em relação ao procedimento para a obtenção da autorização da operação de RPAS. A discricionariedade na concessão de autorizações neste nicho é inadequada com os fins que se espera alcançar com um marco regulatório bem definido, qual seja, a atração de investimentos e o desenvolvimento da economia interna, sendo imprescindível, todavia, um nível mínimo de segurança jurídica, considerando os elevados aportes necessários que os setores de pesquisa e desenvolvimento acabam demandando.

Partindo do pressuposto que o exercício da discricionariedade pelo regulador somente pode se dar na medida estabelecida pela norma[11], e, no caso, não havendo parâmetros definidos, é natural o ambiente de insegurança propiciado ao setor, tendo em vista que competirá única e exclusivamente ao regulador decidir quanto à validade e eficácia da autorização. Daí a importância de revisitar, mais uma vez, o instituto da autorização no Direito Público moderno enquanto ferramenta de natureza vinculada e estável. Isso porque hodiernamente não é mais possível cogitar o uso de autorização apenas para objetos simples, como para a instalação de bancas de jornal (em que prescindiam de grandes investimentos por parte do particular autorizado).

Ante esse vácuo regulatório, e até que venha ser propriamente apresentado um modelo definitivo, é preciso rechaçar algumas das circunstâncias que causam insegurança àqueles que pretendem se arriscar nesse mercado, que, além da ausência de um procedimento administrativo bem definido para a concessão da autorização de operação com fins lucrativos, falta a garantia do diálogo institucional entre os entes reguladores, de modo a evitar normas conflitantes ou políticas regulatórias com alto custo de implementação, com definições de competências claras.

Em suma, coube ao Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), órgão vinculado ao Comando da Aeronáutica, o planejamento, a disciplina e a fiscalização no acesso e uso do espaço aéreo[12], e, à Anac, a regulação e fiscalização de aeronaves, tripulação e da parte de infraestrutura aeroportuária[13]. Porém, há outros envolvidos neste contexto, como por exemplo a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), responsável por administrar e fiscalizar o uso das radiofrequências utilizadas para o controle (enlace) das aeronaves[14]. Foi também constatada a tentativa de regulação do uso de RPAS em sede municipal[15] e estadual[16].

Na prática, contudo, evidentemente, diante de tantos entes que tentam, concomitantemente, se valer de suas parcelas de polícia para regularem a operação das atividades de RPAS, surge o risco de coexistirem no quadro regulatório normas conflitantes tratando de um mesmo objeto (antinomia), ou ainda a postergação prejudicial da concretização de regulação do tema em virtude dos possíveis conflitos de competência entre os agentes reguladores (anomia)[17].

Outro ponto que merece ser revisitado, considerando o nível das exigências que foram além do que seria necessário para atender as necessidades que justificariam a intervenção estatal nesse domínio[18], consiste na obrigatoriedade de contratação de apólice de seguro. O ICA 100-40/2015, recém-editado pelo Decea, trata da exigência específica de aquisição de seguro para operação de RPAS no espaço aéreo, cujo prêmio consiga cobrir os riscos decorrentes da operação[19]. Tal exigência, como condicionante para a operação de RPAS com finalidade comercial, é inviável em relação à necessidade de conferir maior segurança durante a integração do uso do espaço aéreo, por duas razões.

A primeira, de ordem mercadológica, que em virtude das magnitudes dos danos envolvidos nos riscos da operação, como por exemplo, a colisão de um RPAS com um avião comercial, dificilmente trará incentivos para que o mercado securitário comercialize produtos que possam atender às exigências da Anac. Além disso, pela inexistência de uma norma bem definida em relação às obrigações e riscos sobre a exploração comercial de RPAS, é natural que o mercado securitário também se sinta acuado.

Em segundo lugar, a sua exigência poderá restringir o acesso à tecnologia, concentrando desnecessariamente a exploração de atividade econômica por RPAS, sem uma justificativa plausível para tanto, uma vez que os critérios da identificação obrigatória da aeronave atrelada ao ordenamento jurídico (como as hipóteses de responsabilidade civil decorrentes do risco da atividade, nos termos do artigo 927 do Código Civil) dariam respaldo suficiente e necessário para fins de responsabilização perante terceiros[20].

Considerando as premissas adotadas pelo ICA 100-40/2015, isto é, do reconhecimento de que o debate sobre a regulamentação proposta estaria longe de ser o modelo desejado, e diante dos pontos de insegurança apresentados no capítulo anterior, seria desejável que a nova regulamentação a ser editada pela Anac fuja da “visão de túnel”[21], e passe a encarar as ferramentas propiciadas por um modelo de governança regulatória[22], antes de estruturar uma nova arquitetura definitiva, como a implementação atos normativos inter-regulatórios, a Análise de Impacto Regulatório (AIR) que considere os custos de transação para todos os envolvidos, desde operadores, fabricantes, terceiros, fiscalizadores e o próprio agente regulador.

É com base nessas premissas que este breve ensaio tentou fazer indicações dos entraves que deverão ser considerados para fins de uma regulação definitiva. Assim também foram feitas algumas indicações de possíveis ferramentas de governança regulatória que poderão conferir maior segurança aos stakeholders com interesse na imediata regulação da operação de RPAS para exploração de atividade econômica.

Assim como a ampliação do uso dos drones para finalidades civis, novas irrupções ocorrerão fatalmente, e o Direito não pode ser o algoz do desenvolvimento. Steve Jobs, em 2005, proferiu um discurso marcante na Universidade de Stanford, cuja expressão se traduz em “continue faminto, continue tolo”. O aprimoramento e a vontade de mudar a partir dessa ânsia pelo estudo e inovação é o novo eixo motriz propiciado pela quarta revolução industrial, exercendo o Direito um papel fundamental, o de azeitar essas engrenagens em uma dosagem equilibrada.

 

 

 

 

 

Autores: Caio Cesar Figueiroa é pós-graduado em Direito Administrativo pela FGV Direito SP (GV Law).

Rafael Carvalho Rezende Oliveira é advogado, árbitro e professor de Direito Administrativo do IBMEC, da Emerj e do Curso Forum, de cursos de pós-graduação da FGV e Cândido Mendes. Também é visiting scholar na Fordham University School of Law (Nova York), doutor em Direito pela UVA-RJ, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ, especialista em Direito do Estado pela Uerj e membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro.


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