Não podemos tolerar decisões que ferem direitos e garantias fundamentais

Autor: Jairton Ferraz Júnior (*)

 

“A prescrição constitui assim prova de que, contrariamente ao provérbio, a justiça tarda e falha.”[1]

Sob o mote de “combater a impunidade no país”, decisões judiciais na seara penal têm sido tomadas no sentido de legitimar violações a garantias constitucionais e suprimir direitos fundamentais do cidadão. Parece que grande parcela do Judiciário brasileiro levantou de vez a bandeira do Movimento da Lei e da Ordem (Law and Order[2]), em que o medo é disseminado na sociedade pela mídia e pelos políticos, “noticiando-se reiteradamente crimes cruéis, mostrando a criminalidade como um fenômeno assolador, o que gera, a par da sensação de intranquilidade, um verdadeiro ‘pânico’ da população em relação ao problema da criminalidade”[3]. E, nesse clima de temor e pânico, “origina-se peculiar ideologia da repressão penal: o único meio de combate à criminalidade violenta são as penas severas, fundamentadas na retribuição e no castigo”[4].

Assim, com o Law and Order, impera-se um verdadeiro “populismo penal”, cujo elemento central, segundo John Pratt[5], seria sua capacidade de mobilizar e manipular o lado emocional dos eventos criminosos aparentemente em defesa da vítima e contra um sistema penal visto como ineficiente e moroso. Isso, segundo o referido autor, estimularia nas vítimas e na opinião pública um forte sentimento de revanche e vingança, mas, ao mesmo tempo, traria efeitos nefastos, absolutamente inconcebíveis, na medida em que o Judiciário, incorporando esses anseios sociais, poderia legitimar violações a direitos e garantias fundamentais do acusado, tais como o devido processo legal, a presunção de inocência e a ampla defesa.

Diante disso, menosprezando tais efeitos colaterais terríveis, recentemente, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou o seguinte entendimento atinente à prescrição da pretensão punitiva superveniente (aquela que se opera entre a sentença condenatória recorrível e o trânsito em julgado final):

(…)

4. A decisão que inadmite o recurso especial ou extraordinário possui natureza jurídica eminentemente declaratória, tendo em vista que apenas pronuncia algo que já ocorreu anteriormente – e não naquele momento – motivo pelo qual opera efeitos ex tunc. Assim, o trânsito em julgado retroagirá à data de escoamento do prazo para a interposição de recurso admissível.

5. Recursos flagrantemente incabíveis não podem ser computados no prazo da prescrição da pretensão punitiva, sob pena de se premiar o réu com a impunidade, pois a procrastinação indefinida de recursos contribui para a prescrição. (…)[6]

Tal entendimento consolidou-se na Cote Superior e vem sendo aplicado tanto pela Quinta Turma quanto pela Sexta Turma do Tribunal[7]. Inclusive, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) tem precedentes nesse sentido[8].

Da hipocrisia
Antes de tudo, necessário frisar a hipocrisia com que o Judiciário, em sua maioria, vem tratando a questão da impunidade e da demora na prestação jurisdicional. O Judiciário, via de regra, se esquece do quão inoperante é. Nos cartórios pelo país, não raras vezes, reina a desordem: pilhas e pilhas de processos sem receber andamentos, processos jogados e, até mesmo, esquecidos. Há relatos, inclusive, de que, em alguns juízos, vão meses para se juntar uma simples petição.

É muito mais fácil atribuir aos defensores ou ao próprio sistema penal-constitucional a culpa da demora. Mas, certamente, a culpa da demora não é do sistema constitucional por prever o princípio da presunção de inocência(até o trânsito em julgado definitivo da sentença condenatória) e nem da política criminal por prever o instituto da prescrição. A culpa da demora é do próprio Estado – ou melhor, da sua inoperância – enquanto detentor dojus puniendi. Nesse particular, precisas as considerações de Cezar Roberto Bitencourt:

A excessiva demora (além do prazo razoável) da prestação jurisdicional efetiva deve-se exclusivamente à inoperância do Estado, que, com frequência, não cumpre suas funções institucionais em tempo razoável. O ônus da inoperância do Estado não pode mais recair sobre os ombros do cidadão acusado, preso ou solto.[9]

Direitos e garantias fundamentais: pressupostos irrenunciáveis do Estado de Direito
Ademais, há que se ressaltar que, dentro da perspectiva de um Direito Penal Funcional, os direitos e garantias constitucionais devem ser amplamente respeitados pois são os pilares da essência do próprio Estado de Direito. Assim, não se pode permitir que tais direitos e garantias sejam suprimidos ou flexibilizados. Se o sistema constitucional prevê a presunção de inocênciaaté o esgotamento de todos os recursos previstos no ordenamento jurídico (artigo 5º, LVII da Constituição Federal de 1988 e artigo 8, 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), não se pode estabelecer, de forma autoritária, a retroação do trânsito em julgado apenas para impedir a prescrição da pretensão punitiva e, assim, combalir a suposta impunidade.

Conforme a lição de Muñoz Conde:

Os direitos e garantias fundamentais próprias do Estado de Direito, sobretudo as de caráter penal material (princípios de legalidade, intervenção mínima e culpabilidade) e processual penal (direito à presunção de inocência, à tutela jurisdicional, a não depor contra si mesmo etc.), são pressupostos irrenunciáveis da própria essência do Estado de Direito. Se se admite sua derrogação, ainda que seja em casos pontuais extremos e mui graves, tem-se que admitir também o desmantelamento do Estado de Direito, cujo ordenamento jurídico se converte em um ordenamento ou sem nenhuma referência a um sistema de valores, ou, o que é pior, referido a qualquer sistema, ainda que seja injusto, sempre que seus defensores tenham o poder ou a força suficiente para impô-lo.[10]

Conclui-se, pois, que o respeito aos direitos e garantias fundamentais deve se sobrepor a qualquer prática penal arbitrariamente rígida. Caso contrário, o Estado de Direito transformar-se-á num Direito de Estado, “em que o direito se submete aos interesses que em cada momento determine o Estado ou as forças que controlem ou monopolizem seu poder”[11].

Da supremacia dos fundamentos político-criminais do instituto da prescrição
Há que se pontuar, ainda, que, com o advento do Funcionalismo, o sistema penal deve estar estruturado teleologicamente, atendendo a finalidades valorativas[12]; dessa forma, os institutos do direito penal, como a prescrição, devem estar orientados de acordo com os princípios constitucionais que norteiam o modelo de Estado e de acordo com as funções político-criminais cometidas ao próprio direito penal (prevenção geral e especial). Nesse sentido, Claus Roxin, sustentando a necessidade de uma íntima relação entre a dogmática penal e a política criminal, de forma que aquela seja norteada para atender esta, pondera:

Direito penal e política criminal: (…) não se trata de opostos, como são apresentados pela tradição de nossa ciência. O Direito penal é muito mais a forma através da qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo de vigência jurídica. (…) Um divórcio entre construção dogmática e acertos político-criminais é de plano impossível, e também o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmático-penal e o criminológico um contra o outro perde o seu sentido: pois transformar conhecimentos criminológicos em exigências político-criminais, e estas em regras jurídicas, da lex lataou ferenda, é um processo, em cada uma de suas etapas, necessário e importante para a obtenção do socialmente correto.[13]

Assim, temos que os fundamentos político-criminais do instituto da prescrição devem prevalecer sobre a ânsia, desmedida e irracional, do Estado em combater a suposta impunidade. Ora, com distinta propriedade, Juarez Cirino dos Santos expõe os fundamentos político-criminais que embasam o instituto da prescrição:

O fundamento jurídico da prescrição reside na dificuldade de prova do fato imputado (no caso de prescrição da ação penal), ou na progressiva dissolução da necessidade de pena contra o autor (no caso da prescrição da pena criminal aplicada), o que confere à prescrição naturezaprocessual (impedimento da persecução) e material(extinção da pena).[14]

Depreende-se, pois, que não faz qualquer sentido pretender punir alguém após um período de tempo razoavelmente longo (estabelecido pelo legislador democraticamente eleito). Em primeiro lugar, porque a demora na punição – que, reitere-se, deve-se exclusivamente à inoperância do Estado – faz com a pena se torne desnecessária, eis que infrutífera aos seus fins de prevenção geral e especial[15].

Ora, o decurso do tempo leva ao esquecimento do fato e, consequentemente, à inutilidade da punição, eis que se cessa tanto a necessidade de inibir possíveis agentes desviantes de cometerem futuros delitos, como a de veicular os valores ético-sociais preconizados pela norma penal. Por outro lado, o decurso do tempo pode promover a recuperação do agente, seja pelaexpiação temporal da culpa (pelo longo período que sofreu com seus remorsos e com a angústia, sempre presente, de poder ser punido a qualquer momento), seja pela expiação psicológica, visto que o longo lapso de tempo elimina o nexo psicológico entre o autor e o fato, ou seja, o longo hiato temporal muda a constituição psíquica do culpado, fazendo com que seja “outro indivíduo” quem irá sofrer a pena, e não aquele que, em outras circunstâncias, praticou o crime no passado[16].

Em segundo lugar, porque, se se quer combater a suposta impunidade, a supressão de direitos e garantias fundamentais, como a presunção de inocência, não é, nem de longe, o caminho mais adequado; é, na verdade, um grande retrocesso civilizatório.

Considerações finais
Por todo o exposto no presente artigo, deduz-se que não se podem tolerar decisões judiciais que, incorporando o Law and Order norte-americano, legitimam a transgressão de direitos e garantias fundamentais e desprezam os fundamentos político-criminais que embasam o instituto da prescrição. Até mesmo porque o sistema penal norte-americano tem sido, nas palavras do historiador Denis Rothman, “ineficiente, absurdamente caro, brutalmente inumano e profundamente marcado pela discriminação racial”[17]. Desse modo, relevante destacar a conclusão de Orlando Lyra de Carvalho Jr. acerca das políticas punitivas do Law and Order:

 

(…) paradoxalmente, as políticas punitivas made in the USA exercem uma influência sedutora sobre todos aqueles que se deixam cair na “armadilha da simplificação”: hipóteses e explicações reducionistas que talvez ajudem a exorcizar o medo diante da criminalidade, mas que só agravam a situação. É preciso evitar esses equívocos com um espírito crítico aguçado e com humildade intelectual reconhecer a complexidade do fenômeno da criminalidade. Sobretudo é necessário discernir panacéias populistas de políticas criminais sérias.[18]

 

Destarte, é necessário estabelecer de uma vez por todas que as mazelas do Estado, como a sua deficiência em exercer o jus puniendi no tempo previsto em lei, não podem recair de forma tão acentuada sobre os ombros dos cidadãos. É um absurdo o acusado ter de ficar ad infinitum subjugado ao império da vontade estatal de punir.

O Judiciário não pode, a seu bel-prazer, alterar o momento do trânsito em julgado e relativizar direitos e garantias fundamentais (como a presunção de inocência e a dignidade da pessoa humana). Também não pode ignorar os fundamentos de política criminal que sustentam o instituto da prescrição. Se assim não for, poder-se-á incorrer no risco de se regredir à temível ditadura, ao Estado policialesco, em que o cidadão é reduzido a pó e a sociedade é guiada pelos caprichos de quem está no poder.

 

 

 

 

 

Autor: Jairton Ferraz Júnior  é advogado criminalista e membro e pesquisador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Grupo de Estudos Modernas Tendências da Teoria do Delito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, do Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais (CPECC) da Faculdade de Direito da USP.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento