Autor: Eduardo Alvares de Oliveira (*)
Na sessão do dia 23 de junho de 2016 o plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 118.533, por maioria de votos, entendeu que o denominado tráfico privilegiado, em que há diminuição da pena aplicada (artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/06) não deve ser considerado crime de natureza hedionda. Ficaram vencidos os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Marco Aurélio.
O crime de tráfico de drogas é descrito no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, que no seu parágrafo 4º regula o denominado tráfico privilegiado[1]. A Constituição Federal de 1988 equipara a crime hediondo a prática de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (artigo 5º, XLIII)[2].
Pois bem! Há muito o Supremo Tribunal Federal tem entendido e replicado que o tráfico privilegiado (artigo 33, parágrafo 4º da Lei 11.343) é de natureza hedionda, devendo, portanto, os condenados pela prática deste crime receber tratamento mais rigoroso, nos termos da lei 8.072/90. Na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal temos como precedentes sólidos o HC 114.452/RS-AgR; HC 119.578/MS e HC 121.255/SP. Na Segunda Turma também tínhamos um precedente no mesmo sentido, qual seja, o HC 118.577/MS.
No entanto, a Corte Suprema, em 23 de junho resolveu dar uma guinada em sua jurisprudência para, no julgamento do Habeas Corpus 118.533, afastar a natureza hedionda do tráfico de drogas privilegiado.
A decisão do plenário, que seguiu o voto do relator Ministro Ricardo Lewandowski[3], fundou-se em três bases argumentativas. Primeiro, que a natureza hedionda do crime de tráfico de drogas privilegiado não permite a concessão do indulto e da comutação de penas. Segundo, que no Brasil 28% dos encarcerados são condenados pela prática do crime de tráfico de drogas, e que, desse percentual, 68% são mulheres. Além disso, sustenta o relator que, segundo criminólogos, essas mulheres são cúmplices “involuntárias” de homens com quem, na maioria das vezes, mantêm relação afetiva. Terceiro, que o tráfico de drogas acaba sendo um recurso alternativo à crise econômica, já que absorve boa parte da mão de obra que é expelida do mercado de trabalho formal.
Estas breves linhas não têm por objetivo analisar os argumentos expostos no voto do relator, ministro Lewandowski. O que nos preocupa no momento – sem descurar da fragilidade argumentativa da decisão, com a máxima vênia –, é uma mudança radical na jurisprudência da mais alta Corte de justiça brasileira que, consequentemente, irá refletir em todos os julgados de casos idênticos, ou seja, que irá ensejar a vinculação dos juízes ao que foi decido pela Corte Suprema.
O Supremo Tribunal, por meio de sua Primeira Turma sedimentou que (HC 114.452/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 8/11/2012):
a minorante do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, não retirou o caráter hediondo do crime de tráfico de entorpecentes, limitando-se, por critérios de razoabilidade e proporcionalidade, a abrandar a pena do pequeno e eventual traficante, em contrapartida com o grande e contumaz traficante, ao qual a Lei de Drogas conferiu punição mais rigorosa que a lei anterior.
Destarte, o reconhecimento da benesse ora pretendida – progressão da pena após o cumprimento de 1/6 – e não das frações previstas na Lei de Drogas, de 2/5, se primário, e de 3/5, se reincidente – constituirá incentivo a que as pessoas cada vez mais se aventurem no tráfico, ante o ínfimo tempo em que ficarão presas.
Deveras, a aplicação da minorante na fração de 2/3 sobre a pena mínima de 5 (cinco), anos cominada para o crime de tráfico de drogas, leva ao quantum de 1 (um) ano e 8 (oito) meses), sendo certo que o réu cumprirá apenas 5 (cinco) meses de reclusão para lograr progressão de regime (grifei).
No mesmo sentido temos julgado da Segunda Turma, inclusive da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski (HC 118.351/MS, DJe 19/11/2013):
A minorante do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 foi estabelecida não porque o legislador entendeu que a conduta, nos casos em que verificados aspectos favoráveis ao réu, seria menos grave, mas, sim, por razões de política criminal, pensando-se em beneficiar o pequeno traficante. Com efeito, do sítio eletrônico da Câmara dos Deputados, é possível extrair trecho significativo do projeto que se converteu na Lei 11.343/2006, o PL 7.134, de 2002, o qual contém a seguinte justificativa para a minorante ora debatida: “Não nos olvidamos da diferença existente entre pequenos e grandes traficantes. Por isso, mantivemos uma causa especial de diminuição da pena para o agente que seja primário e de bons antecedentes e cuja conduta se caracterize por ausência de habitualidade e caráter não profissional”.
Depois destes precedentes, todas as decisões proferidas no âmbito da Primeira e Segunda Turmas foram no mesmo sentido[4], até o julgamento do HC 118.533, em que ocorreu uma mudança de direção do entendimento da Corte.
Ora, desde 2007, quando o Supremo Tribunal pela primeira vez enfrentou a matéria, que se originou da lei 11.343/2006, houve o posicionamento pela hediondez do crime de tráfico privilegiado. Sem olvidar dos decotes promovidos pelo julgamento dos HC 82.959-7-SP, relator ministro Marco Aurélio, HC 111.840/ES, relator ministro Dias Toffoli e HC 97.256/RS, relator ministro Ayres Britto, em que reconheceu a inconstitucionalidade da fixação de regime integralmente – e após a obrigatoriedade inicial do – fechado em crimes hediondos e a inconstitucionalidade da vedação de conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos para o tráfico privilegiado, respectivamente, temos que o julgamento do HC 118.533 representou um precedente perigosíssimo para a segurança jurídica da jurisprudência nacional.
Isso porque a Corte Suprema é o guia jurisprudencial de todo o Poder Judiciário. É fonte do direito que inspira os juízes de todo o Brasil, gerando reflexos imediatos na estrutura básica da educação, saúde e segurança pública. É um órgão com poder de promover profundas alterações nos sistemas fundamentais da república brasileira. No entanto, esse poder deve ser exercido com muito cuidado e parcimônia.
E veja bem, não estamos a tratar de casos emblemáticos em que a Corte Suprema foi provocada a manifestar-se e ditar a conformidade de implementação de alguma política pública com elevado grau de desacordo moral entre os integrantes da sociedade, a exemplo da ADI 3510, da relatoria do Ministro Ayres Britto – que declarou a constitucionalidade da utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos -, da ADC 29, de relatoria do ministro Luiz Fux – que reconheceu a constitucionalidade da Lei Complementar 135/10 – e da ADPF 54, relator Ministro Marco Aurélio – que declarou a inconstitucionalidade de interpretação do Código Penal que tipificasse a conduta da interrupção da gravidez de feto anencéfalo -, mas sim, de uma discussão jurídica que estava pacificada pelo Supremo Tribunal desde 2007, sem nenhum precedente que pudesse indicar uma revisão da jurisprudência da Corte.
Essa guinada jurisprudencial, e também o fato de fundamentar em uma “conveniência momentânea”, data vênia, é o que nos preocupa. Hoje a Corte altera sua jurisprudência para desafogar a taxa de encarceramento feminino, amanhã para atender aos anseios de indígenas, depois para satisfazer a necessidade de um grupo econômico, e em seguida não teremos mais garantia nenhuma de integridade da jurisprudência da Corte. Enfim, com todo o respeito à Suprema Corte, fará bem ao direito brasileiro que eventual alteração de posicionamento sólido da Corte, ou seja, o denominado overruling, seja precedido de amplo debate e fundado em precedentes que apontem essa possibilidade de superação de entendimento.
Autor: Eduardo Alvares de Oliveira é juiz de Direito, titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Rio Verde; pós-graduado em Ciências Criminais pela UNIDERP.