Autor: Bruno Torrano (*)
O artigo 926 do Código de Processo Civil de 2015, ao prescrever que “[o]s tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, inseriu no ordenamento jurídico brasileiro aquilo que, com Scott Hershovitz, poderíamos chamar de visão do stare decisis baseada na integridade (integrity-based view).
O que isso significa? Desde logo, que a redação do dispositivo legal ilustra certa redundância. A integridade como ideal político — que deve sua teorização, sobretudo, a Ronald Dworkin — ergue-se, por um lado, sobre a premissa de que as demandas da moralidade formam um todo coerente e, por outro, pressupõe dos agentes públicos o comprometimento com umacadeia histórica de padrões de comportamento, de modo a evitar instabilidades decisórias derivadas de meros impulsos ou caprichos pessoais. Por conseguinte, do ponto de vista da filosofia política e moral, bastava que o artigo 926 do CPC mencionasse que os tribunais devem manter a integridade jurisprudencial.
Mas o fato é que o legislador colocou mais duas palavras. Por mais criticáveis que sejam, talvez haja nelas alguma valia. A primeira imaginável diz respeito à clareza da mensagem que se pretende passar. Não são poucos os magistrados que desconhecem a definição filosófica do termo “integridade”. A ênfase em signos mais corriqueiros como “estabilidade” e “coerência” tem, nesse sentido, o inegável mérito de facilitar a compreensão sobre os objetivos do novo código.
A segunda vantagem assenta-se em um plano mais técnico. Em certos casos, valores como segurança jurídica e integridade podem, porventura, colidir. A integridade, além de não ser uma exigência moralmente forte — no sentido de não demandar que ajamos sempre corretamente, mas sim coerentementena base de considerações morais defensáveis —, conduz a uma acepção ampla sobre a natureza do stare decisis: levar a sério precedentes não significa, apenas, aplicá-los. Aquele que deixa de aplicar um precedente com base nas técnicas de distinguishing e de overruling já confere à decisão passada um considerável peso normativo. Não ignora, assim, que aquilo que foi decidido ontem deve fazer parte do raciocínio sobre aquilo que será decidido hoje.
Contra a estabilidade a todo custo, a lógica da integridade prescreve a viabilidade de revisar entendimentos que veem a ser considerados equivocados após mudanças culturais subjacentes, alteração da composição do tribunal, argumentos fortes em contrário ou novas informações relevantes. Sendo assim, o sistema íntegro de stare decisis afasta-se de concepções de que preservar a força vinculante dos precedentes é a mesma coisa que resguardar, em qualquer hipótese, o erro de decisões passadas, ou mesmo que decidir à luz do stare decisis é, sempre, decidir independentemente dos méritos daquilo que já foi decidido.
É imprescindível, porém, saber em quais condições pode (ou deve) ocorrer a superação de um precedente. Nesse ponto, torna-se necessário refinar os conceitos, para que compreendamos que o ideal de estabilidade comunga danatureza dual do stare decisis.
O stare decisis vertical ou hierárquico baseia-se na autoridade de instâncias superiores: em situações semelhantes ou similares — e isso, claro, demanda a interpretação da ratio decidendi anterior, das teses das partes e dos fatos particulares —, juízes de primeira instância e tribunais locais têm o dever de seguir a orientação firmada pelas cortes superiores. Nessa hipótese, é suficiente invocar, por questões de expertise superior e coordenação, a tese da justificação normal (normal justification thesis) proposta por Joseph Raz para exigir que magistrados decidam independentemente daquilo que pensam ser a solução de mérito mais adequada.
O stare decisis horizontal, que, para o que aqui interessa, refere-se ao dever do STF e do STJ de seguirem os seus próprios precedentes, é mais problemático. Como poderia ser justificado? Hershovitz afirma que, ao contrário do stare decisis vertical, a obediência institucional interna não consegue ser justificada por meros argumentos relacionadas ao conceito de autoridade. Como ele próprio reconhece em uma nota de rodapé, essa é uma verdade parcial. Com efeito, não há como se pensar em uma relação de autoridade entre, por exemplo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal e opróprio Plenário do Supremo Tribunal Federal. Trata-se de uma área não abrangida pela tese da autoridade. Porém, no civil law brasileiro, há uma relação autoritativa muito clara prevista no artigo 927, inciso V, do CPC entre o Plenário e órgãos fracionários, ou entre o Plenário e as decisões monocráticas de ministros, ou, ainda, entre órgãos fracionários e estas últimas.
Neste último caso, é possível, com base na mesma tese da justificação normal — em seu aspecto relativo à solução de problemas de coordenação(coordination problems) — enfatizar que o stare decisis horizontal demanda que precedentes sejam superados apenas com a mesma força colegiada que os gerou em um primeiro momento: se proferido pela turma, uma decisão futura contrária deve ser proferida pela própria turma; se consignado pela seção, uma decisão futura contrária deve ser consignada pela própria seção; se exarado pelo Plenário, uma decisão futura contrária deve ser exarada pelo próprio Plenário.
A formalidade colegiada exigida pelo stare decisis horizontal, na concepção íntegro-autoritativa ora defendida, faz uma diferença prática imensa em termos de estabilização normativa e previsibilidade. O leitor atento poderá constatar, por exemplo, que ela leva a consequências diversas daquelas suportadas pela posição hermenêutica dos professores Lenio Streck e Georges Abboud, delineada em excelente artigo intitulado O que é isto — o sistema (sic) de precedentes no CPC?. Para notar as dissonâncias, creio ser interessante lembrar, aqui, o já famoso HC 126.292/SP, que também foi abordado pelos referidos autores.
Recapitulemos: o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por 7 a 4, ressuscitou orientação jurisprudencial que havia dado seus últimos suspiros em meados de 2009, no sentido de ser constitucionalmente aceitável a execução provisória da pena criminal. Ficaram vencidos os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Rebeliões doutrinárias logo surgiram. Eu fui um dos que tomaram parte na trincheira: não tardei a publicar um texto, aqui na ConJur, demonstrando, com base no textualismo de Antonin Scalia, que o entendimento da corte suprema não retratava uma leitura honesta do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Outro texto, por mim publicado juntamente com o próprio Streck, abordou questão processual penal relativa à antecipação artificial do trânsito em julgado em matéria penal, mas não deixou de mostrar nosso descontentamento com a decisão de mérito do HC 126.292.
Ocorre que vieram tempos de oscilação. Duas decisões monocráticas, proferidas, respectivamente, pelos ministros Celso de Mello (HC 135.100/MG) e Ricardo Lewandowski (HC 137.172/PB) concederam liminares contrárias àquilo que foi decidido — repito, pelo Plenário — no HC 126.292/SP. No HC 135.100/MG, afirmou-se que, embora “respeitabilíssima” (sic), a tese firmada no HC 126.292/SP ofende a presunção de inocência e, por ter sido proferida em um processo eminentemente subjetivo, não é vinculante. Por sua vez, o HC 135.752/PB prestou-se a “repristinar” a jurisprudência que havia sido consolidada em 2009, anteriormente ao julgamento do HC 126.292/SP, no sentido da impossibilidade de execução provisória da pena. Em mais uma reviravolta, todavia, o ministro Edson Fachin, uma semana depois, cassou a liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski e ressaltou que, embora não tenha efeito erga omnes, a decisão do HC 126.292/SP foi (i) tomada pelo Plenário, (ii) não teve por base apenas peculiaridades do caso concreto e (iii) merece ser respeitada a bem da estabilidade da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
A decisão do ministro Edson Fachin está correta. Dentre outras razões, ela exalta, com a contundência necessária, um dos fatores mais caros ao debate sobre stare decisis: o autorrespeito. Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que demonstram menoscabo pelo colegiado da própria corte que integram não estão em posição de exigir que este ou aquele precedente do STF ou STJ seja respeitado por tribunais locais e juízos de primeira instância. Por mais doloroso que seja, é preciso aceitar que STF e STJ são duas instituições jurídicas superiores às consciências individuais de seus ministros. O que esses pensam, em sua intimidade, ser justo ou adequado vale desde que seja retoricamente convincente a ponto de adquirir maioria em um embate discursivo representativo da visão do tribunal ou, quando menos, da turma ou seção.
Dirá o leitor menos simpático às minhas ponderações: “No HC 135.752, o ministro Celso de Mello demonstrou que a tese consignada no Habeas Corpus 126.292 contém evidente inconstitucionalidade“. Bem. Não vou nem comentar como é complicado falar em “evidências” ou “obviedades” em assuntos complexos como este — que envolvem a sistemática de aplicação de precedentes, concepções concorrentes de direito e teses metainterpretativas. Tampouco seria necessário lembrar que o entendimento do HC 126.292 é uma reativação de algo que foi considerado, por longos 21 anos e por juristas de qualidade, como uma interpretação constitucionalmente aceitável ou, ao menos, defensável — e, conforme salientei acima, a integridade não exige que ajamos sempre de forma correta.
Aqui, vou entrar no jogo: o HC 126.292 estampa uma interpretação equivocada? Sim. Há omissão quanto ao enfrentamento do artigo 283 do Código de Processo Penal? Sem dúvida. Mas nada disso interessa à discussão sobre o stare decisis horizontal. A questão não é de mérito, pois “autoridades fornecem razões para a ação independentes de mérito” (merit-independent reasons for action). Não importa se os teóricos A e B — e aqui me incluo — pensam que foi equivocada a interpretação dada ao artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República; tampouco importa a discussão sobre efeito subjetivo ou não da decisão. O fato é que, por disposição legal expressa (artigo 927, V, do CPC), a concepção do Plenário detém autoridade sobre a concepção pessoal do ministro.
Por conseguinte, decisões monocráticas de ministros devem submeter-se a orientações consolidadas pelo Plenário, quer eles concordem ou não com a solução dada pelo colegiado — e, claro, desde que não seja o caso dedistinguishing. O mérito do HC 126.292 deve ser revisto pelo próprio Plenário, e não monocraticamente por um ministro que foi derrotado nesse mesmo Plenário. O ideal de estabilidade jurisprudencial seria letra morta se, por mero inconformismo relativamente ao mérito, pudesse cada ministro desrespeitar, nos termos de suas concepções pessoais de Direito e Justiça, e sem decurso razoável de tempo para eventual mudança de entendimento, aquilo que já foi adotado pelo órgão colegiado máximo.
Insisto: respeitar um precedente não significa concordar com ele. Aliás, muito pelo contrário: na aplicação do Direito, uma postura de reverência a normas institucionalizadas ocorre, sobretudo, naquelas ocasiões em que se reconhece o valor jurídico-institucional de algo que se considera, pessoalmente, ser um equívoco político, interpretativo ou moral. Disso se segue que o STF ou o STJ estão livres para fazer o que quiserem? É claro que não. Deduz-se que precedentes valem mais do que leis? Nada disso: a jurisprudência defectiva deve ser, em algum momento, superada — mas dentro da lógica das formas, e não a qualquer custo. Seria algum tipo de adesão a um realismo jurídico distorcido? Negativo, pois não se trata de afirmar a infalibilidade jurídica dos aplicadores do Direito. Eles erram — e muito. Significa, ao contrário, levar a sério a lógica institucional dos referidos tribunais, suas finalidades constitucionais de estabilização normativa e os efeitos colaterais que a não aplicação de um precedente, por mera discordância, pode gerar.
Não adianta apenas afirmar, como fez o ministro Celso de Mello, que uma decisão plenária do Supremo é “respeitabilíssima” e depois jogá-la ao vento. É preciso dar concretude a esse “respeito”, ainda que isso implique algum grau de frustração pessoal. E, em todo caso, lutar, na doutrina e na ação político-estratégica, para que as interpretações corretas voltem a ser aplicadas — e, posteriormente, respeitadas — por aqueles órgãos que, em algum momento sombrio, delas se afastaram. Dói? Dói. Mas o entendimento do HC 126.292/SP deve ser respeitado. Até que o Plenário do STF, com esta ou outra composição, tenha sensibilidade e coragem para admitir seu erro. Ou até que o legislador aja para desafiar o respectivo entendimento.
Autor: Bruno Torrano é mestre em Filosofia e Teoria do Estado, especialista em Direito Penal, Criminologia e Política Criminal e Direito Empresarial. Assessor de ministro no STJ, é autor do livro “Democracia e Respeito à Lei: Entre Positivismo Jurídico e Pós-Positivismo”.